Com nome originado da junção de “gorira” e “kujira” (respectivamente, “gorila” e “baleia” em japonês), o monstro Gojira – ou Godzilla, para o Ocidente – foi criado alguns anos após os bombardeios a Hiroshima e Nagasaki, servindo como uma representação física aterrorizante e monstruosa de todos os medos e traumas dos japoneses após os eventos mencionados. O almirante Isoroku Yamamoto, que orquestrou o famoso ataque a Pearl Harbor, chegou a declarar a famosa frase “Creio que tenhamos acordado um gigante adormecido” – e esta afirmativa descreve perfeitamente o que é Godzilla (me manterei usando a tradução ocidental por razões de costume, ok?).
Como todos já sabem, depois que os japoneses atacaram Pearl Harbor, os americanos revidaram atirando bombas atômicas e devastando as cidades que mencionei. Com isso, o Japão ficou realmente arrasado e sofreu com uma série de problemas gravíssimos, além de ter ganhado um trauma fortíssimo devido aos bombardeios. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, veio a Guerra Fria e vários testes atômicos foram realizados no Pacífico, causando alguns efeitos danosos como contaminação radioativa e potencializando o medo dos japoneses. Desse pavor, veio a ideia de traduzi-lo na figura de uma horrenda criatura que viria a se tornar o Rei dos Monstros. Impressionados com o quão rico e profundo é o conceito do Godzilla?
A ideia inicial era de que o monstro seria uma espécie de polvo gigantesco, mas logo os realizadores perceberam que uma figura mais humana anatomicamente seria bem mais interessante e bem mais fácil de se pôr em tela, mudando então para um híbrido entre um ser pré-histórico terrestre e um marítimo. Com todo esse contexto envolvendo a concepção do Godzilla, vieram também as influências para a estética do personagem, e com isso foi decidido que a criatura teria a capacidade de cuspir rajadas nucleares. Mas o mais interessante é que, nos primeiros esboços do design do personagem, a forma de sua cabeça se assemelhava ao “cogumelo” gerado pela explosão da bomba atômica. Depois decidiram que sua cabeça não seria algo tão mirabolante e, depois que finalmente criaram o design do Godzilla, o produtor Tomoyuki Tanaka chamou o consagrado Ishirō Honda para assinar a direção do longa-metragem que apresentaria ao mundo tal monstro – longa este que estreou no Japão em 3 de novembro de 1954 e deu início a uma das mais emblemáticas criaturas da cultura pop.
Escrito por Honda ao lado de Takeo Murata a partir do argumento de Shingeru Kayama, Gojira se inicia apresentando duas navegações sendo atacadas de forma misteriosa e criando pânico devido à quase simultaneidade que marcou os dois acontecimentos. Após uma expedição investigativa realizada pelo professor zoologista Kyohei Yamane (interpretado por Takashi Shimura), a equipe descobre o que realmente aconteceu com os dois navios comerciais: uma criatura jurássica os exterminou quase que totalmente, e após a formulação de algumas hipóteses é revelado que trata-se do lendário Gojira, um gigantesco ser pré-histórico que estava adormecido e que fora despertado pelas bombas atômicas, sofrendo, com isso, alterações que o tornaram radioativo e o concederam a capacidade de disparar rajadas nucleares. Ah, e lembrando de um pequeno detalhe: ele está à solta!
Gojira (nome ocidental dado ao monstro e ao filme) é uma obra que certamente surpreenderá aos mais preconceituosos em relação a produções japonesas estreladas por monstros e heróis que destroem maquetes ao se confrontarem, e isso se deve ao roteiro intrincado que sabiamente aproveita o conceito do personagem-título para retratar o contexto histórico que o originou e promover profundas discussões a respeito da indústria bélica, das guerras e de suas consequências. A sensação de que uma traumatizante tragédia foi ressuscitada é ilustrada com primor ao ser estabelecida uma comparação entre os feitos do Godzilla e as consequências dos ataques a Hiroshima e Nagasaki, dando a impressão de que uma nova catástrofe do mesmo grau foi ocorrida. Após a destruição de Tóquio causada pelo monstro, vemos pessoas desabrigadas, uma moradora de rua aguardando seu fim ao lado de seus dois filhos dizendo que eles irão ”… reencontrar o pai”, um hospital recebendo centenas de vítimas gravemente feridas acomodando a maioria delas nos corredores do ambiente, uma menina apavorada gritando no hospital após presenciar a morte de sua mãe… Godzilla orquestrou um verdadeiro desastre.
Fora isso, também vemos uma claríssima crítica ao armamentismo no momento em que é revelado que, talvez, a única forma de derrotar Godzilla seria utilizando a criação secreta do cientista Daisuke Serizawa, vivido por Akihiko Hirata. A arma desenvolvida pelo personagem é o Destruidor de Oxigênio, um dispositivo capaz de tornar átomos de oxigênio em líquido e vice-versa, fazendo com que seres marítimos sejam desintegrados graças à asfixia provocada pelo oxigênio na água e fazendo seus resíduos serem liquefeitos – eu sei, é uma doideira. Entretanto, o cientista opta por manter sua criação em sigilo graças ao potencial destrutivo de tal arma, aplicando no personagem um ar de J. Robert Oppenheimer. Se liberar sua invenção para o mundo bélico, o Destruidor de Oxigênio poderia facilmente ser usado para fins letais assim como a bomba nuclear, o que faz com que Serizawa resista fortemente aos pedidos para que deixe seu dispositivo ser usado para tentar matar Godzilla.
Além de mostrar os males de uma guerra, Gojira ainda gera uma reflexão interessantíssima ao trazer o professor Yamane se mantendo absolutamente contra as tentativas de matar o monstro por acreditar que este possa ser estudado por uma perspectiva radiológica, criando mais um debate interessante a respeito do uso de animais para fins científicos. E como se não bastasse, ainda no primeiro ato da projeção somos apresentados à uma sequência onde é questionado se a informação a respeito da existência do Godzilla deve vir a público, e dois grupos com opiniões extremas totalmente contrárias discutem fervorosamente a questão.
Fora isso, Gojira ainda conta com interpretações bastante satisfatórias considerando, claro, a época em que foi lançado; com destaque para a convincente e adorável Emiko Yamane de Momoko Kōchi. Mas quem merece ênfase verdadeira é o próprio Ishirō Honda com seus enquadramentos interessantíssimos que sempre exaltam o incrível tamanho de Godzilla e o ilustram de forma absolutamente verossímil e convincente. Além de dirigir bem o elenco, Honda demonstra experiência e autocontrole ao conduzir a narrativa de maneira profundamente eficiente, mantendo o foco sem jamais se distrair e entregar-se a tolos desenvolvimentos de subtramas supérfluas; seria possível, por exemplo, manter um arco romântico num mesmo longa-metragem onde paralelamente há um monstro gigantesco surreal ameaçando a vida de milhares de inocentes e destruindo Tóquio? Creio que não – e que sirva de lição a todos os cineastas que forem realizar produções protagonizadas por tal personagem daqui pra frente.
Ainda que tecnicamente seja datadíssimo, Gojira ainda é capaz de divertir imensamente com seus efeitos extremamente práticos e com seu personagem-título sendo vivido por um ser humano trajado com fantasias cheias de dobrinhas e movimentos limitadíssimos. Claro que a risada involuntária é gerada em determinados momentos (como na cena de um capotamento acelerado de um carro de brinquedo), mas nada que ofusque o brilho da seriedade e da qualidade artística por trás da estética do longa.
Gojira é inquestionavelmente uma das produções mais significativas do Cinema japonês e um filme de monstros nipônicos surpreendentemente inteligente, sério (sim!) e obrigatório não só aos otakus, mas aos cinéfilos em geral. Além de servir como uma ótima reflexão acerca de variados temas, ainda é capaz de divertir fartamente e merece respeito por ter alcançado os dois objetivos apesar de alguns efeitos prejudiciais causados pelo tempo.