Existem duas formas específicas de encarar Steven Spielberg: a primeira é observando seu talento particular para o espetáculo, que, inclusive, rendeu aventuras inigualáveis como Tubarão, E.T.: O Extraterrestre, Indiana Jones e Jurassic Park; e a segunda é prestando atenção naquelas obras mais dramáticas em que o diretor está visivelmente tentando atingir um público mais velho (vide A Cor Púrpura, A Lista de Schindler, O Resgate do Soldado Ryan e Munique). Infelizmente – e já falei sobre isso ao escrever sobre Ponte dos Espiões –, se os títulos que citei até aqui merecem elogios entusiasmados, o mesmo não pode ser dito sobre Lincoln, Cavalo de Guerra, O Bom Gigante Amigo e boa parte dos longas que o cineasta andou lançando nos últimos anos.
É um alívio, portanto, que os últimos meses tenham sido tão positivos para Steven Spielberg, que, após reativar sua eficácia para projetos mais adultos com o ótimo The Post, comprova que seu dom para a fantasia continua vivo com este Jogador Nº 1 – e o mais curioso, no entanto, é perceber como os dois filmes são igualmente admiráveis mesmo sendo tão diferentes em gênero, estilo e linguagem.
Roteirizado por Zak Penn e por Ernest Cline com base no livro que este último escreveu há poucos anos (e que não li), o longa se situa em 2044 e mostra uma sociedade distópica que, vivendo numa Terra devastada pela poluição, vê na realidade virtual OASIS um subterfúgio eficaz para os problemas do mundo. Depois que James Halliday, que desenvolveu o game, morre e deixa três chaves dando acesso ao seu legado, o adolescente Wade Watts junta suas forças às de outros três jogadores e luta contra o inescrupuloso Nolan Sorrento, que comanda a empresa Innovative Online Industries (IOI) e forma uma espécie de complô com o poderoso vilão i-R0k.
Deixando claro o seu descompromisso com a realidade desde sua premissa, que por si só simboliza o conceito de escapismo ao tornar o OASIS um subterfúgio (e refletindo, com isso, as contribuições que o próprio Steven Spielberg fez pelo Cinema com suas fantasias divertidas), Jogador Nº 1 se passa, como já deu para perceber, num mundo lúdico sustentado por suas próprias regras – e o primeiro aspecto que merece destaque é a maneira ágil e dinâmica com que o cineasta e a dupla de roteiristas constrói este universo, estabelecendo ainda nos minutos iniciais como o OASIS funciona, quais as principais diferenças entre o virtual e o real, qual o papel dos personagens neste contexto e como podemos ser surpreendidos a qualquer instante por um rosto conhecido “emprestado” de outra obra popular. Ao ambientar-se num cenário tão absurdo, Spielberg encontra a oportunidade perfeita para comandar as sequências de ação abraçando o absurdo sem culpa alguma, dirigindo muitíssimo bem as duas perseguições que ocorrem no primeiro ato, conferindo energia e dinamismo ao que está mostrando, adotando planos longos e abertos que sempre permitem que o espectador compreenda o que está acontecendo e, por fim, transformando o clímax numa coleção invejável de momentos empolgantes.
Não é surpresa, portanto, que Jogador Nº 1 seja o tipo de filme que depende de uma abordagem visual inspirada, sendo então uma proeza que o designer de produção Adam Stockhausen (que trabalhou com Wes Anderson em Moonrise Kingdom e O Grande Hotel Budapeste) defina com clareza as características dos mundos que abrigam a narrativa: se a realidade é sempre vista através de comunidades que comportam casas empilhadas e ecossistemas poluídos, OASIS é retratado como um lugar de paisagens ilimitadas, desde a Nova York amarronzada até uma discoteca onde as pessoas dançam em gravidade zero. E se a fotografia de Janusz Kaminski (colaborador habitual de Spielberg) faz questão de realçar a aparência multicolorida daquele universo fabulesco, os efeitos visuais encontram uma desculpa eficiente e orgânica para caírem ocasionalmente no artificial (afinal, a trama se passa dentro de um game). Para completar, a excelente trilha sonora composta pelo veterano Alan Silvestri resgata o espírito retrô dos antigos filmes de aventura, remetendo pontualmente ao emblemático tema criado por ele mesmo para De Volta para o Futuro.
