Não duvido que várias pessoas saiam de A Substância acusando o filme de ser óbvio demais nos “subtextos” e nas “alegorias” que busca levantar. De fato, “discrição” e “sutileza” não são exatamente as palavras que eu usaria para descrever o trabalho de Coralie Fargeat, tampouco as maneiras que ela encontra pra comunicar suas ideias. Dito isso, acredito ser injusto apontar isso como “demérito”, já que, ao contrário do que pode parecer, o que o longa busca criar não são “alegorias”, significantes que têm por trás um significado que não vemos. Ao contrário: se A Substância brilha, choca e consegue se resolver e comunicar bem as suas intenções, é justamente por ser tão direto em suas representações e, principalmente, por se entregar ao exagero com tamanha dedicação, pegando situações concretas e elevando-as ao limite do absurdo para que, através desta extrapolação, o público capte melhor a real dimensão das problemáticas que aponta. Às vezes, a hipérbole é a melhor forma de se fazer ouvir. O que há em A Substância não é “subtexto”, mas, sim, texto – puro e simples.
Escrito, dirigido e co-produzido por Fargeat (A Vingança), o filme acompanha Elisabeth Sparkle, uma estrela de Hollywood que já foi um ícone de beleza do entretenimento e que, hoje, é uma moça de meia idade que apresenta um programa matinal de aeróbica na TV e sente nos ombros toda a pressão da mídia, da sociedade e da própria indústria acerca do envelhecimento da mulher. Pois é precisamente em seu aniversário de 50 anos que Elisabeth é demitida do programa que apresentava, já que seu (escrotíssimo) patrão agora a enxerga como “velha” e “ultrapassada” demais. Assim, ao sair inconformada do estúdio, a protagonista vê na TV um anúncio de um produto um tanto duvidoso chamado “the substance” – e, intrigada com os efeitos prometidos pela propaganda, ela compra o tal material. Eis que, ao injetar o soro, Elisabeth vê nascer e surgir de dentro de suas costas uma outra mulher – no caso, Sue, uma jovem na casa dos 20 e com muito mais chance de agradar o ex-chefe da protagonista. Claro que não demora até que esta nova “versão” se torne uma superestrela, com rosto estampado em tudo quanto é cartaz/outdoor/capa de revista. No entanto, nem preciso dizer que, eventualmente, esta dualidade entre Elisabeth e Sue leva a uma rivalidade altamente destrutiva tanto para uma quanto para a outra.
É uma premissa obviamente absurda e bizarra, mas que funciona justamente porque Coralie Fargeat assume por completo toda a estranheza daquele mundo, compondo uma abordagem que vai ficando progressivamente mais grotesca e incômoda até culminar numa segunda metade que, para todos os efeitos, se revela uma sucessão de choques um atrás do outro. Ainda assim, Fargeat é cuidadosa ao ir construindo esta escalada de absurdos dentro de um encadeamento coeso e de uma atmosfera geral consistente. Sim, o início do filme pode até não ser tão insano quanto o final, mas desde o comecinho há ali um tom de estranheza que gera um incômodo, uma sensação de que algo está fora do lugar. No primeiro diálogo entre Elisabeth e o chefe, por exemplo, Fargeat e o diretor de fotografia Benjamin Kračun enfocam o patrão através de uma grande-angular que o transforma numa criatura disforme e grotesca – e o personagem em si surge falando enquanto mastiga e destroçando uma lagosta sem talheres, soando praticamente como um animal ao passo que os planos-detalhe de suas mãos e boca reforçam esta impressão.
Outro momento em que Fargeat cria uma sensação peculiar (mesmo sem apontar exatamente um porquê) envolve a primeira conversa entre Elisabeth com um cara pelo qual ela nunca deu muita bola: o comportamento e o jeito de falar do moço, por si só, já despertam no público um temor de que algo parece esquisito ali – e isso já vai criando um clima de delírio que faz com que a entrada dos elementos mais “grotescos” e “fantasiosos” da trama soe natural em vez de abrupta. Além disso, a fantástica direção de arte de Stanislas Reydellet ajuda a estabelecer o contraste entre a grandiosidade do mundo das super celebridades e a pressão interna que toma conta de Elisabeth: se os cenários e a configuração dos espaços surgem sempre coloridas, simétricas e perfeitinhas, o excesso de cômodos naquela casa a faz soar quase como um labirinto; é uma magnitude reluzente que, no fim das contas, indica como o mundo daquelas personagens aparenta ser feito de plástico – e isso torna o sufoco de Elisabeth ainda mais palpável.
O que nos traz, portanto, ao ponto principal de A Substância (e que, a esta altura, acho que já está claro): a maneira com que a indústria da fama (e da obsessão constante) impacta especificamente as mulheres, levando o etarismo a gritar mais alto contra estas. O que mais me fascina no trabalho de Coralie Fargeat é que, embora a narrativa em si seja bastante direta ao ponto (e o discurso do filme seja explícito de cara), todas as decisões que ela toma se resolvem menos por diálogos expositivos e mais pela maior força que o Cinema tem a oferecer: a imagem em movimento – e todas as ideias/sensações que A Substância transmite se constroem essencialmente pela força das composições, do que vemos. Isso já fica claro logo no início, quando acompanhamos toda a derrocada da carreira de Elisabeth através de um plano que a estrela da atriz na Calçada da Fama atravessando décadas em um timelapse, começando com os operários colocando-a no chão, passando por gerações de transeuntes que a princípio chegam para tirar fotos do objeto, mas aos poucos passam por cima e derramam lanche naquela estrela, levando ao ponto em que esta apenas… se deteriora.
É aí que entra o componente de body horror que Fargeat emprega a fim de ressaltar os temas que discute. Ora, uma vez que o centro temático de A Substância está na cobrança da indústria/sociedade acerca do corpo das mulheres, praticamente proibindo-as de envelhecerem e, com isso, estimulando várias delas a se autodestruírem ao perseguir os padrões de beleza que lhes impõem, o caminho do “horror corporal” se revela ideal ao pegar o espectador pelos ombros e chacoalhá-lo até acordar no que tange este assunto. Assim, ver Elisabeth e Sue se flagelando (literalmente) na tentativa de descobrir quem se sobressai em relação à outra e se mutilando na esperança de soarem “mais bonitas” aos olhos do público e de chefes misóginos é algo que se faz entender com uma clareza que não poderia ser maior, utilizando-se do exagero – e da hipérbole – para acentuar o impacto da tragédia que é o autoextermínio daquela linda mulher. Aliás, se tem algo que A Substância não tem medo, é de exagerar, abraçando o grotesco ao criar sequências que ora provocam ânsia de vômito, ora chegam perto de descambar para o ridículo (mas sempre de forma proposital).
Além disso, o domínio de Fargeat é tão notável que chega a se apropriar de estratégias que obviamente objetificam o corpo de Margaret Qualley (com planos-detalhe de sua boca, bunda, coxa, seios e olhos pesadamente maquiados, ainda com uma musiquinha sexy ao fundo), mas o faz de maneira que, em vez de reduzir a atriz a um item sexual (como faria a maioria dos diretores homens), acaba se tornando fundamental ao ressaltar como Sue se transformou precisamente naquilo que o filme combate: um produto feito sob medida para agradar patrões misóginos que veem a mulher como um pedaço de carne com data de validade, usando sua estrutura de poder para induzir a sociedade inteira a pensar o mesmo. Em outras palavras: é como se a cineasta usasse as armas do inimigo (ou seja: diretores homens que vivem de explorar/objetificar os corpos de suas atrizes) a fim de confrontá-lo – e o controle de Fargeat sobre sua estratégia é tão eficaz que, quando Demi Moore surge nua, a câmera não a explora do mesmo modo.
A própria escalação de Moore, aliás, é perfeita por aproveitar o histórico da atriz – como sex symbol dos anos 1990 que posteriormente foi escanteada apenas por ter… envelhecido – para enriquecer o arco da protagonista. Corajosa ao topar aparecer em cena se despindo de qualquer vaidade (mostrando as marcas da idade em seu corpo nu) e em cenas em que é desfigurada de formas absurdas, Moore é bem-sucedida ao retratar a dor, a frustração e os dilemas de Elisabeth de modo a aludir à experiência que a própria atriz teve no mundo real. Isso culmina em uma sequência de partir o coração em que a personagem se prepara para um date (com um homem da mesma faixa etária), mas acaba sequer conseguindo sair de casa, já que a obsessão com a “mais bonitas” a faz passar a noite inteira maquiando-se, vestindo-se e olhando-se no espelho sem nunca sentir-se satisfeita com o que vê – por mais que esteja incrivelmente linda. Enquanto isso, Margaret Qualley é outra que não tem medo algum de entregar-se aos aspectos mais duros de seu papel, encarnando uma mulher que é projetada para não passar de uma boneca de plástico (com fala lânguida, olhar provocativo, lábios sempre contraídos), mas que aos poucos sucumbe à própria artificialidade, sendo bacana que a atriz costure uma transição orgânica ao retratar a raiva, a frustração e o horror de Sue surgindo gradualmente.
O que culmina num clímax que – sem spoilers – apela de vez ao mais davidcronenbergiano dos absurdos enquanto volta a mostrar, através do exagero, a humilhação à qual estas mulheres são submetidas. Isso só realça ainda mais a tragédia não só de Elisabeth, mas de uma indústria que não admite que moças belíssimas possam… envelhecer.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: