Leaving Neverland (1)

Título Original

Leaving Neverland

Lançamento

3 de março de 2019

Direção

Dan Reed

Roteiro

Elenco

Wade Robson, James Safechuck, Joy Robson, Stephanie Safechuck e Chantal Robson

Duração

236 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Dan Reed

Distribuidor

HBO

Sinopse

Na década de 1980, o icônico Michael Jackson vivia o auge de sua carreira e iniciou uma amizade com dois garotos, Wade Robson e James Safechuck, e suas famílias. Agora, quase três décadas após os acontecimentos e dez anos após a morte do cantor, aqueles mesmos meninos retornam adultos para contar as histórias de quando foram supostamente abusados pelo “rei do pop”.

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Leaving Neverland | Crítica

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Assistir a Leaving Neverland é uma experiência inevitavelmente dolorosa, de embrulhar o estômago – e esta é uma constatação que independe completamente do fato de você acreditar ou não nas acusações de pedofilia feitas contra Michael Jackson aqui (ou naquelas registradas ainda quando o cantor era vivo). Ora, estamos falando de um documentário que, ao longo de quatro horas, nos submete a uma série de relatos de dois indivíduos que descrevem, nos mínimos detalhes, os abusos sexuais que alegam ter sofrido na infância. Pouco importa se você confia na inocência/culpa do artista em questão: só de ouvir as coisas ditas pelos entrevistados Wade Robson e James Safechuck – e, consequentemente, imaginar duas crianças passando pelas barbaridades por eles descritas – já é o suficiente para ser levado a uma reação de puro horror.

Que estas histórias sejam antagonizadas por um dos maiores ícones que a cultura pop já produziu (e uma figura que costuma despertar carinho, memória afetiva e/ou admiração profissional em mais de meio mundo) torna Leaving Neverland ainda mais difícil de ser digerido.

Produzido pela HBO e exibido pela primeira vez na última edição do Festival de Sundance, este documentário dirigido por Dan Reed (que já havia abordado o tema da pedofilia em The Paedophile Hunter) dedica seus 236 minutos a ouvir os depoimentos não apenas de Wade Robson e James Safechuck, mas também dos familiares (em especial, das mães) de ambos. Assim, ao longo de toda a projeção, acompanhamos uma linha cronológica que repassa o fenômeno artístico/cultural avassalador (e impossível de ser replicado hoje) que Michael Jackson representava nos anos 1980, a idolatria que os pequenos Robson e Safechuck cultivavam pelo astro, a aproximação que se deu entre o “rei do pop” e as famílias das duas crianças, as viagens de férias que ocorreram no rancho Neverland e em outros pontos caríssimos, fotos/vídeos do cantor passando noites nas casas dos meninos e vice-versa, cartas que trazem Jackson expressando “amor” e “amizade” (com ou sem aspas?) por eles e, claro, diversos relatos que descrevem como era a relação entre todos os indivíduos mencionados, como o artista (supostamente) seduzia, manipulava e molestava os protagonistas e como as duas (supostas) vítimas lidaram com os traumas quando chegaram à vida adulta e, não menos importante, se tornaram pais.

Aqui, cabe uma consideração: como até a premissa do documentário é espinhosa por si só, acredito que boa parte dos debates em torno de Leaving Neverland se dedicarão menos a seus méritos/deméritos enquanto obra e mais à veracidade das acusações apresentadas (em outras palavras: a discussão será menos sobre o filme e mais sobre “E aí, Michael Jackson era pedófilo ou não?”). Porém, o objetivo deste texto aqui é o de analisar o documentário sob o prisma de crítica (afinal, é o que faço) – e, por mais que eu eventualmente deixe claras as minhas posições sobre o caso em si, estas virão por meio da análise em vez de se tornarem o foco desta.

Uma das razões que me levam a enfatizar isso, aliás, é que uma das reclamações que mais tenho ouvido acerca de Leaving Neverland está na decisão de Dan Reed de nunca mostrar o “outro lado” da história, como se limitar-se às versões de Wade Robson e James Safechuck fosse necessariamente uma “falha” do documentário. Mas aí, peço licença para discordar: de minha parte, sempre defendo que um dos princípios básicos da (boa) crítica é avaliar uma obra pelo que esta é – e não pelo que eu gostaria que fosse. E o fato é que a proposta do longa não é a de ser um trabalho investigativo, que colherá todos os dados, depoimentos e evidências/provas a fim de decidir se Michael Jackson era culpado (como fez a obra-prima O.J.: Made in America), mas, sim, a de escutar o que aqueles dois personagens têm a dizer (algo mais próximo do ótimo An Open Secret, por exemplo). Sim, Leaving Neverland é parcial – e não há problema algum nisso; haveria caso o filme posasse de imparcial.

Enfim… julguemos as coisas não pelo que achamos que deveriam ser, mas pelo que são (mesmo que discordemos totalmente do que pregam ou consideremos desonestos os conteúdos que revelam). E este trabalho de Dan Reed é uma obra que obviamente acredita na culpa de Jackson, que parte do princípio de que o astro era um monstro e que passa a desenvolver sua proposta a partir daí.

E, sim, Leaving Neverland é muito bom no que se propõe a ser.

Hábil ao resgatar imagens de arquivo para acompanhar os depoimentos de Robson e Safechuck (e confesso que, mesmo já tendo visto uma quantidade considerável de conteúdos sobre Michael Jackson, várias das gravações e fotos mostradas aqui me pareceram inéditas), este documentário emprega estes registros visuais não só para ilustrar as histórias dos entrevistados, mas também para reforçar o choque e o impacto do que é relatado – e, assim, enquanto Robson descreve em detalhes um de seus (supostos) abusos, uma foto de Jackson ao lado do menino é mantida em tela, estática, por quase um minuto, submetendo o espectador à dolorosa tarefa de ficar encarando o predador e a presa daquele relato. Dito isso, a estrutura adotada por Dan Reed e pelo montador Jules Cornell não é perfeita: no início, a forma com que intercalam as entrevistas de Robson e Safechuck soa desordenada e aleatória, saltando de uma à outra sem muita fluidez e sem calcular bem o momento de cortar/transitar entre ambas – no entanto, à medida que a projeção avança (e os depoimentos se tornam mais e mais graves), o próprio documentário ganha coesão e ritmo. Além disso, se à primeira vista o fato de durar quatro horas pode causar receio, na prática a narrativa criada por Reed é tão chocante que acaba tomando o espectador de assalto e obrigando-o a vê-lo numa tacada só, sem pausas.

Ainda assim, o mais impressionante em Leaving Neverland nem é a descrição dos abusos em si, mas a visão que as (supostas) vítimas mantêm sobre seu (suposto) abusador depois de todos estes anos – uma visão que surpreende por evitar qualquer traço de maniqueísmo e por apresentar detalhes que, no fim das contas, tornam a narrativa ainda mais complexa. Fazendo questão de entender quem eram Wade Robson e James Safechuck antes de conhecerem Michael Jackson (o primeiro era um fã incondicional que venceu um concurso de pequenos covers; o segundo era um garoto-propaganda que contracenou com o cantor num comercial da Pepsi), o documentário traz os dois sujeitos, já crescidos, lembrando do artista não como um monstro, como um carrasco que lhes desperta pânico ou ojeriza, mas como uma figura pela qual não conseguem deixar de nutrir afeto e mesmo… amor – algo que provém não só da idolatria que sentiam pelo “rei do pop”, mas das manipulações que afirmam ter sofrido deste, que, segundo os relatos, os convencia de que aquelas práticas eram legítimas manifestações de carinho (coisas que eles deveriam achar “legais”, já que seu mestre assim as achava).

Em outras palavras: o que este trabalho de Dan Reed demonstra é que, como apontou Oprah Winfrey, a palavra “abuso” talvez não seja a mais adequada para qualificar situações como as relatadas aqui, já que, em boa parte dos casos, a vítima não se identifica como tal nem percebe que o que está vivenciando é um abuso, se dando conta apenas depois (isso quando se dá conta). Não é à toa que, ao justificar por que mentiu quando defendeu Jackson sob juramento em 2005, Robson acaba expondo uma outra nuance que torna seu depoimento ainda mais complexo: tanto ele quanto Safechuck alegam só terem entendido que o que viveram foi um abuso depois que cresceram, tornaram-se pais e imaginaram seus filhos passando pelas coisas que eles dizem ter passado. Até então, aquelas lembranças não eram as de uma (suposta) violência, mas de uma história de amor.

São detalhes como estes que tornam a narrativa tão rica e convincente – e, se considerarmos o contexto no qual surge este documentário (menos de um ano e meio após o movimento #MeToo), fica ainda mais difícil ter o sangue frio de escuta aquelas histórias e demonstrar, como primeira reação, a desconfiança do tipo “Calem-se, vocês estão mentindo por dinheiro!”. Assim, quando chegamos aos minutos finais da projeção e vemos trechos de vídeos de fãs xingando Robson e Safechuck de tudo quanto é nome, somos imediatamente levados a um sentimento de revolta (ainda mais depois de passarmos três horas e meia ouvindo os depoimentos da dupla). No entanto – e isso é fundamental –, Reed evita fazer quaisquer julgamentos sobre a obra de Jackson nem tenta negar a importância, a grandiosidade e a longevidade do “rei do pop”, preferindo, em vez disso, estimular aquele bom e velho exercício de separar o artista de sua criação (ou melhor: a pessoa física da jurídica) – algo que sempre precisamos ter em mente para não cairmos numa idolatria cega.

Não, não vou parar de escutar as músicas de Michael Jackson nem passar a me sentir “culpado” por curti-las – afinal, não creio que as informações que temos à disposição me obriguem a tratá-lo como pedófilo. Os áudios, cartinhas e vídeos apresentados aqui chocam menos por serem indicativos de crimes e mais por serem estranhos, por denotarem – mais uma vez – as muitas perturbações de uma mente corroída por décadas de abusos variados, ao passo que as supostas “evidências” materiais são facilmente questionáveis (o que me garante, por exemplo, que o “anel de noivado” mostrado por Safechuck em dado momento lhe foi mesmo dado por Jackson há mais de 30 anos?). Não há provas, o cantor já foi julgado em vida (e inocentado de todas as dez acusações) e o FBI forneceu assistência investigativa à polícia da Califórnia ao monitorar a fundo a privacidade do astro por 13 anos, concluindo não encontrar nada que ligasse a pessoa Michael Jackson ao crime de pedofilia (e as mais de 300 páginas do relatório publicadas após sua morte, detalhando operações que vão desde análises de vídeos, documentos escritos e HDs externos até quebras de sigilos bancários/telefônicos/virtuais, podem ser encontradas na íntegra aqui).

Mas isso não muda o fato de que, como análise dos problemas que aborda (as relações de poder entre ídolo e fã; a facilidade que o status de “maior astro de todos os tempos” traz a um indivíduo para manipular aqueles que o cercam; as contradições que surgem na cabeça de uma criança vítima de abuso sexual e que se mantêm pelo resto de sua vida; etc), Leaving Neverland é surpreendentemente eficaz – o que me leva a duas ponderações: 1) se Robson e Safechuck estiverem falando a verdade, a riqueza de seus relatos é tão profunda que torna-se bastante reveladora (e, portanto, pertinente) acerca do problema em si; e 2) se estiverem mentindo (o que é totalmente possível), no mínimo são psicopatas muito perspicazes que não só fingiram muito bem, como estudaram a fundo o assunto do qual se aproveitarão a ponto de articular depoimentos que, embora falsos, acabarão ecoando de forma fidedigna as histórias das vítimas de abusos reais.

Pois esta é uma das várias complexidades da Arte: da mesma forma como podemos reconhecer o valor da obra produzida por um ser humano detestável (como o próprio Leaving Neverland tenta nos convencer), também é possível admirar os resultados de algo cuja premissa consideramos questionável – ou mesmo furada.

E, independente de quaisquer dúvidas, é impossível negar a veracidade de um momento devastador como aquele que vem nos minutos finais deste documentário e que traz a mãe de Wade Robson (que obviamente acredita na palavra deste) dizendo algo sobre Michael Jackson que comoverá até os mais reticentes dos espectadores: “Talvez eu consiga perdoá-lo em algum grau se tentar entender que ele era doente, mas perdoar a mim mesma é outra história… e não sei se um dia conseguirei”.

É uma fala de partir o coração por ser, em última instância, verdadeira. Afinal, mesmo se a história contada pelo filho for mentirosa, a dor e a culpa sentidas por aquela mãe são indiscutivelmente reais.

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