Um dos aspectos mais aterrorizantes sobre o conceito de “mal” é o fato de que este pode surgir dos lugares menos esperados e de indivíduos que, em vez de transparecerem ódio e truculência em seus gestos e discursos, são donos de personalidades… simples, ordinárias, medíocres no sentido mais literal da palavra (ou seja: que nada têm de excepcional ou fora do comum). Acreditar que todo o mal gira em torno exclusivamente de Hitlers, Mussolinis e Ustras (como se o problema magicamente desaparecesse se estas figuras deixassem de existir) é uma posição muito cômoda; bem mais difícil é admitir que pessoas aparentemente inofensivas (ou mesmo amáveis), que fazem parte de nosso dia a dia e que julgamos incapazes de qualquer perversidade percam suas réguas morais por se convencerem de que o Outro é um mal a ser destruído – sem deixarem, contudo, de seguir paralelamente com suas vidinhas normais. Foi mais ou menos o que Hannah Arendt (divergências à parte) apontou como a “banalidade do mal” ao acompanhar o julgamento do nazista Adolf Eichmann e encontrar nele um sujeito… “banal”.
Particularmente, não sou devoto de Arendt e entendo que sua tese deve ser absorvida com um cuidado especial para não ser interpretada como uma tentativa de relativizar/suavizar as infindáveis monstruosidades do regime nazista. No entanto, não vejo como discutir uma obra como Zona de Interesse sem mencionar a autora, já que o novo longa de Jonathan Glazer (Sob a Pele) se apresenta praticamente como uma versão cinematográfica da tal “banalidade do mal”. Escrito pelo próprio cineasta a partir do livro homônimo de Martin Amis, o filme acompanha a família de um oficial nazista que mora bem ao lado de um campo de concentração e continua a viver tranquilamente, como se nada acontecesse do outro lado do muro no quintal. Assim, Glazer evoca o absoluto distanciamento daqueles indivíduos com relação à barbárie que ocorre (e da qual participam): enquanto as crianças da casa brincam no jardim, o pai recebe cúmplices nazistas para discutirem a logística de um novo método de execução e incineração de prisioneiros judeus e a mãe conversa casualmente com uma visita sobre as vantagens que vê em morar por lá – uma frieza que me lembrou imediatamente do inacreditável momento do documentário Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro, em que um casal de moradores de uma cobertura do Rio de Janeiro chama de “linda” a imagem de balas traçantes na favela ali perto e de “interessante” o som de um tiroteio na rua.
Esta frieza, como não poderia deixar de ser, encontra ecos na fotografia de Łukasz Żal (Ida, Guerra Fria), que retrata o cotidiano daquela família através de uma paleta cinzenta e dessaturada que chapa as cores a fim de tornar aquele mundo menos intenso, mais apático e mais sufocante para o público (mesmo que os personagens em si não o sintam como tal) – e até mesmo nas sequências que se passam sob a luz do sol, há uma importante dessaturação que impede que qualquer resquício de energia se manifeste ali, algo que é complementado pela escolha de registrar praticamente todas as cenas através de planos abertos ou gerais que se mantêm estáticos (ou, no máximo, se movendo sutilmente) e que transformam seus “ocupantes” em miniaturas que seguem vivendo suas rotinas (e indo de lá para cá) dentro de um quadro amplo e o espectador, em voyeur de tais ações. Além disso, discutir Zona de Interesse sem mencionar seu design de som seria heresia, já que este desempenha um papel fundamental ao nos lembrar constantemente de que algo pavoroso ocorre nas proximidades daquela casa – mas o faz não de forma escancarada, mas a partir de efeitos sonoros discretos e que nunca chamam atenção para si (um tiro aqui, um grito abafado ali, um incinerador acolá), surgindo no fundo dos sons do quintal daquela família e levando o público a vislumbrar um horror que, no entanto, passam totalmente despercebidos para os personagens, que enxergam tais barulhos como… parte do dia a dia.
O mesmo se aplica à montagem de Paul Watts, que permite que cada cena (e cada plano) se prolongue até onde for necessário e imprime à narrativa um ritmo lento que pode facilmente levar o espectador ao tédio – o que, acreditem, não se trata de um problema, mas justamente do oposto: na verdade, esta monotonia é fundamental para que o filme funcione, pois ajuda a ilustrar e refletir o estado de espírito dos personagens e, principalmente, a total apatia destes diante das atrocidades que ocorrem ao lado. Inclusive, precisamos todos parar com a mania de achar que um ritmo “lento” (frequentemente confundido com “chato”) é necessariamente um demérito em quaisquer casos, já que há, sim, obras que não só exigem um andamento mais pausado, como sairiam comprometidas caso investissem num dinamismo maior – e Zona de Interesse é uma delas: se Glazer e Watts desenvolvessem a narrativa de modo mais intenso/frenético, provavelmente trairiam a proposta de retratar o distanciamento dos personagens com relação ao resto do mundo.
O problema é que, justamente por se distanciar tanto da barbárie que acontece ao lado dos protagonistas (para demonstrar, através do exemplo, como o mal torna-se muito mais apavorante ao ser tão banalizado), Glazer acaba – ao menos, para mim – diluindo o peso de suas decisões e, por consequência, fragilizando a atmosfera geral do filme ao resumi-la a uma nota só (isso explica o fato de eu ter saído do cinema com a sensação de que, embora partindo de uma premissa interessantíssima, o longa a esgota muito rápido, não conseguindo ir além de seu conceito inicial nem extrair uma reflexão além da mais básica). Não é à toa que, por mais que o diretor claramente desejasse lançar o espectador para fora da sessão apavorado e destruído com o que acabou de assistir, confesso que cheguei ao fim de Zona de Interesse sentindo… quase nada, apenas uma apatia e uma frieza que beiraram a indiferença – no entanto, é bom lembrar que, claro, estou discutindo algo subjetivo, sobre a minha experiência com a obra (acho perfeitamente compreensível que outras pessoas tenham saído do filme aterrorizadas, sem chão).
Assim, se por um lado Zona de Interesse não comete o erro comum da maioria dos filmes sobre Segunda Guerra Mundial de explorar o genocídio como se fosse espetáculo e de cosmetizar o sofrimento dos judeus sob o disfarce de “denúncia”, por outro se afasta tanto do evento histórico em si que acaba atenuando seu impacto – algo que até entendo que faz parte da proposta do projeto (a de retratar o afastamento daqueles personagens), mas que, considerando que estamos falando de uma das maiores chagas da História recente, tropeça por não conseguir transformar tal apatia num catalizador de horror (ou de uma reflexão mais profunda).
Pois o que Jonathan Glazer parece não compreender é que, em casos como este, tentar encarar tudo de maneira exclusivamente racional e proibir a entrada de uma análise minimamente emocional é um exercício não só falho, mas contraproducente, já que é esta última que nos leva à empatia que, por sua vez, permite absorver ainda melhor a dimensão de sua tragédia.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: