Não há qualquer possibilidade de discutirmos Pantera Negra: Wakanda para Sempre sem levarmos em consideração alguns fatores extra-fílmicos – ou seja: que dizem respeito menos ao longa na tela e mais ao seu entorno. Aliás, mesmo se tentássemos deixar de lado algumas informações que sabíamos previamente sobre os bastidores da obra, ainda assim seríamos forçados a eventualmente trazê-las para o centro do debate, já que o próprio filme se encarrega de fazê-lo já nos primeiros minutos de projeção, quando, depois de oferecer uma breve explicação para a ausência do rei T’Challa (protagonista do original) nesta continuação, nos deparamos com uma (apropriadamente) longa sequência que absorve e reflete um sentimento de luto que obviamente provém não dos personagens em cena, mas dos atores que os interpretam e de todos os demais envolvidos na produção. A intenção não poderia ser mais clara: o indivíduo de quem a narrativa se despede ali não é T’Challa, mas seu intérprete, Chadwick Boseman (que faleceu precocemente em 2020).
Novamente dirigido pelo talentoso Ryan Coogler (Fruitvale Station, Creed, Pantera Negra) e co-escrito por este ao lado de Joe Robert Cole (que, além do capítulo anterior, trabalhou também na série American Crime Story), este Wakanda para Sempre tem início com a família real daquela nação aprendendo a lidar com a perda súbita de T’Challa e com a ausência de qualquer indivíduo que vista o manto de Pantera Negra – e, com isso, recai sobre a rainha-mãe Ramonda a missão de defender o país no exterior e preservar não só a segurança, mas a esperança do povo wakandano (“Nós sofremos a perda de nosso rei, mas não pensem que isso tirou de Wakanda a capacidade de lutar”, diz a personagem num discurso na ONU). Como se não bastasse, surge uma perturbação extra para tumultuar ainda mais a já complicada situação de Wakanda – desta vez, uma perturbação vinda das profundezas do oceano: Namor, rei da antiga e subaquática civilização de Talokan, vem à terra exigindo que os líderes wakandanos se juntem a ele numa missão contra as Nações Unidas, que ameaçam invadir aquela cidade submersa a fim de extrair dela um importante e raríssimo bem natural.
Em outras palavras: se por um lado Pantera Negra 2 tenta articular uma trama à parte envolvendo a iminência de uma guerra entre duas nações fictícias com interesses políticos conflitantes, por outro é também forçado, pelas circunstâncias extra-fílmicas que o cercam, a lidar com uma série de outras pendências que claramente não constavam nos planos iniciais de Ryan Coogler, mas que vieram em função do desafio que a morte de Chadwick Boseman criou para a produção – um desafio que, infelizmente, o filme nem sempre é hábil ao contornar. Assim, além de desenvolver as motivações de Namor, o funcionamento da cidade subaquática que lidera e o desejo de vingança que surge em Shuri (irmã enlutada de T’Challa) a partir de certo instante, o roteiro também se vê obrigado a: 1) explicar minuciosamente a ausência repentina de T’Challa aqui; 2) se aprofundar nas dores do luto experimentado pelos personagens; 3) reforçar a – sim, poderosa – mensagem de que, mesmo com a perda de seu representante máximo, o povo de Wakanda deve “seguir em frente” (o que mais do que justificaria o subtítulo do filme, que, não à toa, surge estampado no pôster em uma fonte consideravelmente maior do que o título em si); e 4) se estabelecer como um “filme-homenagem” para Boseman.
O resultado, portanto, dificilmente seria outro: ao dividir suas (ambiciosas) prioridades de forma tão distanciada, o longa acaba não conseguindo dedicar a atenção necessária para desenvolver cada uma delas com a eficiência ideal, fazendo certos elementos-chave da narrativa soarem frouxos e/ou superficiais – e não é à toa que, quando finalmente chega a hora de protagonista e antagonista se enfrentarem no terceiro ato, o efeito emocional provocado por aquela luta jamais parece resultante de uma escalada emocional que vinha se construindo com coesão ao longo das duas horas e meia anteriores, soando, em vez disso, como um confronto tecnicamente eficiente, mas carente de respaldo dramático. Para piorar, se o longa de 2018 converteu-se num incontestável fenômeno cultural graças à sua surpreendente ambição temática e à sua capacidade de articular/amarrar bem as questões que abordava (e que discutia com consciência e densidade notáveis), esta continuação mal encontra tempo para desenvolver qualquer tópico político que levante com um mínimo de profundidade, sucumbindo sobre o peso das próprias pretensões – o que culmina numa resolução terrivelmente apressada e preguiçosa para o embate entre Shuri, Namor e os povos que representam (sem spoilers, basta dizer que o roteiro simplesmente decide jogar para debaixo do tapete todas as dualidades que vinha construindo a fim de chegar logo a um desfecho para aquilo tudo).
Neste aspecto, nem como “filme sobre luto” Pantera Negra 2 funciona totalmente, já que, em vez de estabelecer o sentimento em questão como uma peça central (ou, no mínimo, constante) de toda a narrativa, o longa só encontra oportunidades para desenvolver as dores das personagens aqui e ali, em momentos pontuais – e bastante delimitados – da projeção. O que não significa, porém, que Coogler não alcance resultados comoventes – e, se há algo que certamente ajuda a colocar Wakanda para Sempre acima da média das produções recentes da Marvel, é o fato de que a maioria das emoções que o filme tenta provocar/comunicar soam legítimas, resultantes daquelas que os próprios responsáveis pela obra sentiam em primeiro lugar. Assim, quando vemos Shuri, por exemplo, chorar ao recordar-se do irmão, a cena é registrada por Coogler com uma delicadeza introspectiva e melancólica que consegue levar o espectador às lágrimas (ou a um nó na garganta, pelo menos) sem jamais soar manipulativa ou esquemática – e, por falar em Shuri, é importante destacar que Letitia Wright faz o que pode para conferir imponência e dimensão dramática a uma personagem que, até o filme anterior, era pensada quase como um alívio cômico, sendo bem-sucedida ao encarnar o sofrimento e as dúvidas da heroína diante do papel que agora assume, ao passo que Angela Bassett, mesmo sem protagonizar nenhuma cena de ação, se estabelece como a figura mais potente e intensa de toda a narrativa, evocando a dor da rainha-mãe Ramonda ao lidar não só com a perda repentina do filho, mas com as ameaças feitas ao povo que defende.
Ainda assim, o grande destaque desta continuação nem é um morador de Wakanda, mas, sim, o subaquático Namor, que assume o posto de real antagonista da história mesmo sem nunca se converter num vilão. Apresentado por Ryan Coogler como um indivíduo que, à primeira vista, não exala qualquer resquício de intimidação (o que é interessante, pois cria no espectador a expectativa de que aquele personagem será retratado de forma mais “despojada” do que o filme eventualmente vem a retratar, tornando suas ações radicais ainda mais surpreendentes do que já seriam), o rei de Talokan é interpretado por Tenoch Huerta Mejía como uma figura devidamente imprevisível, sendo eficiente como, ao mesmo tempo em que demonstra um legítimo carinho com o povo que defende (notem a dor que toma conta de seu semblante ao presenciar a perda de uma súdita), ele também transmite intransigência e ameaça ao jurar exterminar aqueles que atrapalharem seu caminho – ou o prejudicarem de qualquer modo.
E mais: o fato de ser líder de uma civilização de origens astecas é fundamental para estabelecê-lo como um contraponto às guerreiras de Wakanda, já que, enquanto esta é uma nação africana que se destacou justamente ao resistir à colonização europeia, Talokan é uma civilização que (literalmente) sucumbiu em função das barbaridades cometidas pelos invasores espanhóis, posicionando um país fictício como reflexo distorcido do outro – e, assim, é apropriado que a figurinista Ruth E. Carter traga elementos da cultura asteca para as indumentárias dos talokanianos e que a designer de produção Hannah Beachler retrate o reino subaquático como um ambiente abandonado e desconfortável que só parece resistir graças à persistência de seus ocupantes em agarrar-se a cada resquício de vida passada que sobrou, soando radicalmente diferente do paraíso escondido que é Wakanda. (Que em dado momento uma agente norte-americana aviste uns soldados talokanianos e, sem entender quem são, deduza que “Devem ser os wakandanos” é algo que expõe uma visão obviamente racista e generalista por parte daquela pessoa diante dos povos estrangeiros – num comentário social/político sutil, mas eficaz, por parte do filme.) Em contrapartida, nem isso justifica a excessiva escuridão que toma conta de boa parte das sequências noturnas e/ou subaquáticas – e há momentos em que é quase impossível enxergar o que ocorre em cena, mesmo quando esta claramente não era a intenção de Ryan Coogler ou do diretor de fotografia Autumn Durald Arkapaw.
Investindo em figurinos e cenários que abraçam totalmente o caráter lúdico, fantasioso e multicolorido dos quadrinhos, Pantera Negra 2 se revela uma obra bem mais interessante que o original no que diz respeito às sequências de ação, que parecem coordenadas não por um algoritmo que mapeou cada detalhe da decupagem antes mesmo do diretor ser contratado por Kevin Feige (como costuma ocorrer em quase todos os longas da Marvel), mas por um cineasta ativamente capaz de gerar sentimento de urgência, hábil ao retratar aqueles confrontos de forma visualmente compreensível e dotado de uma visão autônoma sobre como decupar e executar aquelas cenas. Além disso, a própria maneira como Coogler insere as canções no meio da ação revela-se bastante particular, encontrando funções narrativas/dramáticas claras para elas em vez de simplesmente jogá-las na tela – e o mesmo se aplica à trilha original de Ludwig Göransson, que, desta vez, investe em ritmos e percussões que demarcam não só a identidade de Wakanda, mas também as heranças culturais de Talokan.
Infelizmente, nem Ryan Coogler resiste totalmente às imposições criativas da Marvel – e, embora conseguindo articular uma personalidade mínima, ele logo se vê obrigado a lidar com uma série de situações/personagens que nada acrescentam à trama e que servem somente para estabelecer conexões com futuros projetos do estúdio (desde a participação de uma menina que promete se transformar numa sucessora do Homem de Ferro até uma subtrama envolvendo os aborrecidos agentes interpretados por Martin Freeman e Julia Louis-Dreyfus), inchando ainda mais uma narrativa que já estava sobrecarregada de tarefas simultâneas e que atinge exaustivos 161 minutos de duração mesmo deixando, ainda assim, várias pontas soltas (que tentam – sem sucesso – se amarrar desajeitadamente num epílogo composto por mais finais que o terceiro ato de O Retorno do Rei).
Deixando momentos genuinamente tocantes espalhados por uma narrativa cuja prolixidade salta aos olhos, Pantera Negra: Wakanda para Sempre é uma obra repleta de sentimentos reais e concretos, mas que se alonga, se complica e se repete bem mais do que precisava.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme (e no qual discuto umas coisas a mais):