Apresentando os Ricardos é a constatação máxima de que todas as críticas que costumam ser feitas a Aaron Sorkin como diretor têm cabimento. Terceiro trabalho do cineasta, este novo longa basicamente confirma aquilo que A Grande Jogada e Os 7 de Chicago já apontavam (mesmo que este último sugerisse uma pequena evolução): Sorkin pode ser um bom roteirista (A Rede Social, O Homem Que Mudou o Jogo e Steve Jobs não me deixam mentir), mas vem se mostrando um diretor aborrecido e sem personalidade.
Curiosamente, em nenhuma das duas funções ele se destaca em Apresentando os Ricardos.
Adotando uma estrutura que salta entre flashbacks, flashfowards e falsas “entrevistas” de executivos da CBS (uma dinâmica que pode parecer complexa à primeira vista, mas que o filme consegue tornar simplória na prática), o longa se concentra num recorte de sete dias do ano de 1953 para contar a história da crise que abalou o casamento e a carreira da icônica Lucille Ball, que, ao lado do marido Desi Arnaz, estrelava a emblemática série I Love Lucy – uma sitcom que, assistida por cerca de 60 milhões de espectadores a cada semana, se estabeleceu como uma das obras mais influentes da História da TV norte-americana. No entanto, o reinado de Ball é ameaçado quando um artigo é publicado em um jornal acusando-a de ser comunista (lembrem-se: eram tempos de macarthismo), resultando no desespero dos produtores de I Love Lucy e na suspensão do contrato da atriz com a RKO. Como se não bastasse, Ball se descobriria grávida no mesmo período, o que criaria mais uma série de conflitos com os chefões da CBS, e ainda enfrentava um conflito interno com Desi Arnaz que viria a abalar seu casamento.
O que Aaron Sorkin não parece entender, contudo, é que não adianta criar uma narrativa repleta de idas e vindas no tempo e de crises matrimoniais e profissionais se estas serão dirigidas no piloto automático, jogando seu potencial dramático no lixo ao torná-las emocionalmente inócuas. Pois o fato é que, ao longo de 131 minutos, não há um único momento em Apresentando os Ricardos que escape da obviedade nem um único plano que pareça inspirado em sua concepção; do início ao fim, o que vemos é obra de um cineasta que se limita a somente ilustrar o que era descrito pelo roteiro em vez de pensar e articular uma mise-en-scène interessante, que narre as situações imageticamente sem recorrer apenas aos diálogos verborrágicos que já se encontravam no papel – e mesmo nas raríssimas ocasiões em que Sorkin tenta injetar algum dinamismo visual, os esforços se restringem ao básico do básico (exemplo: os personagens planejam uma cena de I Love Lucy e, quando trechos da sequência em questão surgem como rápidos flashfowards, estes são fotografados em preto-e-branco – porque… hey, a sitcom original era em preto-e-branco).
Neste sentido, até a decisão de Sorkin de intercalar as cenas do passado de Lucille Ball e Desi Arnaz com “depoimentos” de atores interpretando produtores da CBS contando como foram os bastidores de I Love Lucy acaba soando… tola, como um esforço desesperado de fingir uma criatividade estilística/narrativa quando, na verdade, a única função prática daquelas entrevistas é verbalizar, de forma didática e expositiva, tudo aquilo que aconteceu/acontecerá na cena anterior/seguinte (sim, para Sorkin o espectador é burro a ponto de precisar que alguém dentro do filme pare e explique o que nele acontece). Nem aquela agitação que Sorkin incutia (artificialmente) na forma de seus trabalhos anteriores (em especial, através da montagem, que buscava acompanhar a velocidade dos diálogos e da racionalidade dos personagens) está presente aqui, dando espaço ao absoluto marasmo justamente em uma trama na qual a ansiedade teoricamente deveria se fazer presente (por todos os conflitos de Lucille, Desi, executivos da CBS, etc).
Com isso, Apresentando os Ricardos abre mão de qualquer tentativa de encenar seus conflitos de modo instigante e delega praticamente todo o potencial dramático de sua narrativa aos diálogos e às atuações – o que é uma pena, já que a qualidade do texto de Sorkin não poderia estar mais aquém de seus trabalhos anteriores, resumindo a maioria das conversas entre os personagens a simplificações infantis e expositivas de seus dramas (ou seja: mais uma vez, o que sobra é o básico do básico). Ainda assim, é preciso apontar que Nicole Kidman e Javier Bardem fazem o máximo possível com o pouco que têm em mãos, saindo incólumes à mediocridade do material que os envolve – e o modo com que Kidman resgata os trejeitos, a dicção, as expressões, os olhares e os pormenores da Lucille Ball original sem parecer uma caricatura criada em laboratório para receber prêmios é, de fato, admirável. Por outro lado, o motivo que levou J.K. Simmons (um ator que amo, mas que aqui se mantém no corriqueiro) a ser indicado ao Oscar é um mistério que só posso atribuir a um único fator: lobby da Amazon, que distribuiu o filme no catálogo do Prime Video.
Confundindo-se tematicamente em seus 15 minutos finais (que, na tentativa de defender o direito de Lucille Ball ser quem é, acabam fazendo justamente o contrário ao mostrar como ela só pôde ser aceita pelo público após negar ser comunista), Apresentando os Ricardos ainda traz um detalhe que acaba expondo ainda mais o cinismo do projeto como um todo: a escalação do espanhol Javier Bardem para o papel de um… cubano. Afinal, para o norte-americano médio, “falar espanhol” é equivalente a “ser latino” – uma xenofobia que o próprio filme denuncia em dois ou três momentos e, mesmo assim, acaba cometendo.
Pois é curioso que um longa que faz tanta questão de se vender como apoiador da diversidade e das causas identitárias exiba uma miopia cultural tão óbvia uma postura típica de estadunidense que adora posar de progressista, mas se recusa a pisar fora de sua torre de marfim imperialista e ignorante ao resto do mundo.
Que é exatamente o que Apresentando os Ricardos é.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)