Que, diga-se de passagem, é uma das inúmeras obras referenciadas em Jogador Nº 1, já que Wade Watts frequentemente surge dirigindo seu adorado DeLorean. E não só: quem se desconcentrar por um segundo pode perder o RoboCop original, as Tartarugas Ninja, Beetlejuice, Freddy Krueger, Jason Voorhees, Chucky, Spawn, o Batman de 1966 (e seu batmóvel), soldados de Halo, a moto de Akira, um cartaz de Star Trek, o pôster do primeiro Mad Max e um vislumbre do Mach 5 de Speed Racer – sem contar as alusões mais óbvias como a ponta do robô Gundam, o retorno da icônica roupa vermelha que Michael Jackson vestiu em Thriller e algumas menções aos longas mais famosos de John Hughes (e não adianta: meu lado apreciador de monstros gigantes vibra sempre que King Kong, Godzilla ou MechaGodzilla aparecem em uma produção destas). Em compensação, o roteiro percebe que apenas atirar estas referências de graça consistiria numa apelação barata, esforçando-se para justificar a maior parte delas e exibindo uma criatividade admirável ao unir, por exemplo, a participação do Gigante de Ferro à memória do final de O Exterminador do Futuro 2 – e as duas homenagens prestadas a Superman – O Filme, em especial, são bastante inventivas, movendo a trama ou complementando as personalidades de certos personagens (refiro-me, é claro, aos óculos de Clark Kent e à sensacional frase proferida por Lex Luthor).
Não que algumas destas referências não soem escancaradas demais: de vez em quando, o roteiro parece fazer questão de ostentar seu conhecimento e soltar alguns diálogos expositivos que basicamente servem para dizer “Hey, olha como o meu roteiro conhece este filme, esta série, este cantor, este jogo, etc!” (algo que também ocorria no recente Jumanji: Bem-Vindo à Selva). Assim, a longa e forçada passagem que remete a O Iluminado exemplifica bem este problema, recriando de forma gratuita vários momentos icônicos do filme de Stanley Kubrick como se isto fosse um mérito à parte. Além disso, Jogador Nº 1 comete o erro de se estender um pouco além do necessário, alcançando quase duas horas e meia de duração sendo que uns 20 minutos poderiam ser eliminados – e não deixando de sugerir, como consequência, uma leve autoindulgência de Spielberg, que deveria ter se atentado a alguns excessos.
Voltando a colocar as grandes corporações e os executivos gananciosos como os principais vilões da história (retomando um contexto marcante dos anos 2000 que abordei ao comentar Sangue Negro neste vídeo), Jogador Nº 1 traz Ben Mendelson na pele de um vilão apaixonado pela própria vilania, alegrando-se imensamente enquanto a carismática Olivia Cooke leva o espectador a entender o porquê do protagonista se apaixonar pela garota. Já Tye Sheridan surpreende ao ilustrar com objetividade as incertezas de Wade Watts, que nada mais é que um adolescente inseguro, fascinado pelo universo que resolve desbravar e determinado a evoluir sua bravura (e que as iniciais de seu nome formem uma aliteração – como Peter Parker, Bruce Banner e Matt Murdock – é um detalhe que complementa a aura super-heroica do jovem de maneira particularmente divertida).
Bem-sucedido ao empregar a performance capture também utilizada em As Aventuras de Tintim (um dos últimos grandes filmes de Spielberg), Jogador Nº 1 é um longa contagiante que celebra a cultura pop com dinamismo e vitalidade. E é no mínimo apropriado que esta celebração tenha sido realizada por ninguém menos que um dos responsáveis por colocar o entretenimento onde ele está.