Quincy Jones, Lionel Ritchie, Michael Jackson, Harry Belafonte, Stevie Wonder, Diana Ross, Bob Dylan, Tina Turner, Cyndi Lauper, Ray Charles, Huey Lewis, Bruce Springsteen, Kenny Rogers, Dionne Warwick, Steve Perry, Willie Nelson, Paul Simon, Kenny Loggins e um monte de outros artistas célebres que, ao longo de suas carreiras, conquistaram merecidamente o status de ícones. Chega a ser absurdo imaginar que, por uma noite, eles estiveram todos reunidos num estúdio para criar um hino que se tornaria emblemático a ponto de, quase 40 anos depois, continuar vivo no imaginário popular e fascinando novos legiões de ouvintes – e ver estes superastros em ação juntos é algo tão grandioso que, em certo momento de A Noite que Mudou o Pop, documentário que conta a história por trás da canção, eu pensei: “Este é o meu Vingadores: Ultimato!”.
Composta por Lionel Richie e Michael Jackson a partir de uma ideia de Harry Belafonte, que pensou em criar um single que incentivasse o combate à fome na África, “We Are the World” foi gravada em 28 de janeiro de 1985 como música-tema da campanha USA for Africa a fim de levantar fundos para a causa propriamente dita. No entanto, apenas assistir ao clipe da canção já finalizado não é o suficiente para se ter uma noção exata do desafio insano que foi o caminho até aquele resultado – e, assim, o diretor Bao Nguyen toma a engenhosa decisão de dedicar os primeiros 40 minutos de A Noite que Mudou o Pop a explorar cada minúcia por trás da música e todo o planejamento que culminou na tal noite, não se esquecendo de levar em conta (mesmo que rapidamente) o contexto social/racial que pautou as intenções de Belafonte e Richie, que olhavam para uma tragédia num canto do mundo que eles assumiam fugir aos olhos do alto escalão dos astros norte-americanos e viam no projeto uma oportunidade de (como diz Richie) “negros ajudarem negros”.
A partir daí, o filme se prontifica a mergulhar no processo criativo de Lionel Richie e Michael Jackson, trazendo imagens caseiras e arquivos de áudios tão inusitados (e espontâneos) que me pergunto como e por que eles foram gravados em primeiro lugar. E, além de mostrarem e exemplificarem a já mais que conhecida expertise técnica de ambos os compositores (há um momento em que Lionel se recorda de encontrar pilhas e pilhas de tapes de Michael fazendo cada som que idealizava para suas músicas com a boca, em dubstep, para depois comunicar à sua equipe exatamente como queria que soassem), estes registros são complementados pelos depoimentos do próprio Lionel Richie, que conta como a dupla quebrou cabeças até chegar à letra da canção e, neste ínterim, como a melodia de seu refrão surgiu subitamente, num passe de mágica entre uma cantarolada e outra. Além disso, as entrevistas trazem à tona detalhes que nunca tinham me ocorrido sobre toda a logística do evento, acentuando o caos que foi sua execução – e é impressionante ver como Quincy Jones e sua equipe montaram uma verdadeira operação de guerra para que ninguém (nem os próprios artistas) soubessem o endereço do estúdio até pouco antes da gravação, a fim de impedir quaisquer vazamentos que atraíssem uma horda de fãs descontrolados aos portões.
Com isso, o documentário reforça o quão improvável – e, portanto, especial – foi aquela reunião; ainda mais se considerarmos que esta ocorreu imediatamente após vários dos convidados voltarem da 12ª edição do American Music Awards, emendando um evento no outro e, assim, incrementando o cansaço geral (uma das exceções foi justamente Michael Jackson, que, num ato de espantoso profissionalismo, chegou mais cedo para passar o som horas antes dos demais). Mas não adianta: quando chega a data em questão e todos aqueles ídolos se dirigem ao estúdio A&M, A Noite que Mudou o Pop se torna… mágico – e suas imagens de arquivo, valiosas não só por retratarem a interação entre os artistas (com seus diferentes estilos e personalidades), mas por se concentrarem nos indivíduos que são. Assim, o que tinha tudo para se resumir a uma mera bajulação de ícones que aprendemos a tratar como “inalcançáveis” acaba virando uma contagiante humanização – e, até certo ponto, desconstrução – destes, retirando-os do Olimpo a fim de mostrá-los como sujeitos que falham, hesitam, têm medo e, claro, lutam para domar seus demônios interiores (na porta do estúdio, foi posto um cartaz escrito “Deixem seus egos de fora”).
Neste sentido, o interesse do longa em tratar de questões um pouco mais polêmicas é surpreendente, desde as razões para a ausência de certas figuras (Madonna foi preterida em prol de Cyndi Lauper, o que acho uma pena, e Prince recusou o convite por motivos de… Prince) até as vulnerabilidades dos que estavam ali presentes: Stevie Wonder costuma demorar a atender o telefone; Cyndi Lauper precisa remover seus colares extravagantes porque estes atrapalham a captação de seu áudio; Huey Lewis treme de nervosismo ao cantar sua parte; Waylon Jennings não suporta mais continuar ali e abandona a gravação no meio; Al Jarreau tem problemas sérios com bebidas que atrapalham o desempenho como um todo; Quincy Jones se torna quase um Professor Raimundo ao impor um mínimo de ordem e disciplina; e Sheila E se sente mal por acreditar ter sido chamada para o projeto apenas como “isca” para tentar trazer Prince com ela (e, sinceramente, eu também acredito). Por outro lado, não há como não se comover com o imenso respeito – pessoal e profissional – daqueles indivíduos uns pelos outros, sendo tocante, por exemplo, a insegurança do gênio Bob Dylan por cantar junto a tantos colegas notáveis e a gentileza de Stevie Wonder ao ajudá-lo a se sentir à vontade.
Inteligente ao evitar centralizar tudo na figura de Michael Jackson (uma escolha que não poderia ser mais justa, já que, embora muitos tendam a atribuir “We Are the World” exclusivamente ao rei do pop, a verdade é que este foi uma peça – fundamental, é claro – dentro de um quadro indiscutivelmente maior), A Noite que Mudou o Pop compreende cada nome envolvido na música como um talento indispensável para seu sucesso, encontrando espaço até para o cameraman e para os engenheiros de som e iluminação por trás do videoclipe. E mais: a admiração mútua entre os realizadores é tão grande que eles chegam a pausar o processo para – juro! – trocar autógrafos entre si (dos ilustres novatos aos velhos medalhões da indústria), construindo, no fim das contas, uma experiência que transborda tanto amor pela tela que é difícil encerrá-la sem se sentir abraçado por aquela turma.
Assim, A Noite que Mudou o Pop termina revelando tantos pormenores surpreendentes sobre a gravação de “We Are the World” que, de hoje em diante, será impossível voltar a escutar aquele hino sem valorizar ainda mais os esforços hercúleos de todos os envolvidos para que viesse à luz.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: