Após alguns anos de sucessivas decepções, o diretor Christopher Nolan finalmente volta, em Oppenheimer, à boa forma – e o faz justamente por ter encontrado, aqui, uma premissa e um protagonista perfeitos para amparar seu estilo excessivamente racional e didático (para não dizer expositivo). Adaptado da biografia Prometeu Americano, escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin em 2005, o roteiro escrito pelo próprio Nolan encobre quase quatro décadas da vida do físico J. Robert Oppenheimer, que entrou para a História nos anos 1940 ao liderar a equipe de cientistas do Projeto Manhattan (este, por sua vez, dirigido pelo general Leslie Groves) e, por consequência, criar a bomba atômica que, como todos sabem, viria a ser usada um mês depois nos bombardeios em Hiroshima e Nagasaki – bombardeios estes que configuram dois dos maiores crimes de guerra da História, resultando em algo entre 120 e 220 mil mortos só nos dias dos ataques (sem contar, é claro, as tantas outras pessoas que, nas décadas seguintes, adoeceram e/ou morreram em função das contaminações que ali restaram).
Mas o filme, como o próprio título indica, gira em torno não (apenas) da criação da bomba atômica, mas da vida do homem que a engendrou. Assim, passamos pela dificuldade em se ajustar socialmente que o protagonista sentia desde a infância, por seus relacionamentos conturbados, por suas obsessões que o levariam a sonhar em pôr suas teorias em prática, pela coordenação do projeto nuclear que envolveria o famoso teste Trinity (quando a bomba foi explodida pela primeira vez), pela culpa que carregou graças aos bombardeios e pela proximidade com ideias de esquerda (e mesmo com o comunismo) que, lá na frente, foi resgatada no julgamento ao qual foi submetido (com o claro intuito de eliminar sua influência política e de revogar sua credencial de segurança). Boa parte destes eventos, no entanto, é abordada por Christopher Nolan não de forma totalmente linear, mas, sim, embaralhando-os a fim de tornar a estrutura do longa mais complexa – o que, contudo, funciona para tirar de Oppenheimer o rótulo de “cinebiografia convencional e formulaica” embora, a rigor, o roteiro ainda consiga estabelecer uma escalada emocional que se mantém do início ao fim, chegando a um clímax que soa lógico mesmo com estas idas e vindas na cronologia.
Igualmente complexas são as várias discussões envolvendo física nuclear, que ocorrem constantemente e que – de novo – têm tudo a ver com o estilo, as preferências e os maneirismos particulares de Nolan (neste sentido, não acho absurdas as comparações que tenho visto entre Oppenheimer e A Rede Social, já que David Fincher é outro cineasta que parece bem à vontade em narrativas excessivamente “cerebrais” e abarrotadas de diálogos puramente técnicos). Como Física, Química e Matemática eram as matérias das quais eu mais apanhava no colégio, não é surpresa que boa parte dos conceitos que os personagens citavam tenham soado como grego para mim. De todo modo, estas conversas funcionam porque estão ali menos para cumprir uma função expositiva (ou seja: a de explicar/mastigar para o público todas as particularidades científicas do que é retratado) e mais para ditar o ritmo de uma história que, no fim das contas, é pautada por informações complicadas ditas de forma acelerada e intensa – e não é à toa que, mesmo durando três horas, o filme ainda assim transcorre com certa fluidez, não se tornando particularmente monótono.
