Durante o segundo ato de Uma Mulher Fantástica, a protagonista transexual que é identificada no título do filme tem uma conversa notavelmente desconfortável com uma viúva – que se aproxima da personagem principal e diz coisas como “Me desculpe, mas eu olho para você e não consigo entender o que vejo; apenas enxergo… uma quimera“. Trata-se de uma linha de diálogo que é bastante reveladora: mesmo sabendo que está prestes a dizer uma barbaridade, a mulher tenta minimizar sua agressividade com um “Me desculpe” no início da frase, como se este “arrependimento antecipado” (leia-se: tentativa de justificar sua ignorância através da autoindulgência) fosse o suficiente para obrigar a vítima a aceitar aquilo que acabou de ouvir. Pode até não ser um espancamento ou um xingamento escancarado na base da gritaria, mas ainda assim é uma violência verbal que ocorre constantemente no cotidiano da personagem-título.
Este é o tipo de transfobia que Uma Mulher Fantástica expõe, optando por se concentrar mais nas ofensas “menores” e mais sutis do que nas demonstrações brutais e mais óbvias. Dirigido e escrito por Sebastián Lelio, o filme gira em torno de Marina, uma aspirante à cantora transexual que vive um romance com o empresário Orlando. No meio de uma noite, porém, o sujeito tem um aneurisma cerebral e, ao ser levado para fora do apartamento, ainda cai acidentalmente da escada e ganha vários hematomas. Ao chegar no hospital, logo se descobre que Orlando está morto – o que acaba ativando uma série de agressividades direcionadas a Marina, desde os constrangimentos na delegacia até o ódio que cresce progressivamente na família do falecido.
Adotando uma tática relativamente similar à de Alfred Hitchcock em Psicose, que começava introduzindo uma personagem que possivelmente protagonizaria a história apenas para matá-la após alguns minutos, Uma Mulher Fantástica demonstra uma sabedoria admirável ao introduzir a questão da transfobia de maneira cautelosa e pontual: em vez de se entregar à obviedade logo de cara, o filme faz questão de apresentar cuidadosamente Marina e a situação em que se encontra para, depois, começar a inserir pequenas demonstrações sutis de discriminação, como um médico que questiona sua vida sexual e um delegado que obriga a personagem a se identificar pelo nome de nascimento. A partir daí, Marina passa a ser atirada em infortúnios cada vez maiores: em certo momento, um homem pergunta se ela “é operada”; mais tarde, proíbem a moça de ir ao velório de seu amado porque “querem garantir o bem-estar da família”; e para piorar, uma detetive exige que a protagonista exponha seu corpo nu para ser examinado.
De todo modo, embora existam casos específicos onde Marina sofre agressões que seriam repudiadas por qualquer pessoa com o mínimo de caráter, o que torna Uma Mulher Fantástica tão relevante e eficiente é a forma como o longa aborda os atos discriminatórios “menores” que surgem no dia-a-dia da personagem – e devo dizer que, de minha parte, acredito que tudo aquilo presente na obra de fato acontece na vida de uma transexual (ou seja: o filme não força a barra utilizando recursos artificiais para que o espectador sinta pena da protagonista). Há, sim, uma cena específica onde Marina é submetida a xingamentos e ataques físicos, mas não é isto o que está sendo discutido por Sebastián Lelio. Assim, o que o roteiro mostra é que simpatizar com a causa LGBT não impede que você ocasionalmente possa verbalizar um insulto apenas por descuido ou desinformação, pois até mesmo os maiores pacifistas podem tropeçar apenas por não compreenderem o que os hostilizados realmente têm que suportar.
Mas mais do que isso: se Lelio faz um excelente trabalho como roteirista, o mesmo pode ser dito sobre seu desempenho enquanto diretor. Cuidadoso tanto na maneira como estabelece a trama quanto nas técnicas que emprega para contá-la, o cineasta desenvolve um tom sensível e sincero que se torna fundamental para que a narrativa seja satisfatoriamente impactante e efetiva, saindo-se igualmente bem ao frisar pequenos detalhes cênicos que potencializam a situação degradante em que Marina está inserida (como um símbolo que indica que ela está num banheiro masculino ou um pequeno letreiro escrito “basura” – ou “lixo” – ao seu lado). Além disso, Lelio também cria algumas passagens contemplativas que ilustram bem o estado de espírito da personagem, algo que pode ser observado numa sequência onde ela vai à boate e “levita” ao finalmente encontrar alguma paz (mesmo que momentânea). Isso porque não citei, é claro, algumas imagens inesquecíveis como a que traz um espelho ocultando a região pélvica de Marina e refletindo seu rosto, apontando aquilo que define quem ela é: sua personalidade, não um pênis ou uma vagina.
Para completar, Uma Mulher Fantástica não funcionaria da mesma forma se não contasse com uma atuação principal digna – e, neste sentido, Daniela Vega é uma revelação e tanto: mantendo-se coerente com a sutileza e objetividade prezadas pelo roteiro, a atriz não vê necessidade de se render a explosões e gritos constantes, entregando uma performance física meticulosa e que transmite emoções profundas através de expressões corporais ligeiras. E se Vega consegue manifestar uma série de sentimentos complexos e sofridos a partir de seu olhar, a mesma eficácia pode ser constatada na maneira como a personagem parece segurar suas frustrações e raivas particulares, exprimindo-as de vez em quando através de uma contração nos lábios ou socos num brinquedo de fliperama. Desta forma, os dramas que ocorrem na cabeça de Marina soam sempre naturais e convincentes, algo que certamente se deve – em grande parte – à capacidade que Daniela Vega tem de saltar do pânico ao aborrecimento e da desilusão à autoconfiança.
Despontando desde já como um forte candidato às categorias estrangeiras nas premiações de fim de ano, Uma Mulher Fantástica é um filme belíssimo que, após passar uma hora e meia retratando tantas atrocidades, ao menos consegue encontrar tempo para criar um terceiro ato catártico sem fragilizar a mensagem daquilo que veio antes. A verdade é que esta é uma daquelas obras que deveriam ser apreciadas por todas as pessoas, pois não é todo dia que surge um longa que denuncia com tanta habilidade uma discriminação sutil que pode surgir até mesmo nos indivíduos que se veem como progressistas e humanitários natos.