A visão do comediante Henry McHenry sobre o mundo e sobre os indivíduos ao seu redor é materialista ao extremo: para ele, os indivíduos ao seu redor (mesmo aqueles que diz considerar entes “queridos”) têm um valor a oferecer, uma utilidade mercadológica que o ajude a manter seu nome em destaque na mídia – e até a maneira com que o sujeito enxerga a passagem do tempo é indiferente, completamente aérea, já que cada segundo de sua existência é dedicado a pensar em como perpetuar seu status de “figura pública”. Autodestrutivo a ponto de comprometer sua carreira em nome da inveja e obcecado pelo prestígio a ponto de destruir aqueles que jurou amar até o fim, Henry é tão desesperado em se manter no topo, em evidência, que não hesita em capitalizar em cima de sua própria filha, Annette, chegando a vê-la literalmente como um boneco de madeira – e, como o comediante é o protagonista deste filme, o ponto de vista que ele tem sobre a menina-título passa a ser também o nosso.
Novo trabalho do francês Leos Carax (responsável, entre outras coisas, pelo excelente Holy Motors), Annette é um musical que faz jus à mentalidade ambiciosa e plasticamente suntuosa de seus personagens, que, no caso, são a cantora Ann Defrasnoux e o já citado comediante de stand-up Henry McHenry. Perdidamente apaixonados um pelo outro (ou, pelo menos, até que algo provoque a autodestruição dos dois), o casal constitui um daqueles casos de “opostos que se atraem”, já que, embora dividindo a melancolia e a predileção por palcos e pelo glamour de Los Angeles, Ann é uma artista essencialmente dramática, cujas óperas têm a tragédia como base, enquanto que Henry é um profissional que trabalha com o humor, com a possibilidade de transformar as estranhezas e as dores do mundo real em gargalhadas de plateias lotadas (o que, parando para pensar, não é tão distante de Ann assim, já que um dos aspectos mais conhecidos da comédia é como esta se complementa pela tristeza ou pela desgraça). Tudo muda, porém, quando Ann dá à luz a Annette, cujo surpreendente dom para a Música leva o pai Henry (agora com a carreira em declínio) a explorá-la ao máximo possível, transformando-a em sensação mundial.
Assumindo desde o primeiro minuto de projeção o caráter lúdico e, principalmente, farsesco que se sobressairá nas mais de duas horas seguintes (a ponto do filme começar com os personagens se dirigindo diretamente ao espectador a fim de pedir sua atenção antes da história começar, rompendo com qualquer tentativa de “imersão” e deixando clara sua autoconsciência enquanto filme, encenação), Annette não só abraça como leva ao extremo o melodrama proposto pela abordagem de Leos Carax – e que o professor Patrice Pavis descreve como um gênero teatral cujo objetivo era criar uma “identificação fácil” no espectador, dependendo menos da complexidade do texto e mais de “grandes reforços de efeitos cênicos”. Assim, as expressões adotadas pelos atores elevam ao máximo possível cada emoção (principalmente a dor) sentida por seus respectivos papeis, as letras das canções ouvidas ao longo da projeção fazem questão de didatizar tudo que se passa nas cabeças dos personagens (eles exprimem seus sentimentos de forma bastante literal) e o modo com que Carax encena cada passagem da narrativa se assemelha a um espetáculo, a um teatro, como se toda e qualquer ação de Henry, Ann ou O Acompanhante (o pianista vivido por Simon Helberg) estivesse elevada em um palco – um efeito que o designer de produção Florian Sanson ajuda a alcançar ao assumir as cores e a artificialidade como as bases fundamentais de seu trabalho.
Esta mesma artificialidade, aliás, condiz com a maneira distante com que aqueles artistas – em particular, Henry – se enxergam com relação ao mundo que os cerca, colocando-se do alto de seus pedestais. Portanto, não é à toa que o único momento no qual Carax rompe um pouco com esta abordagem colorida e farsesca seja justamente aquele que encerra a narrativa e que (esforçando-me para evitar spoilers pesados) finalmente arranca Henry de seu universo de fantasia particular, trazendo-o à força para o mundo real (e para as consequências deste). Mas este rompimento, claro, dura apenas alguns minutos e imediatamente em seguida o cineasta volta à musicalidade onírica dos quase 140 minutos anteriores com o propósito claro de realçar, afinal, a melancolia de Henry e Annette diante da vida que jamais terão – e que poderiam ter tido se o pai não fosse tão problemático.
Como podem perceber, a literalidade das letras das músicas de Annette não torna sua narrativa menos sombria nem diminui a ambiguidade de seus temas e de seus personagens. Talvez esta seja uma das grandes proezas de Leos Carax: mostrar como o melodrama não é um gênero “menor”, “menos potente” ou “menos verdadeiro” por ser mais direto nos efeitos catárticos que busca provocar – e basta se deparar com algo como Annette para notar que não faz sentido usar o termo “melodramático” (ou “teatral”, ou “novelesco”) de forma pejorativa. Além disso, Carax incorpora a visão fria e materialista de Henry sobre o mundo e as pessoas à sua volta (resultante do distanciamento que a fama e o dinheiro lhe permitiram ter) não só no espaço, mas no tempo do filme, sendo interessante que os personagens transitem entre fases drasticamente diferentes da vida (da aspiração ao estrelado, do Céu ao Inferno, do auge à decadência) em questão de poucos segundos de projeção – e, com isso, Carax e o montador Nelly Quettier criam uma impressão de suspensão no tempo (mesmo que este encubra meses, até anos) que é perfeitamente condizente com a indiferença daquelas celebridades com relação ao mundo que vêem do alto do apogeu (e que sustenta suas carreiras).
Numa das melhores performances de sua já formidável carreira (é surreal que ele venha recebendo mais destaque na temporada de premiações por Casa Gucci do que por Annette), Adam Driver entrega-se de corpo e alma a um papel que obviamente exige muito em termos de atuação, seja ao retratar como a frustração e a obsessão consomem Henry McHenry de modo mais contido (em seus momentos mais solitários, introspectivos), seja ao ilustrar as explosões de Henry McHenry nos instantes íntimos de raiva (em casa, na vida particular) e/ou em suas apresentações de stand-up (o que, na prática, talvez nem implique em uma diferença tão gritante, já que as dores que o comediante relata no palco são fruto das verdadeiras que sentiu – e sente – fora dali, apenas reembaladas para um público em forma de comédia).
Assim, Driver frequentemente desce ao nível do patético para escancarar como Henry o é – o que não torna menos notável sua entrega durante os números musicais, algo que também se aplica a Marion Cottillard (mas, neste caso, não é surpresa alguma, considerando sua já conhecida vocação para o canto), que, por sua vez, encarna Ann como uma figura simultaneamente trágica e apaixonada, complementando bem a postura melancólica, mas rígida de Henry.
É em Annette (filme e personagem), contudo, que os dois resultam ao se fundirem. É nela que a tragédia e a farsa passam a ocorrer não como repetição uma da outra (como observou Karl Marx), mas como fatos simultâneos.
(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)