A Substância

Título Original

The Substance

Lançamento

19 de setembro de 2024

Direção

Coralie Fargeat

Roteiro

Coralie Fargeat

Elenco

Demi Moore, Margaret Qualley e Dennis Quaid

Duração

140 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Coralie Fargeat, Tim Bevan e Eric Fellner

Distribuidor

Imagem Filmes

Sinopse

Elisabeth Sparkle, renomada por um programa de aeróbica, enfrenta um golpe devastador quando seu chefe a demite. Em meio ao seu desespero, um laboratório lhe oferece uma substância que promete transformá-la em uma versão aprimorada.

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A Substância | Crítica

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Não duvido que muitas pessoas saiam de A Substância acusando o filme de ser óbvio demais nos “subtextos” e nas “alegorias” que busca levantar. De fato, “discrição” e/ou “sutileza” não são exatamente palavras que eu usaria para descrever o trabalho da Coralie Fargeat aqui e as maneiras que ela encontra pra comunicar suas ideias. Dito isso, acredito que é bastante injusto apontar isso como “demérito”, já que, ao contrário do que pode parecer, não creio que o que o filme se preocupa em criar sejam “alegorias”, significantes que têm atrás delas um significado que a gente não vê. Ao contrário: se A Substância brilha, choca e consegue se resolver e comunicar bem as suas intenções, é justamente por ser tão direto em suas representações e, principalmente, por se entregar ao exagero com tamanha dedicação, pegando situações concretas e elevando-as ao limite do absurdo para que, através dessa extrapolação, o público capte a real dimensão das problemáticas que aponta. Às vezes, a hipérbole é a melhor forma de se fazer ouvir. O que há em A Substância não é “subtexto”, mas, sim, texto – puro e simples.

Escrito, dirigido e co-produzido por Fargeat (A Vingança), o filme acompanha Elisabeth Sparkle, uma estrela de Hollywood que já foi um ícone de beleza do entretenimento e que, hoje, é uma moça de meia idade que apresenta um programa matinal de aeróbica na TV e sente nos ombros toda a pressão da mídia, da sociedade e da própria indústria acerca do envelhecimento da mulher. Pois é precisamente no dia de seu aniversário de 50 anos que Elisabeth é demitida do programa que ela apresentava porque, para os parâmetros de seu chefe (escrotérrimo), ela agora está “velha” e “ultrapassada” demais. Assim, saindo inconformada do estúdio, a protagonista vê na TV um anúncio de um produto meio duvidoso chamado “the substance” – e, ao comprar a tal substância e injetá-a nela mesma, nasce e sai por suas costas uma outra mulher; no caso, Sue, uma jovem na casa dos 20 e com muito mais chance de agradar o ex-patrão da Elisabeth. Não demora até que essa nova “versão” se torne uma superestrela, com rosto estampado em tudo quanto é cartaz, capa de revista, outdoor. No entanto, é claro que eventualmente isso criará uma rivalidade entre Elisabeth e Sue que será destrutiva tanto para uma quanto para a outra.

É uma premissa obviamente absurda, bizarra, mas que funciona justamente porque Coralie Fargeat assume completamente, de forma rasgada, toda a estranheza daquele mundo. Ela compõe uma abordagem que vai ficando progressivamente mais grotesca, mais incômoda, até culminar na segunda metade que é uma sucessão de choques um atrás do outro. Mas, ainda assim, Coralie Fargeat é muito cuidadosa ao ir construindo essa escalada de absurdos dentro de um encadeamento muito coeso, dentro de uma atmosfera geral muito consistente. Beleza, o início do filme pode até não ser tão insano quanto o final, mas desde o comecinho já há ali um tom de estranheza que gera um incômodo (ou uma sensação de que algo tá fora do lugar). Quando a gente vê o primeiro diálogo entre Elisabeth e o chefe (interpretado pelo Dennis Quaid), a maneira com que esse chefe é mostrado em cena já gera um desconforto por si só. Ele é mostrado através de uma lente grande-angular que deixa ele deformadaço. Ele sai comendo lagosta com as mãos, e a gente vê plano-detalhe da boca dele mastigando enquanto fala, da mão dele destruindo a lagosta, praticamente como um animal.

Da mesma maneira, o primeiro diálogo que Elisabeth tem com um cara que ela nunca se interessou muito e que dá pra ela o número do telefone, também gera uma sensação peculiar. Pelo comportamento do cara, pelo jeito dele de falar, a gente sente que algo tá esquisito ali – e isso já vai criando um clima de delírio que faz com que a entrada dos elementos mais “grotescos” e “fantasiosos” da trama soe natural, orgânica, em vez de abrupta. Eu gosto muito também de como a direção de arte do Stanislas Reydellet (que é fantástica) ajuda a estabelecer essa grandiosidade do universo das super celebridades em contraste à pressão que Elisabeth tá sentindo. Todos os cenários e a configuração dos espaços que têm no filme são sempre bem coloridos, bem simétricos, bem perfeitinhos; ao mesmo tempo que são grandiosos, a casa da Elisabeth tem tantos cômodos que parece até um labirinto. Eles aspiram a uma grandiosidade reluzente que mostra como aqueles personagens moram num mundo de plástico – e isso ajuda a tornar o sufoco da Elisabeth ainda mais palpável, porque a gente percebe como ela tá deslocada do seu entorno e como isso tá se pressionando sobre ela.

E aí, a gente entra no grande tópico do filme – e acho que já tá claro, a essa altura – que é: como essa indústria da fama e da obsessão impacta especificamente as mulheres e como o etarismo grita ainda mais contra as mulheres dentro desse contexto e dessa sociedade. A coisa que mais me fascina no trabalho da Coralie Fargeat é que, embora a narrativa em si seja bastante direta ao ponto (e o discurso do filme seja explícito de cara), todas as decisões que ela toma se resolvem menos por blábláblá e diálogos expositivos e muito mais através da maior força que o Cinema pode oferecer: a imagem em movimento. Todas as ideias e sensações que A Substância transmite se constroem essencialmente pela força das imagens. Isso já fica claro logo no início do filme, quando a gente acompanha toda a derrocada da carreira da Elisabeth através de um plano da estrela da Elisabeth sendo colocada na Calçada da Fama e aí róla todo um timelapse, passando anos e estações e gerações de pessoas tirando foto e depois só passando por cima, derramando lanche em cima daquela estrela da Elisabeth; até o ponto em que a estrela da Elisabeth simplesmente… deteriora.

Do início ao fim, o filme sempre consegue se expressar (tematicamente, narrativamente) através do que ele mostra – e a imaginação e o choque das imagens faz a gente absorver com ainda mais impacto o sentido do discurso que Coralie Fargeat tá criando. Aí, entra o componente de body horror para ressaltar os temas que o filme discute. Uma vez que o centro do filme é essa cobrança da indústria sociedade acerca do corpo da mulher e a forma como a sociedade praticamente proíbe a mulher de envelhecer (o que acaba estimulando muitas delas a se autodestruírem, contra a própria idade, pra continuar se encaixando nesses padrões de beleza), eu acho que ir pelo caminho do “horror corporal” acaba sendo a melhor solução possível pra você pegar o espectador pelos ombros e chacoalhar ele até ele acordar com relação a esse assunto. Ver o corpo da Elisabeth se deteriorando porque ela tá em desarmonia com Sue; ver as duas literalmente se flagelando pra ver qual das duas se sobressai uma à outra; ver aquelas personagens literalmente mutilando a elas mesmas na esperança de ficarem mais “bonitas” pros padrões da sociedade, da indústria e de chefes misóginos é algo que se faz entender com uma clareza que não podia ser maior.

