Os europeus chegaram ao Brasil há mais de 500 anos, massacraram os nativos que aqui vivam e transformaram estas terras em uma colônia de Portugal. Isso é algo que todo mundo já sabe – o que talvez não seja tão óbvio, no entanto, é que embora tenham se passado cinco séculos desde então, a mentalidade de colônia seguiu fazendo parte da nossa realidade. Sim, a nossa independência foi declarada por Dom Pedro II em 1822, mas as heranças deixadas por mais de 300 anos de subserviência e os costumes de quem insiste em se ajoelhar diante de seus líderes europeus permanecem até hoje. E, por mais que Brasil seja um território de proporções continentais, riquíssimo em recursos naturais e incrivelmente abrangente no que diz respeito à sua diversidade cultural/étnica, há uma parcela pequena, porém privilegiadíssima da sociedade que deseja reduzir o país a um cordeirinho das superpotências, valorizando apenas o que vem de fora, batendo continência para a bandeira dos Estados Unidos e aplaudindo o entreguismo irrestrito.
Não dá para baixar a cabeça e assistir ao desmonte que vem sendo organizado no Brasil sem nenhum tipo de indignação; é necessário manter os pés firmes do chão e resistir ao máximo possível. Neste sentido, Bacurau é um belo exemplo para os brasileiros que rejeitam esta postura subalterna. Esteticamente diferente dos dois trabalhos anteriores de Kleber Mendonça Filho (O Som ao Redor e Aquarius), este novo longa (co-dirigido por Juliano Dornelles) se apresenta como uma mistura perfeita de gêneros e encontra na distopia uma maneira de espelhar os problemas que ocorrem no Brasil nos dias de hoje. Assim, a história se passa no povoado fictício de Bacurau, no Sertão, e enfoca o dia a dia de seus habitantes, que, após enterrarem uma de suas cidadãs mais influentes (Carmelita, avó de uma família gigantesca), começam a se deparar com situações cada vez mais estranhas: a cidade simplesmente desaparece do mapa; estrangeiros visitam a cidade pela primeira vez; drones perseguem moradores aparentemente comuns; e carros são alvejados por inimigos misteriosos. Percebendo que estão diante de um ataque, os conterrâneos de Bacurau resolvem unir seus esforços e criar uma estratégia de defesa.
Chamando a atenção do espectador ainda em sua sequência de créditos iniciais, que simplesmente enfocam a imensidão do espaço e já sugerem um teor grandioso para o que virá a seguir, Bacurau é inteligente ao construir cuidadosamente a lógica de seu universo e da trama em si: em vez de escancarar tudo para o público logo de cara, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles preferem se concentrar em um clima de tensão crescente e aos poucos ir revelando todas as características que compõem a narrativa. Isto, inclusive, permite que o filme surpreenda o espectador a qualquer momento: quando parece que estamos assistindo a um faroeste no Sertão, de repente começam a aparecer elementos de ficção científica inesperados – e quando a história parece estar se encaminhando para um lugar específico, algo subitamente a leva para um caminho diferente. Assim, Bacurau torna-se uma experiência, no mínimo, intrigante, mantendo o espectador atento ao que está acontecendo mesmo quando ainda não sabe ao certo o que está acontecendo.
E o mais impressionante é que a maior parte das escolhas tomadas pelo filme tinham tudo para dar errado: como conciliar a abordagem seca, sufocante e visceral estabelecida ainda no primeiro ato aos elementos de ficção científica que aos poucos vão aparecendo na narrativa? Felizmente, Kleber e Dornelles constroem este cenário (e suas possíveis transições de um gênero para outro) com extrema cautela: logo no começo, é estabelecido que a trama se passa em um “futuro próximo”, mas nunca sabemos ao certo em qual ano ela se passa – e o simples fato de ser ambientado no futuro já permite que o longa introduza conceitos high tech e que estes se tornem cada vez mais presentes à medida que a história avança. Além disso, Kleber e Dornelles não escondem a influência que tiveram de John Carpenter, referenciando abertamente seu estilo particular através dos sintetizadores que pontuam a trilha sonora e, claro, do nome dado à principal escola da cidade (Colégio Municipal João Carpinteiro). Para completar, os diretores aproveitam bem os dois primeiros atos da narrativa para construir um clima de suspense que deixa o espectador inquieto mesmo quando não sabe ao certo o que está gerando esta inquietação – e quando chega o terceiro ato, o filme finalmente se entrega à violência, à catarse e à sanguinolência, atingindo um impacto que funciona essencialmente pela tensão que o antecipou por quase duas horas.
Aliás, quando o terceiro ato chega, boa parte de sua força e de sua tensão vêm também do fato de que nós, como espectadores, pudemos identificar as diversas alegorias políticas que Kleber e Dornelles empregaram para compor a narrativa – desta maneira, o público passa a sentir ainda mais a catarse proporcionada pelo desfecho da história, como se assistisse aos vários problemas do Brasil contemporâneo sendo “revidados” pelos protagonistas. (E, a partir de agora, entrarei em detalhes do que acontece na trama; portanto, aconselho só prosseguir com a leitura quem já tiver assistido ao filme.) Não que estas alegorias sejam sutis – e não são mesmo –, porém acabam funcionando justamente por representarem versões extremas de tudo aquilo que ameaça o país hoje, utilizando o absurdo como método de conscientização. (E é realmente uma pena que o Brasil esteja afundando a ponto de tornar este absurdo em algo cada vez mais próximo da realidade, como atestam as principais medidas tomadas pelos governantes e pelos poderosos em geral.) Assim, considerando que nos últimos anos andaram surgindo movimentos que pediam que o Norte e o Nordeste se separassem do restante do país (alguns deles sugerindo que o Sul se tornasse um país independente e criando até “mascotes” que promovessem esta causa), não é de se espantar que, em Bacurau, o Brasil já esteja oficialmente separado em dois – e também não é à toa que os políticos daquela região encontram-se cada vez mais interessados em apagar a cidade-título do mapa.
Tudo isso porque aquela parcela pequena, porém privilegiadíssima da sociedade brasileira faz questão de sempre bajular os líderes europeus e estadunidenses, abrindo mão da riqueza cultural que o Brasil tem por natureza, jogando uma parte considerável da população tupiniquim para escanteio (só porque esta mora no interior de regiões tradicionalmente ignoradas pela maioria dos governantes) e emulando os costumes que vêm de fora sem se preocupar com a própria identidade. Em Bacurau, os vilões são um bando de estrangeiros que querem vampirizar o nosso já maltratado Brasil – e que, para piorar, ainda receberão apoio e aplausos de dois brasileiros (no caso, interpretados por Karine Teles e Antonio Saboia). Inclusive, uma das cenas mais emblemáticas do filme gira em torno da bajulação destes pelos vilões principais: não demonstrando nenhum apreço pela cultura local, o casal de capangas insiste em negar, por exemplo, suas feições latinas; o que eles querem mesmo é que seus colonizadores os reconheçam como brancos caucasianos.
E este é apenas um dos vários momentos em que Kleber e Dornelles denunciam aquilo que falei no começo: o Brasil ainda é uma colônia. Pode não ser uma colônia oficial, mas os costumes de uma nação colonizada permanecem até hoje, os métodos de colonização mudaram nos últimos 500 anos e os colonizadores em si não estão mais localizados somente na Europa. (Aliás, sempre que toco neste assunto, termino recomendando um texto absolutamente fundamental – e estarrecedor – chamado A Estética da Fome, escrito por um dos maiores gênios da história do Cinema: Glauber Rocha.) Ainda assim, a palavra-chave de Bacurau é uma só: resistência – e, neste sentido, o povo da pequena cidade que dá título ao filme merece ser encarado como um exemplo de sobrevivência.
Não é surpresa, portanto, que a protagonista da história seja a própria Bacurau. Sim, os personagens são intrigantes e o elenco cumpre bem seu papel: Sonia Braga torna Dona Domingas uma figura ambígua, mas repleta de persistência; Silvero Pereira confere ares de Lampião ao guerrilheiro Lunga, funcionando como um símbolo de visceralidade; e Udo Kier encarna o militar Michael como um vilão verdadeiramente desprezível. Por outro lado, a falta de interesse do filme em aprofundar seus personagens, às vezes, torna-se um problema – e Teresa, em especial, merecia um tratamento maior (ainda que Bárbara Colen faça um bom trabalho ao adotar a sutileza como base de sua performance). De todo modo, quem realmente se destaca é a cidade e o povo que ali reside – e resiste.
O fato é que Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles criaram uma obra indispensável no Brasil em que vivemos hoje. E que as alegorias retratadas no filme estejam cada vez mais próximas de virar realidade é um triste indicativo de como o país vem chafurdando diante das próprias escolhas. O que nos resta, portanto, é seguir os passos dos moradores de Bacurau.
1 Comentário
Análise incrível como sempre!! E que filme maravilhoso, com certeza um dos melhores que já vi