Ainda Estou Aqui machuca como uma ferida que se abriu de repente, sem sabermos exatamente de onde veio ou o que a provocou, e cujo sofrimento continua a se prolongar por décadas sem jamais cicatrizar. Adaptado do livro de mesmo nome que Marcelo Rubens Paiva escreveu sobre o sumiço do pai e sobre a luta da mãe em descobrir, afinal, qual foi o destino do marido, o primeiro longa de Walter Salles em 12 anos (e o primeiro em solo brasileiro há 16) transpira a dor de vermos algo que muito representa ser arrancado do nada, sem quaisquer explicações e sem que possamos sequer cobrar esclarecimentos sobre por quê. No caso, este “algo” não é um objeto inanimado, mas uma figura afetuosa e amável que, com seu jeito particular, viria a definir o resto da vida daqueles ao seu redor – mesmo em sua ausência.
Ambientado no Rio de Janeiro de 1970, quando o país atravessava a época mais sombria dos “anos de Chumbo”, Ainda Estou Aqui narra a história do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva (filiado ao PTB), que lutou contra o golpe militar de 1964 e teve seu mandato cassado 11 dias após a intervenção, com a promulgação do AI-1. No entanto, o ponto de vista adotado pelo filme (e pelo livro que o inspirou) para guiar a narrativa não é o de Paiva, mas o de sua esposa/viúva, Eunice – que, logo após o sequestro do marido, também foi levada (junto a uma de suas filhas, Eliana) para depor nos porões do DOPS e só foi liberada 12 dias depois. A partir daí, o longa acompanha não só a dor da família Paiva (pelo buraco que a ausência do pai deixou), mas, principalmente, a recusa de Eunice em admitir ficar sem respostas sobre o destino de Rubens, dedicando todo o resto de sua vida a lutar, ao menos, por informações – e só em 2014, com a Comissão da Verdade, ficou comprovado que o político foi assassinado pelos militares no quartel.
Dito isso, Ainda Estou Aqui não é uma obra que se constrói exclusivamente a partir do horror e do sofrimento. Na verdade, um dos maiores trunfos do trabalho de Walter Salles reside em sua capacidade brilhante de manter o tom da narrativa sob controle, alternando entre o afeto da nostalgia e o pânico da ditadura sem que um soe deslocado do outro (um talento que Salles já comprovou em praticamente toda a sua – invejável – filmografia pregressa). Assim, para uma trama situada num período histórico tão traumático, os primeiros 30 minutos de Ainda Estou Aqui se revelam surpreendentemente… doces, felizes, com uma harmonia que se alastra pelos rostos dos personagens (quase todos com sorrisões estampados) e pela fotografia de Adrian Teijido, que explora bem o clima ensolarado das praias do Leblon para trazer alegria e calor sentimental típicos de uma foto antiga e emocionalmente valiosa para quem nela esteve (aliás, a decisão de registrar algumas “memórias de família” através de câmeras Super 8 é perfeita por cumprir uma função dupla: 1) aludir aos aparatos técnicos da época e 2) sugerir, pela textura, uma nostalgia que só velhas filmagens caseiras são capazes de despertar).
Mas aí, chega o momento que nós, espectadores, sabíamos que chegaria, mas torcíamos para que tardasse a chegar: os agentes do DOPS batem na porta de Rubens Paiva, entram na casa e, de imediato, tratam de abaixar as cortinas e fechar todas as persianas, tornando aquele cenário – tão iluminado – subitamente tenso e macabro. A partir daí, Ainda Estou Aqui se transforma numa obra mergulhada em sombras, impedindo que qualquer traço de alegria ou prazer se manifeste naqueles espaços. Porém, o que considero mais interessante – e admirável – na abordagem de Salles é que, em vez de mostrar os detalhes pavorosos das torturas que ocorriam naqueles porões (algo que poderia facilmente cair no terreno da mera exploração/cosmetização), o diretor entende que, muitas vezes, a sugestão do terror é bem mais impactante do que sua exposição.
Assim, ao assumir o ponto de vista de Eunice (uma mulher que, enquanto a situação se desenrola, nada entende do que está ocorrendo), o filme leva o próprio espectador a sentir-se desorientado e arremessado naquela situação caótica, descobrindo tudo aos poucos junto à protagonista – e, para partilhar do horror experimentado por Eunice, não é preciso testemunhar tortura alguma; basta ser jogado num corredor escuro (às vezes, com a visão tampada por um pano), ver de relance (no fundo do plano, desfocado) um preso ser afogado numa bacia e, principalmente, ouvir os gritos de agonia/misericórdia e os sons de goteiras, passos e portas e fechaduras se abrindo/fechando (o design de som, por sinal, merece todos os aplausos possíveis, mostrando-se imprescindível para a atmosfera geral da obra ao criar tensão a partir de pequenos ruídos diegéticos). Além disso, a trilha de Warren Ellis (não confundir com o autor homônimo de quadrinhos) é hábil ao pontuar o teor dramático do longa como um todo, se destacando não só em sua presença, como também em sua ausência, cessando em momentos-chave a fim de permitir que escutemos apenas os sons crus, por exemplo, dos porões da ditadura.
Aliás, eu sei que elogiar um trabalho de reconstituição de época é repetir o óbvio, mas a recriação do Brasil de 1970 em Ainda Estou Aqui é tão fabulosa que fica difícil entender, em alguns momentos, como os realizadores chegaram a tal resultado, já que o resgate não se restringe a detalhes “menores” (carros, peças de figurinos, tevês e embalagens datadas), chegando ao ponto de mostrar uma avenida inteira em visual de 50 anos atrás (sim, é claro que retoques de efeitos visuais foram necessários aqui e ali). O mais interessante, contudo, é perceber como a formidável direção de arte de Carlos Conti ajuda a dizer muito sobre os indivíduos que ocupam tais espaços: a sala de estar surge vasta o suficiente para garantir o conforto daquela família e com entradas largas o bastante para atraírem luz e ar fresco (se contrastando totalmente ao sufoco dos porões do quartel), ao passo que o quarto da filha mais velha, em especial, reflete a cinefilia e o gosto musical da jovem em função dos milhares de fotos/pôsteres de Gal Costa, A Chinesa e tantos outros cantores/álbuns/filmes. Por falar em artistas, é divertido como um simples instante em que o agente do DOPS encontra um disco de Caetano Veloso (ao revistar a casa dos Paiva) e reage com um “Hum” constitui uma piada rápida, mas eficaz – e, à medida que a projeção avança, o riso em Ainda Estou Aqui deixa de ser indicador de alegria e passa a ser válvula de escape.
E se a transição do afeto para o horror funciona, em boa parte se deve à excelente performance de Selton Mello, que empresta carinho, devoção e calor humano tão intensos a Rubens Paiva que, quando chega a hora do personagem sair de cena (e demora bem menos do que eu esperava a acontecer), minha reação espontânea foi a de desejar para que ele não saísse, que voltasse logo depois. Aliás, puxando pela memória, não consigo pensar em intérprete melhor para o papel de Paiva do que Mello, já que ele construiu uma carreira inteira projetando simpatia e energia até mesmo em seus personagens mais distantes – isso sem contar a semelhança física entre o ator e o ex-deputado que interpreta. Para completar, cito três nomes que me saltaram aos olhos: Luiza Kosovski encarna bem não só o pavor e a desorientação de Eliana (ao ser levada ao DOPS junto com a mãe), mas também a inconformidade da garota por não admitir o abuso de autoridade (para dizer o mínimo) que acomete sua família; Valentina Herszage encontra o equilíbrio perfeito entre a indignação crescente de Vera e o peso que a maturidade lhe trouxe para processar melhor a situação; e Antonio Saboia incorpora um Marcelo Rubens Paiva já adulto que lembra tanto o verdadeiro escritor que é difícil não se impressionar com isso (algo que a caracterização obviamente ajuda muito).
Mas Fernanda Torres, claro, é uma força da natureza. Atravessando os 137 minutos de projeção com uma expressão que carrega, dentro de si, um mau pressentimento sobre as coisas que enxerga, Eunice é uma mulher cuja força se transmite, em especial, através do olhar. Já na cena que abre o filme, que traz a protagonista se banhando nas praias do Rio enquanto a família se diverte na areia, o semblante de Eunice é o de alguém que sente o perigo à espreita desde o início – e, por mais lúdico e afetuoso que seja o primeiro ato, o rosto de Torres impede que o espectador não pressinta, pelo menos em algum grau, que algo hostil está por perto. O mais revelador, no entanto, é a postura da atriz (e da personagem) depois do sequestro de Rubens Paiva, quando Eunice passa a se revelar uma figura ainda mais poderosa do que imaginávamos – e a força exalada por Torres é fundamental para que possamos enxergar a protagonista como o que ela é: uma mulher que não se permite parar de se preocupar nem por um segundo e que é obrigada, pelas circunstâncias, a não sucumbir (nem deixar escapar qualquer sinal de cansaço) mesmo com um mundo inteiro pesando nas costas.
É o olhar de Fernanda Torres ao observar, numa lanchonete, as famílias às outras mesas vivendo “completas” com seus pais/maridos, enquanto percebe que o dela foi tomado sem quaisquer explicações, que torna sua composição tão sublime. O que também se aplica, como não poderia deixar de ser, a Fernanda Montenegro, que volta a colaborar com Walter Salles (26 anos após Central do Brasil) e que surge, em Ainda Estou Aqui, interpretando a mesma personagem da filha décadas depois – numa sacada particularmente fantástica. Trata-se de uma aparição breve, mas inesquecível, que, também com o olhar, indica em toda sua plenitude a deterioração interna de Eunice e a desconexão dela com relação ao espaço ao seu redor.
E, ainda assim, Eunice se recusa a esquecer. É a resiliência de uma mulher – e uma família – que, mesmo com o trauma de uma interrupção trágica, segue em frente ainda conseguindo… sorrir. E dignificando o que/quem se foi.