Porém, o mais surpreendente em Oppenheimer (ainda mais levando sua verborragia e sua natureza “de exatas”), é constatar que mesmo assim talvez seja o filme de Christopher Nolan no qual mais consigo enxergar e absorver sentimentos por parte do diretor – e ainda mais inusitado, levando em conta o histórico do realizador e sua notória propensão ao didatismo, é que estes efeitos são alcançados não só pelos diálogos, mas também pelos olhares do protagonista e, principalmente, pela maneira com que Nolan usufrui dos elementos formais da obra. Assim, o peso sobre a consciência de Oppenheimer se manifesta através menos de falas nas quais ele expressa o arrependimento e mais de sequências como, por exemplo, aquela que o traz alucinando ao fazer um pronunciamento sobre o sucesso das bombas: o plano de fundo começa a tremer incessantemente, o som efusivo da plateia é substituído por um silêncio perturbador, as pessoas ali presentes começam a gritar de desespero e a se desintegrar/petrificar e um facho de luz mergulha a cena num clarão que dificulta nossa visão – um clarão que retorna quando o protagonista é interrogado pelo advogado Roger Robb.
São soluções sutis? Não; mas pouco importa: ao menos, são passagens cujo impacto é construído por imagem e som – e não por diálogos expositivos. E se os atos sexuais entre Oppenheimer e Jean Tatlock são enfocados por Nolan com frieza e distanciamento totalmente condizentes com a personalidade quase robótica do personagem-título, o momento que mostra a explosão da bomba no teste Trinity toma uma decisão perfeita ao cortar o som do estrondo da arma e deixar, em seu lugar, apenas o silêncio e as respirações ofegantes do protagonista – o que serve para isolar e realçar ainda mais seu espanto diante da cena que vê diante de seus olhos (leia-se: sua própria criação). Outra contribuição impecável neste sentido é a da montadora Jennifer Lame, que, além de conferir ritmo e intensidade a uma história que poderia facilmente sucumbir ao tédio, executa bem a tarefa de inserir, em meio às sequências, pequenos flashes entrecortados que duram pouquíssimos segundos (até menos que isso) e revelam fragmentos de imagens de átomos se dividindo, faíscas estourando, composições químicas se formando, etc (perdoem-me se falei algo errado; como já disse, sou de Humanas).
É uma escolha formal que pode até parecer simples (embora não seja), mas que acaba desempenhando um papel fundamental ao ressaltar a tensão que vai crescendo de cena a cena e, também, ao ilustrar visualmente as obsessões que pairam na mente do protagonista, ao passo que a excelente trilha sonora de Ludwig Göransson alterna bem entre a angústia e a melancolia de cada passagem da narrativa e evoca com precisão todos os sentimentos que atravessam o biografado nos diferentes pontos de sua trajetória, trazendo-os para a superfície. Para completar, se a figurinista Ellen Mirojnick e a diretora de arte Ruth De Jong fazem um trabalho irretocável na reconstituição da época que abriga a história (a recriação da base de Los Alamos, aliás, é impressionante), a fotografia de Hoyte Van Hoytema confere peso e imponência tanto aos momentos mais introspectivos quanto aos mais grandiosos (se valendo muito, neste sentido, do uso de câmeras IMAX, que não são deixadas de lado nem quando estão próximas aos rostos dos atores para enfocar diálogos mais íntimos, em menor escala). Além disso, Hoytema também cumpre a função de demarcar estilisticamente a cronologia dos eventos abordados – e, assim, tudo que envolve o empresário Lewis Strauss anos depois do julgamento de Oppenheimer é apresentado em preto-e-branco, ajudando a sinalizar sua posição na linha do tempo.