A gente entende com muito mais impacto a tragédia que é a autodestruição daquela mulher (linda!) através do exagero; através da HIPÉRBOLE. E se tem uma coisa que A Substância não tem medo de fazer, é de exagerar. É de ir pelo caminho do grotesco pra criar sequências que chegam a dar ânsia de vômito, e que às vezes chegam a descambar pro ridículo (mas sempre DE PROPÓSITO). E é através desse excesso, dessa extrapolação de uma situação real, que a gente capta melhor a dimensão da problemática em si. Ao mesmo tempo, Coralie Fargeat tem tanto domínio sobre o que tá fazendo que ela chega a usar estratégias visuais pra filmar a personagem da Sue que são estratégias obviamente de objetificação do corpo da Margaret Qualley. Saindo da cabine de imprensa, até cheguei a escutar uns comentários dizendo que, se A Substância fosse exatamente o mesmo filme só que dirigido por um homem, ele seria acusado de objetificar/explorar demais o corpo da atriz. E não discordo, mas eu defendo que, dentro da abordagem toda da Coralie Fargeat, a maneira com que ela objetifica o corpo da Sue (com planos-detalhe da boca, da bunda, da coxa, do seio, do olhar todo produzido, com uma musiquinha sexy por cima) acaba sendo fundamental pra gente entender aquilo que a personagem é: um produto feito sob medida pra agradar patrões misóginos que enxergam a mulher como se fosse um pedaço de carne, com data de validade, e que induzem a sociedade inteira a pensar o mesmo. Ou seja: Coralie Fargeat meio que tá usando as armas do inimigo pra criticar esse inimigo.

E essa abordagem ainda serve pra estabelecer um contraponto com Elisabeth da Demi Moore, que é uma protagonista que, mesmo quando aparece em cena nua, ela não é explorada pela câmera da mesma forma. Inclusive, a própria escolha de escalar Demi Moore pro papel é perfeita, porque Demi Moore foi um sex symbol lá nos anos 90 e depois foi jogada de escanteio pela indústria simplesmente porque… ela envelheceu. E continuou linda, mas uma mulher envelhecer, por si só, já é imperdoável pra essa indústria. É um papel extremamente corajoso da Demi Moore, de topar surgir em cena se despindo de qualquer vaidade, aparecendo em cenas em que o corpo (de sex symbol) dela é desfigurado de formas absurdas e retratando a dor, a frustração e os dilemas da personagem aludindo à sua própria experiência que ela mesma teve na vida real. Isso culmina numa sequência que é de partir o coração, que ela tá se preparando pra sair num date com um cara da mesma idade, e ela fica A NOITE INTEIRA se maquiando, se vestindo, se olhando no espelho. E ela tá incrivelmente LINDA, mas ela não consegue ficar satisfeita. E aí isso vai escalonando, escalonando, escalonando e… é triste.

Enquanto isso, Margaret Qualley é outra que não tem medo nenhum de se entregar aos aspectos mais difíceis da personagem dela. Sue é uma mulher projetada pra ser um ícone sexual cuja grande virtude é a própria aparência e a sedução em si. Então, a fala dela, o jeito de olhar, o jeito de contrair o lábio… é sempre gerando essa impressão de que Sue é uma mulher de plástico. Só que, ao mesmo tempo, isso também vai gerando um efeito psicológico nela. O filme avança e ela vai não conseguindo mais suportar a própria condição artificial dela. E Margaret Qualley consegue fazer essa transição, pra essa raiva, frustração e horror da personagem, também, de uma forma muito meticulosa. É uma performance que tem total controle do que quer alcançar num filme que tem total controle do que quer alcançar.

E que culmina num clímax que (eu não vou dar spoiler, mas que) apela de uma vez por todas pro absurdo mais davidcronenbergiano possível. E de novo: com o intuito de mostrar, através do exagero, a humilhação à qual essas mulheres são submetidas. Isso só realça ainda mais a tragédia de uma indústria que não se conforma que mulheres lindas possam envelhecer.

Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme:

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