Eu tenho uma memória de quando tinha por volta de dois ou três anos de idade (ou seja: há duas décadas) que até hoje não sei se foi real ou falsa: na janela do apartamento de meus saudosos avós, avistei na rua um cara vestido de Ghostface, o slasher da franquia Pânico, e evidentemente levei um susto. (Por alguma razão, sempre que esta memória me vinha à mente ao longo dos anos, a imagem da tal figura vinha acompanhada de uma gargalhada maligna, um “Muahahahaha!” parecido com a risada de Vincent Price ao final do Thriller de Michael Jackson e que obviamente foi delírio meu.) Como falei, não sei se aquela cena aconteceu de fato (alguém indo para uma festa a fantasia) ou se não passou de mera ilusão (um sonho que tive na época e que se misturou à memória da realidade, talvez), mas, de todo modo, ela ajuda a ilustrar a força que a série Pânico tinha naquele tempo e a onipresença de seu vilão em praticamente tudo que envolvesse terror, desde festinhas de Dia das Bruxas até reportagens sobre o assunto. Para mim – e para a maioria das crianças que cresceram entre os anos 1990 e 2000 –, Ghostface não era só o vilão daqueles filmes, mas a representação física do conceito de horror.
O que é curioso, já que, revendo Pânico hoje em dia (com 20 anos a mais de vivência e de filmes assistidos), o aspecto que mais me fascina no longa é a forma irreverente, quase ridícula, com que o lendário Wes Craven (simplesmente o mestre por trás de A Hora do Pesadelo) enxerga a figura do assassino em questão: ao contrário da maioria dos demais slashers, que eram comumente enfocados como monstros rígidos, fisicamente assustadores e que transmitiam uma ameaça tão iminente que nem precisavam mover-se rapidamente para fazer suas vítimas sentirem que escapar de suas garras era impossível, Ghostface é desde o princípio tratado como uma criatura mais… digamos, vulnerável (ou menos imponente). Ele pode até assustar e cometer barbaridades, mas, na maior parte do tempo, é também um vilão que corre desajeitadamente, tem dificuldades para alcançar suas presas e, sejamos francos, mais apanha do que coleciona vítimas, já que o tempo todo ele aparece caindo (ou sendo jogado) no chão e sendo acertado na cara com socos, chutes, portas, telefones, garrafas de cerveja e até uma tevê de tubo.
Este detalhe, por sinal, diz muito sobre uma das virtudes que tornam Wes Craven tão único no que faz(ia) e que fazem toda a diferença em Pânico: sua capacidade de oscilar entre o riso e o susto, entre a autoironia e o sentimento de urgência, com uma habilidade que a maioria dos cineastas falharia em tentar alcançar – ou talvez até alcançassem, mas não com a mesma perspicácia. Vai além de chocar o espectador e em seguida surpreendê-lo com uma piadinha (ou vice-versa); trata-se de provocar as duas reações na mesma cena, às vezes até no mesmo plano, como acontece em vários momentos de Pânico nos quais torcemos, inquietos e na ponta da cadeira, para que um(a) personagem escape das garras de Ghostface ao mesmo tempo em que rimos (nem que seja um risinho solto) por vermos o vilão tropeçando e acertando a cara numa pia ou sendo atingido por seja lá o objeto que for. Mais revelador ainda: trata-se de transformar o jump scare (aqueles sustos abruptos que normalmente vêm acompanhados de um estrondo repentino na trilha sonora) em uma piada recorrente, brincando com as nossas expectativas sem deixar de nos fazer dar um pulinho na cadeira (pena que a piada seja recorrente até demais, perdendo a graça quando repetida pela 28ª vez).