Reunindo um elenco tão estelar que se dá ao luxo de trazer atores como Kenneth Branagh, Casey Affleck, Benny Safdie, Jason Clarke, Rami Malek, Tom Conti, Gary Oldman e vários outros em participações breves, mas indispensáveis (por motivos diversos), Oppenheimer traz, entre tantos rostos conhecidos, Robert Downey Jr. tendo a oportunidade de finalmente se desprender da persona de Tony Stark à qual passou mais de uma década amarrado, encarnando Lewis Strauss como um tipo manso e introspectivo que, justamente por isso, torna ainda mais surpreendente e inesperada sua mudança no terceiro ato, quando se revela o real antagonista da história e se ao nervosismo e à agressividade em suas falas. E se Matt Damon retrata o general Leslie Groves como uma figura que alterna entre o foco na missão que executa e o pragmatismo no trato de suas relações (sendo enxergado pelo filme como um sujeito talvez até mais simpático do que merecia), Florence Pugh e Emily Blunt se estabelecem como as bússolas emocionais da narrativa: a primeira por transformar Jean Tatlock numa mulher tão interessante que acentua ainda mais a agonia que sentimos quando o protagonista a abandona (e, por consequência, tornando ainda mais palpável o peso que recai sobre o sujeito ao saber de uma tragédia posterior); a segunda por construir uma Katherine Oppenheimer (esposa de J. Robert) complexa que soa convincente tanto nas dores que sofre graças ao marido quanto no amor e na lealdade que nutre por ele (e que a fazem não conseguir rejeitá-lo por mais dolorido que seja continuar do seu lado).
E há, claro, Cillian Murphy – naquela que talvez seja a performance mais emblemática de sua carreira e que faz por merecer as indicações a prêmios que certamente lhe virão pela frente. Incorporando a frieza e a impassividade de J. Robert Oppenheimer através de uma postura corporal sempre discreta e de um tom de voz calmo e introvertido (o fato de não expressar muita coisa durante as cenas de sexo diz muito sobre sua personalidade), o ator consegue situar cada nuance do protagonista e construir a transição de uma à outra a partir simplesmente… de seu olhar, que, através de mudanças sutis, expressam indiferença aqui, entusiasmo (por ver sua criação ganhando vida) ali e, mais importante, tormento (por saber que gerou um monstro capaz de dizimar centenas de milhares de pessoas) acolá. Aliás, graças a um silêncio eloquente e a um olhar poderoso, Murphy faz sozinho o trabalho de trazer um mínimo de credibilidade à transição que leva Oppenheimer da obsessão em criar logo a bomba até o sofrimento por constatar o impacto mortífero desta – uma transição que, infelizmente, o filme ao redor do ator conduz de forma tão apressada que confesso não tê-la sentido inteiramente.
Por outro lado, um dos maiores méritos de Christopher Nolan aqui é o de não mostrar a queda das bombas em Hiroshima e Nagasaki nem os efeitos destas nas vítimas dos ataques. Afinal, ao contrário de cineastas japoneses que conhecem de perto o trauma daqueles bombardeios e o retratam em suas obras com conhecimento de causa, Nolan é um indivíduo cuja cultura na qual nasceu e cresceu é a do país que, na Segunda Guerra, esteve do lado que lançou tais bombas – e isto, somado à frieza habitual do diretor, poderia facilmente levar uma (hipotética) reencenação dos ataques a cruzar a linha que separa a reconstituição histórica da pura espetacularização da barbárie. Pois o que Nolan entende é que, às vezes, evitar mostrar uma tragédia é a decisão mais ética a se tomar (ainda mais quando falamos de tragédias reais).
Dito isso, talvez o distanciamento emocional do cineasta seja demais em alguns instantes cruciais, diluindo o impacto, por exemplo, do choque de Oppenheimer ao descobrir-se como um monstro – e sentir o peso desta tortura seria fundamental, já que a motivação por trás do julgamento que vemos no terceiro ato, afinal, era a de limar a influência do cientista em função das posições contrárias (ou, no mínimo, reticentes) que passou a adotar sobre as armas de destruição em massa. Além disso, embora presenciemos cenas absolutamente macabras (como aquela que traz uma equipe de militares discutindo friamente em quais cidades do Japão lançarão as bombas atômicas, poupando esta/aquela por razões desde pessoais até culturais), Nolan nunca parece retratá-las como algo tão aterrorizante quanto são, não deixando claro se as encara com indiferença ou com a condenação que obviamente merecem.
Assim, Oppenheimer pode não ser um filme perfeito, mas certamente é um esforço bem superior aos últimos da carreira de seu diretor.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: