Boas Maneiras (1)
Boas Maneiras

Título Original

As Boas Maneiras

Lançamento

7 de junho de 2018

Direção

Juliana Rojas e Marco Dutra

Roteiro

Juliana Rojas e Marco Dutra

Elenco

Isabél Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo, Cida Moreira, Felipe Kenji, Nina Medeiros, Andréa Marquee, Gilda Nomacce e Eduardo Gomes

Duração

130 minutos

Gênero

Nacionalidade

Brasil

Produção

Sara Silveira, Clément Duboin e Frédéric Corvez

Distribuidor

Imovision

Sinopse

Ana (Marjorie Estiano) contrata Clara (Isabél Zuaa), uma solitária enfermeira moradora da periferia de São Paulo, para ser babá de seu filho ainda não nascido. Conforme a gravidez vai avançando, Ana começa a apresentar comportamentos cada vez mais estranhos e sinistros hábitos noturnos que afetam diretamente Clara.

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As Boas Maneiras | Crítica

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É praticamente impossível falar sobre As Boas Maneiras sem comentar alguns pontos cruciais da narrativa – e, por isso, peço para que você leia este texto somente depois de assistir ao filme. À primeira vista, o novo projeto de Juliana Rojas e Marco Dutra pode ser descrito como um retrato da luta de classes e da desigualdade social que existe no Brasil (algo que, inclusive, tem a ver com o que a dupla havia feito em Trabalhar Cansa). Conforme o longa vai avançando, porém, os cineastas começam a injetar elementos abertamente fantasiosos e que, de certa forma, remetem a lendas urbanas que todos estão acostumados a ouvir desde que eram crianças. Em outras palavras: As Boas Maneiras é um exercício de gênero brilhante, saltando de um drama ancorado na realidade a uma fábula com toques pontuais de terror – e o mais impressionante (e admirável) é perceber como Rojas e Dutra conduzem essa transição sem permitir que a obra deixe de soar coesa.

Dividido em duas metades bem diferentes e definidas (acreditem: o filme toma um caminho completamente inesperado do meio para o fim), o roteiro – que foi escrito também por Rojas e Dutra – se passa em São Paulo e nos apresenta à babá Clara, que é contratada pela solitária Ana para ajudá-la em suas últimas semanas de gravidez. À medida que a história progride, a dinâmica entre as duas começa a se tornar mais intensa e calorosa – ao mesmo tempo, vai ficando cada vez mais claro que algo está errado com Ana, já que seus comportamentos sonâmbulos são, no mínimo, peculiares. O que acontece depois pode representar um spoiler (e daqueles bem pesados), mas considerando que até o material de divulgação já fez questão de escancarar a presença de um lobisomem na trama, então… não é preciso fingir que existe algum mistério, não é mesmo?

É curioso perceber como As Boas Maneiras parece incorporar vários filmes dentro de um único, gerando no espectador a sensação de que assistiu a uma obra complexa em sua definição de gênero – e os primeiros trinta minutos, por exemplo, nem de longe contam com o grau de onirismo que passa a dominar tudo que vem depois. Não que o longa se entregue à fantasia de maneira abrupta e inadvertida: desde o princípio, há um tom fabulesco que dá sinais de vida através da abordagem estética do projeto; algo que fica especialmente claro no trabalho do designer de produção Fernando Zuccolotto, que investe em cores intensas na hora de imaginar os apartamentos (a casa da senhoria de Clara, em especial, traz tons de verde, rosa e amarelo que se contrastam) e concebe uma versão bem mais lúdica da cidade de São Paulo (o edifício que abriga Ana é composto de imensos retângulos aglomerados, ao passo que o Shopping Bosque Cristal é retratado como uma pirâmide de vidro que me lembrou a fortaleza de Ozymandias em Watchmen). E se a fotografia de Rui Poças é bem-sucedida ao realçar estas cores e, com isso, fortalecer o tom de fábula que há narrativa, a trilha de Caetano Gotardo acerta ao utilizar instrumentos de cordas que ajudam a conferir a identidade sonora certa para a obra.

Mas um dos elementos que mais encantam em As Boas Maneiras é a inteligência do roteiro de Juliana Rojas e Marco Dutra, que “amarram” os arcos dramáticos através de rimas elegantes e soberbas: se Ana ouve a música “Chora, Me Liga” com relativa frequência (“Não era para você se apaixonar / Era só para a gente ficar / Eu te avisei / Meu bem, eu te avisei“), o mesmo será feito por Clara nos anos seguintes – e não por necessariamente gostar da canção, mas por ser um modo de manter Ana viva em suas memórias. O mesmo vale para a melodia que é tocada em uma caixinha de música, que significa uma boa lembrança para Ana e ganha uma dimensão ainda maior nos minutos finais da projeção, quando Clara resolve cantá-la de maneira doce, sensível e definitiva. Além disso, é difícil não admirar um roteiro que propõe uma transição tão forte de um estilo para outro, começando como um drama socioeconômico e transformando-se em uma fantasia assumida (com ecos de terror) sem perder a verossimilhança – e mais: encadeando uma mudança tão ambiciosa de forma ágil, mas cuidadosa.

Por falar em drama socioeconômico, o roteiro de Rojas e Dutra não deixa de usar a premissa de As Boas Maneiras como um espelho para a velha questão da luta de classes no Brasil, que ainda hoje permanece como um dos grandes problemas deste país desigual. Embora a relação entre Ana e Clara se torne mais afetuosa e profunda com o decorrer da história, ela nunca deixa de ser um exemplo óbvio de dinâmica de empregadora com empregada, não sendo uma surpresa, portanto, que o primeiro contato da patroa com a babá seja notavelmente frio e distante (Ana manda Clara ir ao supermercado, questiona o tamanho da colher que ela utiliza para servi-la e nunca diz “por favor”). Sim, o sentimento de carinho que Ana tem por Clara pode até ser legítimo, mas… ainda é sua superiora (pensem em uma pessoa que enxerga sua empregada como “parte da família”, mas que mesmo assim exige que ela durma num quartinho apertado, use um banheiro específico e evite sentar à mesa). Não custa lembrar, claro, que Ana pertence à classe média alta de São Paulo, ao passo que Clara vive na periferia às custas de sua senhoria.

Outro elemento bem-sucedido do roteiro é a maneira com que resgata uma antiga lenda urbana e se esforça ao máximo para humanizá-la (e aí, me refiro aos aspectos contidos na segunda metade da narrativa – então avisarei mais uma vez: não leia o que está escrito a seguir se você ainda não tiver visto o filme!): vivido pelo expressivo Miguel Lobo (pois é, o sobrenome diz tudo) como uma criança retraída e atormentada por ser quem é – mesmo sem saber direito o que é –, o pequeno Joel cresceu sem nunca ter encostado em um pedaço de frango ou carne, come legumes e verduras na hora do recreio, é incapaz de reconhecer uma fatia de mortadela e se sente mal ao constatar que não pode desfrutar dos mesmos prazeres que seus colegas de classe (afinal, ele não pode ir a uma festa em noite de lua cheia). Todos ao seu redor acreditam que Joel está sempre doente – e não deixam de ter certa razão –, o que faz sua condição soar ainda mais trágica. E quando um filme consegue fazer o espectador se emocionar com a história de um garoto lobisomem, é porque algo especial aconteceu.

Aliás, figuras trágicas não faltam em As Boas Maneiras: se estabelecendo como um retrato da pessoa rica que “tem tudo, mas não tem nada”, Ana é uma mulher que foi prontamente rejeitada por seus familiares e amigos depois de ter engravidado de um desconhecido quando estava prestes a se casar (ao ver uma velha amiga em uma loja e partir em direção a ela com um sorriso entusiasmado, Ana acaba provocando nesta outra mulher o impulso de se afastar). A solidão de Ana, inclusive, é demonstrada de forma objetiva numa cena em que ela se senta à mesa e se vê absolutamente isolada, sem sequer chamar Clara para dividir o espaço – e não é de se espantar que a presença desta babá/empregada acabe servindo como um jeito de preencher um vazio emocional que a patroa guarda em seu interior. Para fazer jus a tudo isso, a performance de Marjorie Estiano torna-se fundamental ao ilustrar as dores e os desejos particulares de Ana, que são ilustrados de modo interessante e emocionalmente carregado pela atriz.

O que nos traz, por fim, à excelente Isabél Zuaa, cujo desempenho exibe diversas nuances – e estas acabam servindo para pontuar cada instante da narrativa: mantendo-se constantemente calada e trêmula, Clara passa a primeira metade do filme sentindo o peso de ser subordinada à elite e aos poucos descobre uma voz que lhe permite se sentir mais à vontade, mesmo permanecendo distante e apreensiva em boa parte do tempo. Do meio para o fim, porém, surge a tal reviravolta que define a jornada de Clara, que, a partir daquele momento, sente a responsabilidade de continuar com aquilo que conheceu em sua convivência com Ana (o filho desta) e ganha uma força que até então não havia exibido, tornando-se uma personagem bem mais intensa, ativa e direta do que demonstrava ser – e o carinho que sente por Joel é um dos elementos dramáticos mais eficientes do longa; o que não seria possível se não fosse a performance convincente (e brilhante) de Zuaa.

Revelando-se uma experiência incessantemente interessante e atraente (seus 130 minutos de duração fluem na medida certa), As Boas Maneiras é uma obra rica e complexa na sua forma de brincar com estilos e gêneros tão diferentes, chegando a incluir um número musical que serve para pontuar a transição que o filme fará de sua primeira metade para a segunda. E digo mais: em um mundo justo, o trabalho de Juliana Rojas e Marco Dutra bem que poderia ser cotado para o Oscar de melhor roteiro original – o que, claro, não acontecerá. Mas merecia.

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