Aliás, brincar com nossas expectativas é justamente aquilo que tornou Pânico tão influente e que elevou o roteirista (estreante) Kevin Williamson ao status de celebridade na época, não sendo à toa que, em todo projeto no qual tocou nos anos seguintes, seu nome tenha tido destaque no pôster. Autoconsciente do gênero ao qual pertence desde o primeiro minuto de projeção, quando o vilão conversa com uma jovem (vivida por Drew Barrymore) ao telefone sobre filmes de terror e depois faz um “quiz da morte” com a garota (que termina numa questão cruel de tão capciosa: garanto que 99% das pessoas que ouvirem a pergunta “quem é o vilão de Sexta-Feira 13?” responderão “Jason Voorhees” em vez de “a mãe de Jason no primeiro”), o longa é bem mais hábil ao empregar sua capacidade de “rir dos slasher movies” para de certa maneira celebrar seus clichês do que para “desconstruí-los” – e, assim, quando a protagonista Sidney Prescott aponta a tolice dos personagens de terror que preferem fugir dos vilões por uma escada em vez de pela saída principal (o que parece o mais fácil), imediatamente depois, quando ela é atacada por um assassino, ela descobre que… bom, a saída principal pode estar trancada e que escapar pela escada talvez seja a única solução; quase como se Craven e Williamson cutucassem o espectador e dissessem “Viu como é mais fácil reclamar do que fazer? Viu como na hora é muito mais difícil?”.
Por outro lado, um dos aspectos mais celebrados da franquia, a tal “metalinguagem” de o filme se reconhecer como filme e ironizar diversas convenções dos slasher movies, se dá basicamente através de citações literais a personagens conhecidos, a convenções batidas das obras de terror (se um personagem diz “Eu já volto”, é porque ele será morto antes de voltar) e a detalhes sobre outras franquias, atores e curiosidades ao redor destes (Jamie Lee Curtis só viria a mostrar os seios a partir de 1983, por exemplo) – o que, embora funcione até certo ponto e represente um dos grandes charmes do filme, também cansa depois de um tempo, já que o objetivo destas menções parece limitado à referência em si. Mais eficiente é a maneira com que o longa constrói seus personagens, que ora assumem os arquétipos que representam e funcionam justamente por assumi-los (a “menina virgem que se descobrirá ativa e forte a ponto de enfrentar o vilão” interpretada pela ótima Neve Campbell), ora os subvertem (se fosse outro filme, a repórter babaca de Courteney Cox provavelmente terminaria morta em um momento enfocado como catártico, porém aqui ela ganha a chance de se destacar no clímax contra o assassino, ao passo que o esquisitão encarnado por David Arquette normalmente se resumiria a apenas isso em vez de ser elevado a um posto mais digno, como acontece aqui).
Nenhuma surpresa, porém, tem o peso da revelação da identidade de Ghostface, que – spoiler… de um filme que tem 25 anos – surpreende por ser ao mesmo tempo a mais óbvia (Billy, o ex-namorado de Sidney, que desde o princípio se mostrava um sujeito frio, egocêntrico e insensível) e a mais inusitada (não era um assassino, mas dois; Stu, o anfitrião da festa que abriga a segunda metade da narrativa, atacava em conjunto). Se antes esperávamos que aquela máscara escondesse o rosto improvável de alguém com um histórico minimamente elaborado, no fim descobrimos uma dupla de moleques que decidiram se aventurar no mundo dos assassinatos seriais pela diversão da coisa, pelo caos que poderiam provocar (embora Billy tente inventar uma desculpa, esta vem após ele afirmar que “Não havia motivação para nada daquilo” – e, se havia no caso dele, com certeza não havia no caso de Stu, que era só maluco mesmo).
Uma revelação que funciona não só por fugir da obviedade, mas por ajudar a estabelecer Ghostface como um slasher ainda mais atípico em um filme apropriadamente irreverente.
E acho que agora entendo o cara de máscara que deve ter passado em frente à casa dos meus avós: o que motivou a febre pop que o levou a fantasiar-se daquele personagem não foi o medo que este provocava, mas a simplicidade casual que o tornava tão… único.