Logo nos primeiros minutos de Capitão América 2: O Soldado Invernal, vemos uma sequência de ação que traz o herói se infiltrando num navio sequestrado e neutralizando os raptadores. Há, nesta cena, algo que a torna curiosamente diferente do habitual nestes filmes de super-heróis: a fotografia dessaturada carrega em tons cinzentos a coreografia é bem mais agressiva do que poderíamos imaginar; os criminosos são seres humanos que lutam com armas e facas; a trilha incidental é mais seca e menos heroica do que aquelas escutadas em obras como Os Vingadores; e a direção investe num estilo notavelmente enérgico, empregando cortes rápidos e movimentos de câmera inquietos que, juntos, remetem ao que Paul Greengrass fez na série Bourne. A verdade é que, embora deixe clara sua ligação com o resto do Universo Marvel, Capitão América 2 é um longa surpreendentemente particular em termos de estética, ritmo e tom.
Qual o resultado desta aposta? Um filme que funciona bem como espetáculo de ação, mas que conta ainda com o bônus de ter uma personalidade própria e comunicar-se de maneira mais adulta. Parece que, depois dos horríveis Homem de Ferro 3 e Thor 2, a Marvel finalmente entendeu que não é necessário seguir uma fórmula intocada para atingir o sucesso.
Escrito pelos mesmos Christopher Markus e Stephen McFeely do primeiro longa, Capitão América 2 se passa cerca de um ano após Steve Rogers acordar no presente e voltar à ativa em Os Vingadores. Agora trabalhando como agente secreto da SHIELD, o Capitão América vive lutando ao lado da Viúva Negra até que o diretor Nick Fury sofre um atentado, deixando com os dois super-heróis a difícil tarefa de desbravar uma imensa conspiração existente por trás da agência. Enquanto tornam-se foragidos do governo, Steve Rogers e sua parceira ainda enfrentam outro perigo misterioso: o Soldado Invernal, que parece agir como arma secreta dos vilões. Assim, se antes os vilões eram extraterrestres e criaturas deformadas, desta vez o Capitão América terá que bater de frente com intrigas políticas e fantasmas do passado.
A primeira coisa que chama a atenção em Capitão América 2 é perceber como os irmãos Anthony e Joe Russo (que dirigiram alguns episódios de Community) criam um filme que, mesmo dando sequência a uma franquia já estabelecida, é completamente diferente do que havia sido feito antes: se Joe Johnston transformou O Primeiro Vingador numa aventura retrô que remetia à série Indiana Jones, este O Soldado Invernal é, por sua vez, uma mistura inesperadamente eficaz de Três Dias do Condor, O Ultimato Bourne e Os Vingadores, inspirando-se ao mesmo tempo nos thrillers políticos da década de 1970 e nos representantes contemporâneos do gênero “ação” (sem esquecer, é claro, que pertence ao subgênero dos super-heróis). Aliás, é admirável que os irmãos Russo consigam desenvolver, em Capitão América 2, algo que deveria ser básico nestes filmes, mas que falta à maioria dos diretores que assumem os projetos da Marvel: atmosfera de urgência – e se antes cidades eram dizimadas sem que sentíssemos que os protagonistas estão correndo perigo, agora finalmente podemos acreditar na tensão e no drama que os personagens experimentam nas situações em que se inserem.
Não é surpresa, por sinal, que este longa volte a comprovar algo que o primeiro Homem de Ferro indicava com maestria: a Marvel tende a obter resultados mais interessantes quando realiza um bom entretenimento sem deixar de incluir algumas discussões políticas – e é curioso que o roteiro de Christopher Markus e Stephen McFeely insira temas pontuais que remetem à guerra ao terror, aos escândalos de espionagem na NSA, ao infame Ato Patriótico e à paranoia pós-11 de setembro que deu aos Estados Unidos o poder vigilante de atirar para depois saber se a vítima era mesmo culpada. Trata-se, como deu para notar, do filme mais sério já realizado pela Marvel, que faz questão de reduzir o número de piadinhas a fim de concentrar-se em diálogos mais maduros e em situações mais pesadas (o que não significa, porém, que os eventuais momentos de bom humor não funcionem; a referência ligeira ao “Ezekiel 25:17” de Pulp Fiction, por exemplo, é digna de nota).
O que nos traz, inclusive, ao próprio Capitão América, cujo arco dramático ganha uma evolução apreciável: inicialmente aproveitado para representar os “ideais norte-americanos” (um conceito anacrônico por si só), agora Steve Rogers é reposicionado no tempo e vê que, no presente, sua pátria amada foi corrompida, tornando-se suja e ilegítima em seus princípios – e a amargura sentida pelo herói é ilustrada com competência por Chris Evans, que transmite bem a desilusão que toma conta de Rogers. E se Samuel L. Jackson enfim ganha a oportunidade de transformar Nick Fury numa figura um pouco mais ativa e movimentada, Scarlett Johansson confere uma dimensão inesperada à Viúva Negra, que carrega dúvidas morais ao passo que o carismático Anthony Mackie retrata o Falcão como um sujeito bastante divertido. Já Robert Redford planta no espectador a incerteza a respeito de seu caráter, vivendo uma inversão do papel de mocinho que se acostumou a interpretar em obras como Todos os Homens do Presidente e o já mencionado Três Dias do Condor. Por fim, há também o antagonista que dá subtítulo ao longa: encarnado por um imponente Sebastian Stan, o Soldado Invernal soa como uma ameaça hostil e iminente, exibindo uma postura física que tende a torná-lo intimidador e agressivo (o que é um acerto e tanto).
Outra grande surpresa de Capitão América 2 é o trabalho dos irmãos Russo na hora de dirigir as esperadas sequências de ação – e como é bom ver uma dupla de cineastas que sabem adotar um estilo mais frenético sem sucumbir ao caos visual (estou olhando para você, Michael Bay). Coordenadas com dinamismo e intensidade, as lutas contam com coreografias complexas e detalhistas, mas estas são apresentadas com clareza pelos diretores, que, mesmo cortando a cada dois ou três segundos e movendo a câmera constantemente, jamais deixam o espectador perder a noção da mise-en-scène (ou seja: a composição; o que os personagens estão fazendo, onde eles se situam no cenário e etc). Para completar, se o diretor de fotografia Trent Opaloch (de Distrito 9) aposta numa paleta de cores cinzenta sem mergulhar o filme em sombras que talvez prejudicassem a ação (sempre ocorrida sob a luz do dia), o compositor Henry Jackman (de Kick-Ass e X-Men: Primeira Classe) mostra-se particularmente inspirado ao empregar gritos perturbadores para caracterizar o Soldado Invernal e energizar o ritmo de certas passagens através de tambores pulsantes.
Há, porém, aqueles problemas habituais dos filmes da Marvel: depois de uma hora e meia concentrando-se em sequências de ação mais contidas e viscerais, Capitão América 2 rende-se à necessidade de criar, em seu terceiro ato, uma batalha grandiosa que pouco tem a ver com a proposta “pé no chão” que os irmãos Russo vinham mantendo até ali (é uma sorte, portanto, que os diretores transformem o clímax numa batalha onde o que importa mesmo é o peso dramático da situação, dando ênfase à dor sentida por Rogers ao lutar contra um amigo querido). Além disso, é uma pena que, assim como seu antecessor, esta continuação tropece com um desfecho excessivamente preocupado com o futuro do Universo Marvel – notem que nem o arco que dá título ao filme (o do Soldado Invernal) é concluído apropriadamente, sendo então reservado para um próximo longa.
Pontualmente prejudicado por algumas soluções fáceis encontradas de maneira preguiçosa pelo roteiro (é sintomático, por exemplo, que exista não uma, mas duas ocasiões onde um personagem escapa de um perigo cavando um buraco no chão), Capitão América 2 ainda assim é uma grata surpresa dentro de um subgênero que tende a apostar cada vez mais no lugar-comum. Espero que a Marvel tenha enfim percebido que, às vezes, fugir um pouquinho da zona de conforto vale a pena.