Anatomia de uma Queda

Título Original

Anatomie d’une chute

Lançamento

25 de janeiro de 2024

Direção

Justine Triet

Roteiro

Justine Triet e Arthur Harari

Elenco

Sandra Hüller, Milo Machado-Graner, Swann Arlaud, Antoine Reinartz, Samuel Theis, Jehnny Beth, Saadia Bentaieb, Camille Rutherford, Anne Rotger, Sophie Fillières e o cachorro Messi

Duração

152 minutos

Gênero

Nacionalidade

França

Produção

Marie-Ange Luciani e David Thion

Distribuidor

Diamond Films

Sinopse

Durante o último ano, Sandra, uma escritora alemã, e Samuel, seu marido francês, viveram juntos com Daniel, o filho de 11 anos do casal, em uma pequena e isolada cidade nos Alpes. Quando Samuel é encontrado morto, a polícia passa a tratar o caso como um suposto homicídio, e Sandra se torna a principal suspeita.

Publicidade

Anatomia de uma Queda | Crítica

Facebook
Twitter
Pinterest
WhatsApp
Telegram

Sandra é uma romancista alemã que, junto ao marido Samuel, mora numa casa isolada nos Alpes franceses e cria um filho de 11 anos com profundas dificuldades visuais. Um dia, enquanto a mãe dá uma entrevista a uma estudante, o garoto sai para passear com o cachorro e, ao voltar, encontra seu pai morto e ensanguentado no quintal e próximo a um caixote, dando a entender que foi vítima de uma queda do último andar. No entanto, as coisas se tornam ainda mais confusas depois que as autoridades locais iniciam uma investigação sobre o que ocorreu e acabam levando Sandra ao tribunal, sob suspeita de ter empurrado o companheiro pela janela – e, a partir daí, Anatomia de uma Queda se lança nos dramas (presentes e passados) daquela família e no julgamento propriamente dito.

O mais fascinante, contudo, é que o filme de Justine Triet se recusa a entregar respostas fáceis para o espectador, enxergando tons de cinza em situações e premissas bem mais complexas do que poderíamos supor. Não é à toa que, ao longo das duas horas e meia de Anatomia de uma Queda, minha percepção sobre a protagonista e sua idoneidade mudou – de lá para cá e de cá para lá – diversas vezes: se durante a primeira metade de projeção estive certo de que Sandra era inocente e de que a hipótese de sua culpa era por si só absurda (uma injustiça que se acentuava conforme via as táticas delinquentes adotadas pelo promotor do caso e percebia como a lisura daquele processo já encontrava-se manchada), aos poucos o acúmulo de pistas, detalhes sobre o caso e novas revelações sobre a persona da ré me fez titubear – isto para, em seguida, eu voltar ao estágio anterior (de crer em sua inocência) mesmo sem a convicção de outrora; algo que se complicou ainda mais quando assisti ao filme pela segunda vez e me levou à inevitável pergunta: afinal, será que Sandra pode mesmo ter matado o marido?

A resposta: sinceramente, isso interessa?

Pois a verdade é que Anatomia de uma Queda é uma obra menos interessada em resolver tal mistério e mais em todo o processo jurídico todo que conduz os personagens – e o público – a um veredito, explorando as minúcias das retóricas apresentadas pela defesa e pela acusação a fim de ilustrar como que, na prática, o que ocorre naquele tribunal é um duelo de narrativas, para decidir qual das duas é mais bem construída. Assim, não é surpresa que o personagem mais repugnante de toda a trama seja justamente o promotor do caso, que, interpretado por Antoine Reinartz, é um homem obviamente despido de consistência interna, mas que aposta no “vale tudo” para criar um clima que facilite que sua tese (a de que Sandra é culpada) seja aceita – e, se num instante o sujeito comenta que a música que Samuel escutava no momento de sua morte era “de cunho misógino”, poucos minutos depois ele não hesita em resgatar o fato (que nada tem a ver) de que Sandra já traiu o marido uma vez, num ato de flagrante sexismo que demonstra como a moralidade e o moralismo, para ele, são apenas ferramentas ocasionais (algo que volta a se repetir com frequência, chegando ao cúmulo quando ele apela às falhas de caráter de uma personagem criada num livro de Sandra como se isso dissesse algo sobre… a própria Sandra).

Neste sentido, é impossível ignorar o trabalho meticuloso de Justine Triet ao levar o público por caminhos conflitantes (mas também complementares), levando-o a se indignar com a forma com que aquele processo é conduzido e, ao mesmo tempo, hesitar com relação à confiabilidade de Sandra – uma tarefa tão desafiadora que torna seu êxito ainda mais impressionante. Da mesma forma, se por um lado Triet convida o espectador a assumir uma postura ativa perante a narrativa em si (já que esta permite que nós a interpretemos, preenchamos suas lacunas e concluamos por conta própria), por outro não deixa de colocá-lo numa posição de voyeur ao estabelecer todo aquele julgamento como um teatro, como uma câmara de performances assistidas por uma plateia – uma leitura que atinge seu ápice na sequência que revela o áudio gravado de uma briga específica e que é retratada pela diretora (que também escreveu o roteiro junto ao parceiro Arthur Harari) de forma tão visceral e humana que leva o espectador a entender como fragmentos de antigos ressentimentos (uns mais compreensíveis, outros mais injustos) foram se acumulando a ponto de estourarem aqui e ali, de modo gradual, até cruzarem uma linha sem volta. Não é à toa, claro, que a cena termine com Triet retornando ao tribunal e enfocando todos ali presentes como… espectadores de um espetáculo grotesco.

Com isso, Anatomia de uma Queda vai descortinando detalhes sobre a relação entre Sandra e Samuel que, mesmo reconhecendo que a primeira é um indivíduo falho (com motivações totalmente inteligíveis, vale apontar), exemplificam como a esposa sempre tende a ser mais cobrada pelos conflitos matrimoniais do que o marido – um problema endêmico que os arroubos misóginos do julgamento contra Sandra tratam de tornar mais explícito. Aliás, tão desafiador quanto o trabalho de Justine Triet é o da atriz Sandra Hüller, que encarna a protagonista (homônima) como uma mulher de personalidade complexa: se na primeira cena ela surge descontraída até demais ao ser entrevistada por uma estudante bem mais nova, depois ela se transforma numa figura tão reservada que denota certa insegurança em seus gestos e reações tímidas (até seu jeito de falar, para dentro e gaguejado, indica isso) e que parece incapaz de cogitar uma postura um pouco mais impositiva – isto para, aos poucos, voltar a surpreender ao revelar um pulso bem mais firme do que poderíamos supor a princípio (e o mérito de Hüller está não só em tornar cada “etapa” verossímil, mas também em construir cuidadosamente a transição de uma à outra a fim de tornar a personagem complexa em vez de inconstante).

O mesmo vale para o pequeno Milo Machado Graner, que assume uma posição central ao interpretar Daniel, o filho do casal, e que ilustra bem as vulnerabilidades do menino, as dúvidas internas que terminam por dilacerá-lo e o impulso de buscar uma posição mais ativa que, eventualmente, se contrapõe ao choque de ver a realidade estourando diante de si – vocês entenderão melhor o que estou tentando dizer quando assistirem a uma cena que envolve um cachorro e que me obriga, pela primeira vez em mais de 10 anos escrevendo sobre Cinema, a incluir um trecho em que destaco o desempenho de um animal: o do border collie Messi, que surge naquela que talvez seja a performance mais espantosa do filme na tal sequência que mencionei há pouco. Para completar, Samuel Theis aproveita a única cena que tem (a da discussão citada no parágrafo anterior) para compor o marido da protagonista como um sujeito que mistura imaturidade e intensidade, tornando-o simultaneamente patético e intimidador.

O curioso é que, mesmo não fornecendo respostas para todas as perguntas que aparecem, Anatomia de uma Queda não deixa de oferecer, ao menos, um caminho claro para o mistério apresentado. Sim, podemos ainda ter dúvidas sobre a inocência/culpa de Sandra, mas há, também, uma tendência maior a favor de um lado que de outro – o que, por sua vez, acaba sugerindo que, mesmo com todas as aberturas para múltiplas interpretações acerca de um único fato, Justine Triet não abre mão de uma certa confiança na verdade e, por consequência, na Justiça (com inicial maiúscula) como um todo.

Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme:

Mais para explorar

As Marvels | Crítica

Não é uma experiência tão torturante quanto algumas das últimas produções do MCU, mas, ainda assim, nunca deixa de ecoar o cansaço que acometeu a franquia e o desespero para manter-se relevante.

Duna: Parte 2 | Crítica

Uma obra cujos méritos são diversos, inquestionáveis e, sim, constituem um verdadeiro milagre – mesmo que nem sempre consiga envolver emocionalmente o espectador a ponto de fazê-lo se entusiasmar com tais proezas.

Guerra Civil | Crítica

Como espetáculo de ação, Guerra Civil é uma obra tecnicamente eficiente. Como tese – que obviamente tenta ser – sobre algum tema mais amplo, é um filme que reflete as velhas e costumeiras limitações de Alex Garland.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *