Quando foi anunciada a produção de um filme (que depois foi transformado em dois) sobre o caso Suzane von Richthofen (ou seja: o assassinato de Manfred e Marisia Richthofen em 31 de outubro de 2001 pela própria filha, pelo namorado desta e pelo irmão deste), a Internet foi prontamente inundada por dezenas de comentários precipitados que, cada um com quatro pedras na mão, criticavam de antemão os realizadores acusando-os não só de explorar uma tragédia, mas – o pior – de tentar glorificar os feitos de uma assassina. O que fundamentou estas ideias pré-concebidas, eu honestamente não sei – e também não entendo por que as pessoas foram tão rápidas e efusivas em protestas contra os longas sobre o crime de Richthofen, mas raramente têm interesse em discutir a “ética” e/ou a “moral” de várias obras fictícias que Hollywood vive despejando nos cinemas a partir de fatos trágicos reais, desde biografias de serial killers até a grande maioria do subgênero dos “filmes de guerra” (especialistas em cosmetizar a violência do mundo real e em tratá-la como algo empolgante e/ou heroico). Talvez o fato de o crime em questão ter ocorrido no mesmo país que o nosso crie uma proximidade com o caso que torna mais fácil perceber o oportunismo midiático por trás de uma empreitada como esta.
Feitas estas considerações, devo confessar que, após conferir A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais, dois longas complementares sobre o caso Richthofen, fui tomado por uma série de dúvidas também relativas à motivação do projeto como um todo. Não, minhas indagações não tinham a ver necessariamente com a questão da “exploração da violência” que apontei no parágrafo anterior; tinham a ver com o fato de que eu simplesmente não conseguia entender o propósito criativo que levou à concepção daqueles filmes: afinal, o que o diretor Maurício Eça e o roteiro de Raphael Montes e da criminóloga Ilana Casoy (que escreveu um livro sobre os casos Richthofen e Nardoni) queriam/tinham a dizer sobre o crime que já não soubéssemos de cabo a rabo? O que estes dois filmes têm a propor (artística e/ou tematicamente) sobre o assunto?
Pois é justamente este o erro fatal de A Menina… e O Menino…: preocupados em cumprir com a obrigação comercial de se fazer um filme sobre o crime em questão, os realizadores não pararam para pensar por que fazê-los – e, com isso, acabaram criando uma obra que se contenta em apenas ilustrar, de forma literal e “imparcial”, os depoimentos que Suzane von Richthofen e Daniel Cravinhos prestaram no julgamento em 5 de junho de 2006, fazendo o espectador chegar ao final de quase três horas* de projeção (cada longa tem pouco mais de 80 minutos) com a amarga sensação de que toda aquela experiência não lhe agregou em absolutamente nada nem lhe fez compreender melhor a psique daqueles indivíduos ou qualquer coisa sobre o contexto em torno destes.
Neste sentido, chega a ser engraçado quando um letreiro surge durante os créditos dizendo “Entender a dinâmica psicológica que envolveu esse crime de excepcional repercussão pública, bem como o seu julgamento, não o justifica, mas é fundamental para se conhecer aspectos da natureza humana e da própria sociedade”. Ora, o que estes dois filmes analisam de fato? O único resultado concreto que Eça e o roteiro conseguem alcançar é uma reconstituição dos depoimentos de Richthofen e Cravinhos – depoimentos estes que sabemos que foram mentirosos em maior ou menor grau, enviesados por cada um com o intuito óbvio de aliviar/incriminar um lado ou outro, o que abre um problema notório de um ponto de vista puramente dramático: por mais que os longas tentem esforçadamente criar um mistério do tipo “qual dos dois está mentindo” ou “quem é o(a) assassino(a)?”, a tentativa fracassa graças ao simples fato de que já acompanhamos o caso na vida real (lembrem-se: foi há menos de 20 anos), já conhecemos a conclusão que tudo aquilo terá e – de novo – já sabemos que tanto Richthofen quanto Cravinhos foram tendenciosos em seus depoimentos, fazendo o esforço dramático dos filmes soar tolo, inútil. (Algo similar ocorreu no pavoroso A Irresistível Face do Mal, que tentava realmente deixar o espectador incerto quanto à culpabilidade de – juro! – Ted Bundy, que todos sabemos que se tratava mesmo um serial killer.)
E já que estamos falando tanto em “lados”, o que A Menina… e O Menino… parecem não perceber é que o caso Richthofen não foi um daqueles casos “inconclusivos”, que deixaram uma série de pontas soltas e sobre os quais até hoje não se sabe bem o que aconteceu. Também não foi uma questão de “Há o lado de Richthofen, há o lado de Cravinhos, então coloquemos os dois na balança e tentemos chegar a um consenso”; foi um caso que contou com rigorosa investigação e sobre o qual os próprios depoentes já admitiram com detalhes – cada vez mais ao longo dos anos que sucederam o julgamento em 2006 – os próprios crimes e a forma com que estes foram executados, fragilizando, mais uma vez, qualquer tentativa besta de se criar um suspensezinho acerca do desfecho do caso. (Eu poderia mencionar o fato de que eles não são os únicos nomes presentes no tribunal (leia-se: os únicos a compartilharem versões e interpretações próprias do crime diante do juiz): há Cristian Cravinhos, co-autor do assassinato; há Andreas Richthofen, o irmão mais novo de Suzane e talvez a maior vítima desta; há a promotoria; etc. Mas… enfim, os filmes realmente parecem acreditar que, só de ouvir os depoimentos de Suzane e Daniel, já podemos compreender o assunto e “Entender a dinâmica psicológica que envolveu esse crime (blábláblá)”.)
Dito isso, é importante destacar que tanto A Menina… quanto O Menino… possuem sua parcela de virtudes – e a principal delas, para mim, reside no bom desempenho da atriz Carla Diaz, que, auxiliada pelos figurinos e pelo penteado que a aproximam visualmente da verdadeira Suzane von Richthofen, demonstra ter mergulhado a fundo nos estudos que fez sobre a biografada, mostrando-se hábil não só ao emular seu sotaque paulista (há dois ou três momentos nos quais Diaz deixa escapar um chiado carioca, mas nada que não se possa relevar), mas seu tom de voz doce, de criança, o que serve tanto para retratar a imaturidade de Suzane (quando precisamos enxergar isto nela, mais em O Menino…) como também para fazer seus arroubos de perversidade soarem ainda mais macabros, como se presenciássemos a revelação de um monstro dentro do que julgávamos ser uma menininha. O mais importante, contudo, é perceber como Diaz se manteve atenta àquela que é – ao menos, para mim – a característica mais marcante da Richthofen original: seu olhar profundo, expressivo, que seduz e intimida, atrai e repele, na mesma medida e ao mesmo tempo. Outro que se sai bem é Leonardo Bittencourt, que encara o desafio de retratar Daniel Cravinhos tanto como um jovem sonhador e bem-intencionado quanto como um namorado bruto e propenso à violência – e, no meio disso, ele também ilustra (em A Menina…) como a influência de Suzane vai se manifestando aos poucos em Daniel através de atitudes pontuais, mas cada vez mais destrutivas, sendo bem-sucedido mesmo que os filmes pontualmente o coloquem em situações/diálogos ridículos como aquele em que encena de brincadeira uns tiros que gostaria de dar no casal Richthofen e, com isso, dispara na namorada a ideia de matar os pais.
Para completar, há a caretice do projeto ao pintar Suzane e Daniel como dois jovens “vida lôka” que foram estimulados a se tornarem psicopatas por conta de más influências como… maconha e sexo selvagem: em ambas as versões, um protagonista acusa o outro de tê-lo introduzido à erva, como se esta fosse o gatilho para as ideações homicidas – e mesmo que tenha sido exatamente isto que Suzane e Daniel sugeriram em seus depoimentos, o fato de os filmes retratarem a droga como o catalisador de todas as ações posteriores já denota uma postura moralista por conta própria, sendo incrementada pela forma cafona com que Eça retrata as cenas dos dois fumando e transando cobertos por luzes vermelhas, diabólicas, e ao som de rock, rap e raggie (nacional e internacional). Sugestivo até demais, não?
Seja como for, A Menina Que Matou os Pais e O Menino Que Matou Meus Pais são obras que, embora partindo da interessante ideia de dividirem a narrativa em dois e dedicarem um filme a cada integrante daquele relacionamento (obviamente tóxico, que destruiu as vidas tanto de Suzane quanto de Daniel), acabam desapontando justamente por não terem nada de novo a propor sobre o assunto que buscam discutir.
Sim, mesmo dispondo de dois filmes e de quase três horas, o projeto ainda assim soa vazio e – o mais irônico – sem nada a dizer.
*Se mencionei “três horas”, é porque considerei os dois filmes como partes intrínsecas de uma obra conjunta, preferindo analisá-los em uma única crítica em vez de separá-los em duas. Aliás, caso alguém pergunte se há alguma “ordem” para assistir aos longas: eu, particularmente, comecei com A Menina…, terminei com O Menino… e sinto que foi uma decisão bastante adequada – embora isto tenha tornado mais evidente a queda no nível dos diálogos e das atuações do primeiro para o segundo.