Os planos-detalhe são frequentes em Ataque dos Cães, novo trabalho da neozelandesa Jane Campion desde Brilho de uma Paixão, em 2009. Das pétalas das flores artesanais criadas por Peter (Smit-McPhee) ao velho lenço que Phil (Cumberbatch) delicadamente cheira deitado no campo e que o remete a um passado que não volta mais; dos pés de Rose (Dunst) e George (Plemons) enquanto a moça ensina o marido a dançar no alto de uma colina; do laço preparado por Phil como presente a Peter à antiga sela do cavalo do falecido Bronco Henry que o personagem de Benedict Cumberbatch mantém guardada num lugar especial do celeiro, como se fosse um objeto sagrado, uma relíquia de uma era antepassada na qual as coisas eram melhores e mais esperançosas.
Em momento algum vemos o rosto de Bronco Henry, mas sua presença não poderia ser mais sentida.
Escrito e dirigido por Campion (Retrato de uma Mulher, Fogo Sagrado, Em Carne Viva), o filme se divide em cinco capítulos que acompanham as tensões ocorridas em uma fazenda no interior de Montana, em 1925. Quando o proprietário do local, George Burbank, se aproxima da viúva Rose, que administra um restaurante ao lado do tímido filho Peter, e a pede em casamento, seu irmão Phil (um vaqueiro solitário, imundo e grosseiro) reage às novidades da forma mais agressiva possível – afinal, Peter é homossexual e Phil, um homofóbico odioso que não hesita em humilhar e atacar o rapaz na primeira oportunidade que lhe surgir. A partir daí, a dinâmica entre os ocupantes daquele espaço já começa dotada de tensão, com ninguém sabendo qual será a próxima atitude de Phil e com este, por sua vez, sentindo-se acuado em um ambiente no qual julgava ser autoridade máxima. O que ninguém imaginava, porém, é que o caubói guarda uma série de segredos sobre seu passado que… bom, acabam revelando muito sobre ele e seus comportamentos.
Gênero historicamente associado a tipos durões e mal-encarados que seriam adotados como exemplos de virilidade pelos “machões”, o western é revisitado em Ataque dos Cães sob uma ótica tão introspectiva e sensível quanto todos aqueles planos-detalhe que mencionei no início já indicavam – uma revisitação que Jane Campion cumpre com um dos mesmos objetivos de Kelly Reichardt em First Cow: voltar a um gênero presente nas bases do Cinema norte-americano a fim de reavaliar, também, as bases da própria fundação da América. Ambas o fazem com o propósito de observar como aspectos da concepção (social, estrutural, econômica, religiosa, etc) daquela nação são diretamente responsáveis pelo que entendemos por ela hoje; a diferença é que, se o interesse primordial de Reichardt era o de apontar como o capitalismo e a lógica neoliberal que nos assombram hoje já eram germinados lá atrás, o de Campion é enfocar como as dinâmicas de poder (pautadas por gênero e sexualidade) são uma doença presente na própria fundação daquele que se gaba como um “país livre”.
Em outras palavras: a homofobia e a misoginia são componentes da própria gestação da América como a conhecemos. (Eu adicionaria a transfobia, o fundamentalismo religioso, a exploração dos trabalhadores por parte da burguesia, mas… enfim, estes tópicos não são o foco do trabalho de Campion, então não os abordarei aqui.)
Com isso, o arquétipo do caubói viril, rígido e/ou carrancudo é não apenas desconstruído, mas confrontado pela abordagem de Jane Campion – algo que a princípio remete ao que Ang Lee fez no magnífico O Segredo de Brokeback Mountain, mas com a diferença de que, no caso de Ataque dos Cães, a persona clássica do “caubói valentão e silencioso” surge, de forma mais escancarada, como uma fachada para as inseguranças do personagem que a assume, apresentando Phil como um indivíduo que recorre desesperadamente a um padrão de masculinidade (comum em vários heróis do gênero western) apenas para fugir de seus próprios dilemas e impedir a aproximação de qualquer outro ser humano que o faça acessá-los novamente.
Pois se Benedict Cumberbatch (num dos melhores trabalhos de sua carreira) consegue a proeza de fazer o espectador saltar, entre a primeira e a segunda metades da projeção, do ódio absoluto por um indivíduo que parecia irrecuperável à vontade súbita de aproximar-se dele a fim de pelo menos descobrir quem ele é, trazendo delicadeza e ternura sufocadas pela paranoia em encaixar-se nos padrões de “masculinidade” que a sociedade moldou e que destroem Phil a ponto de torná-lo repugnante, Kodi Smit-McPhee retrata Peter como um garoto obviamente dolorido, mas não a ponto de negar para si mesmo sua natureza e sua essência (e é um alívio que a relação surpreendente que constrói com Phil a partir do quarto capítulo – e que ecoa a dinâmica daquele vaqueiro com o saudoso Bronco Henry – não termine sugerindo que Peter vai replicar os mesmos erros de seu mentor, prometendo trilhar um caminho que lhe permita ser quem é), ao passo que Kirsten Dunst surge como uma das personas mais trágicas da obra por acompanhar ao vivo a degradação (graças a Phil) de uma família para a qual entrou com a expectativa de finalmente poder compensar o vazio que a morte do marido lhe deixou – um vazio que Jesse Plemons tenta encobrir com sua postura pacata, gentil e, por isso mesmo, tocante.
A tensão entre as famílias que se encontram (George & Phil e Rose & Peter), aliás, é um dos elementos mais inquietantes de Ataque dos Cães, devendo-se mais uma vez à extrema sensibilidade de Jane Campion – e quando digo “sensibilidade”, não me refiro apenas à habilidade da diretora em criar momentos melancólicos ou tocantes, mas à importância da atenção que ela confere a cada pequeno detalhe das ações e dos gestos de cada personagem, transformando uma sutil e silenciosa disputa entre Rose (que treina piano) e Phil (que toca banjo para desconcentrá-la) em um dos momentos mais desconfortáveis de toda a projeção, não sendo à toa que boa parte da cena seja composta, de novo, por planos-detalhe. Enquanto isso, o designer de produção Grant Major retrata a residência dos Burbank como um ambiente cuja vastidão reitera constantemente a solidão interiorizada pelos personagens (principalmente por Phil), colocando-os sozinhos em meio a espaços tão extensos que a ausência de qualquer outro ser humano em cena torna-se ainda mais patente, ao passo que a soberba fotografia de Ari Wegner completa a tarefa ao utilizar luz e sombras para deixar os ocupantes daquela casa frequentemente isolados, delimitados, pela escuridão que os cerca.
Adotando um ritmo que permite ao espectador contemplar, absorver e processar cada golpe sentido pelos personagens e cada ato de carinhoso ou hostilidade executado e recebido por aqueles indivíduos, Ataque dos Cães é um filme cuja intensidade surge não do bangue-bangue (que, aliás, nem existe aqui), mas de uma humilhação ultra-homofóbica feita por Phil contra o indefeso Peter, de um gesto gentil feito por George para Rose ou – o mais significativo – do odor de Bronco Henry que Phil sente em um lenço e que o transporta diretamente para os tempos nos quais convivia com o antigo caubói; uma cena que Campion filma com tanta delicadeza (mesmo se tratando de um personagem escroto, que a princípio nem mereceria nossa empatia) que somos capazes quase de sentir a nostalgia do sujeito como se fosse a nossa – uma nostalgia que a brilhante trilha de Jonny Greenwood (uma das melhores de sua já brilhante carreira) ajuda a alcançar.
Que o personagem da cena em questão seja (ou pelo menos fosse até ali) um completo canalha comprova mais uma vez a maturidade de Jane Campion, que aceita mergulhar nas nuances e nas complexidades até do mais desprezível dos indivíduos que povoam suas narrativas. E que ela consiga encontrar facetas doces, comoventes e inesperadas dentro dele é uma proeza que reitera uma última vez a densidade (narrativa e dramática) de Ataque dos Cães.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)