Não é de hoje que o Cinema de gênero é visto com preconceito por determinados segmentos da comunidade cinéfila. Talvez por despertarem reações mais diretas no espectador, os filmes de ação, aventura, fantasia, comédia e terror costumam atrair o público médio com mais facilidade (não é à toa que as maiores bilheterias da História consistem basicamente em blockbusters populares, deixando os dramas e os documentários de fora) – e isto parece incomodar terrivelmente algumas pessoas, que se recusam a reconhecer como Arte uma obra que seja capaz de atingir o “povão”. É por isso que a presença de um cineasta como Jordan Peele é tão importante: vindo de uma carreira embasada na comédia, o sujeito resolveu investir no Cinema e estreou na direção com Corra!, um dos melhores filmes de terror dos últimos anos e que, de quebra, ainda contava com toques pontuais de humor que só enriqueciam a narrativa.
Assim, era inevitável que Peele se tornasse uma das grandes promessas desta geração – afinal, não é qualquer realizador que consegue angariar quatro indicações ao Oscar ainda em seu longa de estreia. É um alívio, portanto, que Nós faça jus às imensas expectativas que foram criadas em torno do diretor, que, agora, nos apresenta a uma obra igualmente ambiciosa, carregada de simbolismos e capaz de assustar e divertir na mesma medida.
Mais uma vez empregando a estrutura e algumas das convenções do gênero “terror” para escancarar – e satirizar – os problemas crônicos que ainda hoje comprometem a sociedade na qual vivemos, Nós tem início com uma sequência que acompanha a pequena Adelaide caminhando solitária num parque de diversões próximo à praia de Santa Cruz. Depois que um evento traumático ocorre naquela noite, o filme avança mais de trinta anos no tempo, trazendo a história para o presente – e, agora, Adelaide cresceu, se casou com Gabe e virou mãe da adolescente Zora e do caçula Jason. Ao passar as férias em uma casa de veraneio, porém, a família se vê diante de uma ameaça inesperada: um grupo de pessoas exatamente iguais a Adelaide, Gabe, Zora e Jason, como se fossem clones monossilábicos que surgiram para aterrorizá-los.
Em outras palavras: trata-se de uma narrativa sobre “duplos” (ou doppelgängers) – e isto, claro, representa um grande desafio para a maior parte dos atores, já que estes terão de lidar com duas versões do mesmo personagem (sendo que uma é o reflexo distorcido da outra). Dito isso, Lupita Nyong’o merece todos os aplausos por seu desempenho aqui: encarnando Adelaide como uma mulher que parece carregar dilemas internos que nunca foram resolvidos, mas que jamais permite que isto comprometa a força que aprendeu a reconhecer desde a infância (na parede da casa que tanto visitou quando criança, há uma pintura na qual ela e sua mãe vestem capas de super-heroínas e fazem uma pose exibindo seus bíceps), a atriz estabelece perfeitamente o contraste entre a protagonista e sua “Sombra”, que, por sua vez, é uma figura sombria, macabra e que exala frieza através de seus lábios cerrados, de seus olhos arregalados, de sua postura corporal inclinada para os lados e de sua voz constantemente sufocada, pausada e trôpega (imaginem alguém que há muito tivesse perdido o costume de falar e estivesse tentando recuperar a prática aos poucos).
Mas Lupita Nyong’o não é a única que se destaca, já que o filme também permite que as crianças, vividas por Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, estrelem algumas situações memoráveis e contem com arcos dramáticos bem definidos (Zora quer aprender a dirigir e se tornar mais ativa diante da própria vida, ao passo que Jason é um garoto silencioso e inseguro que aos poucos se descobre no centro de uma trama grandiosa demais para ele). Para completar, Winston Duke interpreta um personagem que tinha tudo para dar errado, mas que acaba funcionando surpreendentemente bem: exibindo um senso de humor constante que segue se manifestando mesmo nos instantes mais cruciais da narrativa, Gabe consegue fazer o espectador rir no meio de situações assustadoras sem diminuir a tensão presente nestes momentos – aliás, esta é uma especialidade que Jordan Peele vem apresentando desde Corra!, tornando-se um dos pouquíssimos cineastas capazes de conciliar comédia e terror sem permitir que um anule o outro. O bom humor em Nós, diga-se de passagem, não poderia ser mais apropriado, surgindo tanto para resolver certos conflitos de maneira inesperada (as sequências ambientadas no lago são exemplos disso) quanto na forma de breves alfinetadas sociais (ao perceber que há uma chave-extra, Gabe diz “Isso só pode ser invenção de branco!“).
O que não muda o fato de que, no fim das contas, Nós é um filme de terror – e o mais importante: é um excelente representante do gênero. Estabelecendo um clima de urgência que deixa o espectador sempre temeroso em relação ao que está prestes a acontecer, Peele reconhece que sustos fáceis e oscilações bruscas nos efeitos sonoros não são o suficiente para que uma obra assuste o espectador, construindo a tensão através de movimentos de câmera lentos e concentrados a ponto de soarem… incômodos, beirando o perturbador (e de novo: não é necessário que um monstro subitamente surja explodindo os tímpanos do público para fazê-lo se sentir inquieto e/ou amedrontado). E se Peele se sai particularmente bem ao aludir à própria História do gênero “terror” (como olhar para aquelas duas gêmeas e não pensar em O Iluminado?), o segundo ato assume a forma de um legítimo slasher movie, recuperando a dinâmica de um grupo que se vê obrigado a se defender de um assassino monstruoso (no caso, são vários). Já a trilha sonora de Michael Abels merece pontos por complementar a atmosfera sombria do filme sem sucumbir à obviedade, demonstrando inteligência e pontualidade ao reconhecer que o silêncio tem tudo para favorecer certas sequências.
Novamente escrevendo um roteiro que encanta pelo emprego recorrente do foreshadowing (ou seja: um detalhe sutil que é plantado no começo da narrativa, mas que depois se revela importante ao ajudar os personagens a resolverem um problema), Peele demonstra elegância e coesão ao incluir diversos elementos que, mais à frente, retornarão de maneira curiosa: o comercial de tevê que aparece ainda nos primeiros segundos concentra-se em um monte de pessoas de mãos dadas e faz parte de uma campanha chamada “Hands Across America”; o defeito no motor da lancha que Gabe aluga pode incomodá-lo no começo, porém mais tarde acaba revelando uma utilidade inesperada; na sequência da praia, há um instante onde um frisbee vermelho encobre um círculo azul na canga de Adelaide; etc – e estas pistas acabam transformando Nós em um daqueles longas que crescem à medida que são revisitados, pois torna-se mais fácil identificar estes detalhes e se divertir com eles. Por outro lado, existem alguns momentos em que Peele se sente obrigado a explicar demais alguns conceitos para o espectador, o que faz alguns diálogos soarem artificiais e ainda tira parte da sutileza – e da graça – de certas situações.
Por fim, é impossível discutir Nós sem falar sobre os comentários sociais e analogias criadas por Jordan Peele, que, seguindo o exemplo de Corra!, investe em situações absurdas que buscam refletir uma série de questões importantes através da sátira – e neste sentido, as ambições do cineasta chegam a ser impressionantes, já que o debate promovido pelo roteiro tem a ver não com temas específicos, mas com toda a sociedade norte-americana (aliás, nem é preciso dizer que o título original do filme – Us – é um trocadilho com as iniciais de United States, certo?). Refletindo parte do comportamento sanguinário que faz parte da cultura dos Estados Unidos (em certo momento, Adelaide e Zora decidem qual das duas vai dirigir um carro e, para chegarem a um acordo, avaliam a quantidade de mortos que cada uma deixou numa casa), Nós traz como antagonistas um grupo de pessoas que se intitulam como “americanos” e que agem da maneira como estes tornaram-se conhecidos nas últimas décadas, invadindo o território dos outros, unindo-se para massacrar seus adversários e chegando a construir uma “barreira” que deixaria Donald Trump orgulhoso.
Nós é, portanto, o retrato perfeito de uma época bizarra onde os Estados Unidos – e boa parte do mundo – se veem mergulhados em uma onda extremista, intolerante e segregadora (falei um pouco sobre isso ao discutir Infiltrado na Klan, de Spike Lee). Mas não é só: o fato dos doppelgängers viverem escondidos em esgotos e túneis pode ser encarado como uma clara alusão à desigualdade socioeconômica, já que estes formam um grupo que sempre se viu oprimido pelos poderosos e que finalmente está se desacorrentando – numa revolução que, não à toa, busca sair das profundezas e partir em direção ao mundo lá de cima. E claro que Jordan Peele não poderia deixar de ridicularizar os costumes dos brancos de classe média alta, retratando-os como personas terrivelmente fúteis, egocêntricas e julgadoras que, quando se descobrem diante de um perigo iminente, desmoronam em questão de pouquíssimos minutos.
Encerrando-se com uma reviravolta drástica que, além de mexer com a cabeça do espectador, ainda enriquece tematicamente tudo que o filme havia construído até então, Nós é uma obra que gira em torno de personagens que temem não o ataque de uma criatura assustadora, mas a possibilidade de serem arrastados de volta para uma realidade fria, desalmada e subjugada pelos monstros do mundo real.
E, aqui, repito o que falei na abertura deste texto: como é bom saber que existem cineastas como Jordan Peele conquistando um espaço cada vez maior em Hollywood.