Sean Baker é um diretor profundamente interessado por figuras às margens da sociedade norte-americana que, com seu estilo de vida particular e seu jeito de ser e reagir, expõem nuances e problemáticas bem mais amplas do que poderíamos imaginar. Se o ótimo Tangerina (um longa inteiramente rodado em câmera de iPhone, o que ajudava a trazer um ar de “guerrilha” à narrativa) sabia retratar a vida das garotas de programa trans que acompanhava com empatia e senso de humor invejáveis, o maravilhoso Projeto Flórida retratava a ilusão e a fantasia dos parques da Disney se esfacelarem diante do olhar de uma menina pobre que mora num hotel próximo, ao passo que este Anora de certa maneira combina um pouco dos dois ao retornar ao universo das trabalhadoras do sexo a fim de escancarar, através da comédia de absurdos, a quebra de uma ilusão de prosperidade a partir das diferenças de classe.
Produção independente escrita e dirigida por Baker, o longa gira em torno – como o próprio título indica – de Anora, uma stripper/garota de programa que, lutando para sobreviver de noite em noite, cai de paraquedas numa situação inusitada: quando o jovem e irresponsável Vanya (filho de um importante oligarca russo) vem aos Estados Unidos de férias e se depara com Anora, ele se interessa pela garota a ponto de pagar 15 mil dólares a ela para ser sua garota de programa exclusiva e, com isso, os dois se lançam numa sequência ininterrupta de festas e transas até que, em dado momento, eles param em Las Vegas e cometem o mais clássico dos erros que alguém bêbado e inconsequente pode cometer naquela terra: se casar. A partir daí, a família de Vanya chega, descobre seu matrimônio com Anora e começa toda uma jornada – ao longo de uma noite e parte do dia seguinte – para tentar pegar os dois pelo braço e levá-los a um cartório a fim de anular o casório (contra a vontade da protagonista).
Com uma primeira metade que se vale muito (temática, dramática e comicamente) do contraste entre os universos de Anora e Vanya, o filme é beneficiado pelo inteligente trabalho do diretor de arte Stephen Phelps, que estabelece bem a separação entre os mundos e as classes socioeconômicas dos dois jovens: se Anora vive num cubículo apertado e desorganizado enquanto trabalha num stripclub que, lotado e escuro, acaba não sendo também o mais aconchegante dos lares, a mansão da família de Vanya é tão cheia de cômodos, janelas de vidro, salas superamplas e coisinhas tecnológicas (e inúteis) que parece abrigar umas cinquenta outras mansões dentro de uma única. Além disso, Sean Baker acentua a disparidade entre Anora e Vanya através, principalmente, do humor que surge das personalidades de ambos: embora ela seja uma mulher que claramente tem uma dose de ingenuidade (algo que vai ficando mais e mais claro conforme a trama avança, pela insistência da moça em querer acreditar que Vanya dá a mínima para ela), ela também dispõe de uma perspicácia surpreendente e que permite-lhe tirar proveito de certas situações (só o fato de ela receber 15 mil dólares de Vanya já mostra como é fácil arrancar grana de rico otário).
Anora, por sinal, é uma personagem que oferece à atriz que a interpreta uma chance perfeita para exibir carisma, intensidade e domínio de tela – atributos que encontram-se todos presentes na performance de Mikey Madison, que estabelece bem as diferentes nuances da protagonista: se a princípio Anora parece uma personalidade monotônica (que só grita, reclama, faz cara de saco cheio, etc), na prática ela é tudo menos isso, equilibrando perspicácia e inocência sem que uma torne-se incompatível com a outra e costurando cautelosamente a transição que leva Anora de uma persona defensiva e cética para uma mulher que de fato nutre esperança de amor ou paixão reais, culminando, por último, num poço de desilusão e melancolia – e que Madison consiga fazer aspectos aparentemente antagônicos soarem coesos (e até complementares) dentro de um mesmo indivíduo é algo notável. Da mesma forma, Mark Eydelshteyn retrata Vanya como um playboy que acha que tudo pode (como comprar o amor genuíno de mulheres apenas para descartá-lo quando quiser, ou constranger o recepcionista de um hotel só de “brincadeirinha”) e que expõe como é fácil ser filho de um oligarca, já que, a rigor, a vida do moleque se resume a jogar videogame deitado no sofá – e a convicção de Vanya sobre o próprio poder é absurda a ponto de fazê-lo perder completamente a noção de ridículo (seja por ajeitar-se na cama com uma cambalhota hilária ou por atender uma porta estando visivelmente sob ereção), soando patético embora se ache a criatura mais gostosa que já passou pela Terra.
Hábil também ao mostrar não só o deslumbramento, como também as esperanças sentidas por Anora (afinal, ela de fato crê na legitimidade daquele relacionamento e na prosperidade – em termos de melhora no padrão de vida – que este trará), a primeira metade do longa, embora recheada de bom humor, surpreende ao contar também com uma melancolia sempre subjacente, já que o espectador percebe aquilo que a protagonista não enxerga: que, no fundo, as expectativas de Anora não passam de uma ilusão; nós vemos a farsa daquilo tudo, mas a personagem, ludibriada, não. Aliás, é interessante como a montagem do próprio Sean Baker se apresenta bastante dinâmica nesta primeira metade, registrando a dinâmica e o cotidiano de Anora e Vanya através de estímulos fáceis e cortes rápidos (de festa em festa, de transa em transa, de noite em noite) e ressaltando, com isso, como aquele “romance” nada tem nada de profundo (ao contrário do que pensa Anora), constituindo-se apenas de pequenos relances de empolgação.
Mas aí, quando chega a metade final de Anora, a montagem de Baker surpreende ao deixar de lado a estratégia dos cortes rápidos para, então, passar a acompanhar basicamente o fluxo de uma única – e longa – noite/manhã. A partir daí, se a primeira metade já fazia rir, a segunda torna-se absurda ao ponto das gargalhadas, começando com uma brilhante sequência que, durando uns bons 15/20 minutos, traz os funcionários do oligarca russo tentando conter Anora em uma sala de estar. Explorando os limites de cada personagem, esta cena se aproveita de um humor físico para demarcar, através das diferentes posturas dos personagens, os contrastes entre os “modos” (e as hipocrisias) das duas classes ali: se a princípio os tais funcionários parecem feitos para meter medo, na prática eles tentam controlar a situação sem usarem da força, mas o furacão representado por Anora demonstra que ela é quem é capaz de ditar o ritmo daquelas circunstâncias (como diz um dos caras, “Ela não briga feito uma garotinha”). Além disso, Baker descontrói o arquétipo dos “capangas brutos” ao mostrá-los como sujeitos patéticos, com o principal deles chegando a bater boca com adolescentes numa lanchonete e xingar um guarda ao ter o carro rebocado.
Dito isso (e tentarei evitar spoilers, mas talvez seja melhor terminar este texto somente quem já assistiu ao filme), é nesta reta final que a melancolia – apenas subjacente na primeira metade – torna-se explícita ao trazer a realidade enfim desabando sobre os ombros da protagonista, mostrando de forma definitiva (e através de exemplos repetidos e contínuos) como a classe dominante enxerga pessoas como Anora ou como pedaços de carne, ou como contratempos que podem ser facilmente resolvidos com ameaças, assédios jurídicos ou humilhações. Assim, depois de provocar uma quantidade considerável de risadas, Sean Baker arremata sua obra partindo o coração do público ao ilustrar como que, ao fim, nem a disposição para o prazer resta mais à jovem (ao menos, não naquele momento).
Afinal, a esperança e o conto de fadas que Anora alimentou na própria mente foram quebradas pelo mundo real de forma agressiva e traumática até demais.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: