Um dos mais influentes cineastas do Expressionismo Alemão e da Kammerspiel (muitos longas de ambos os movimentos se confundem nas linhas do tempo traçadas por uns e outros pesquisadores), F.W. Murnau dirigiu, em 1922, uma obra-prima que introduziu ao mundo aquele que talvez seja o vampiro mais icônico que o Cinema já concebeu após o mais que conhecido Conde Drácula (que, por sua vez, inspirou diretamente a criação de tal personagem): Nosferatu, estrelado por Max Schreck sob uma maquiagem tão convincente que, combinada ao roupão preto que vestia e às sombras da fotografia que o registrava, permanece assustadora até hoje, exatos 100 anos depois. Assim, é realmente espantoso – e revelador – que, quando o nome de Murnau foi citado em dado momento de Morbius como nome do navio que transporta os personagens (numa cena encaixada à força para criar mais uma referência a um momento-chave do filme de 1922), senti não entusiasmo por ver na tela uma menção a um artista fantástico, mas constrangido pela falta de discernimento do diretor Daniel Espinosa ao fazê-la.
As referências aleatórias, aliás, são uma constante em Morbius, que parece sentir prazer em citar orgulhosamente filmes que nunca deve ter visto (a única informação que acredito que Espinosa tenha sobre Nosferatu é que se trata de um vampiro – e nem isso torna a menção a Murnau menos arbitrária). Em outros momentos, o longa se contenta em disparar citações a outros personagens da Marvel, ao Clarim Diário e a eventos que vimos em filmes passados, ora com o intuito de esfregar na cara do espectador as conexões com o restante do Universo Compartilhado Marvel/Sony (que também inclui os dois Venom), ora com o intuito de criar piadinhas que nada têm a ver com a proposta “sombria” (entre muitas aspas) do projeto e que aspiram àquela autoconsciência deadpooliana que vem contaminando uma penca de produções contemporâneas, culminando no vergonhoso instante em que Morbius responde ao “Quem é você?” perguntado por um criminoso com um “I’m Venom” que contém uma irreverência sarcástica que o personagem jamais denotou ao longo da projeção inteira. Até uma menção à célebre frase de Bill Bixby na abertura da saudosa série dO Incrível Hulk (com Lou Ferrigno) é enfiada à força quando o protagonista diz “Não me deixe com fome, você não gostaria de ver o que acontece”, escancarando ainda mais o elo entre dois anti-heróis que, em sua essência, são repaginações de Dr. Jekyll e Sr. Hyde.
Mas aí, estarei entrando em questões “dramáticas” que, sinceramente, nem o próprio filme parece ter qualquer interesse em desenvolver – e, por mais que Michael Morbius diga que o monstro dentro de si é uma maldição, em momento algum sentimos um temor real por parte do doutor, já que, dos diálogos simplórios escritos por Matt Sazama e Burk Sharpless (roteiristas de Drácula: A História Nunca Contada, O Último Caçador de Bruxas, Deuses do Egito e é melhor parar por aqui) à direção fria e impessoal de Daniel Espinosa ao transformá-los em filme, não há uma única cena em Morbius na qual consigamos sentir os dilemas do protagonista, o apego dele por Milo (seu melhor amigo que depois inevitavelmente virará vilão), sua paixão pela namorada Martine ou mesmo a dimensão de sua genialidade enquanto cientista. O filme pode dizer uma ou outra coisinha sobre estes tópicos (e o faz de forma apressada, superficial), mas nunca é capaz de provocar qualquer sentimento legítimo, que não soe resultante de uma combinação de algoritmos programados por um robô.
O mesmo se aplica à atmosfera “sombria” que o longa tenta estabelecer: quase todos os atores do filme se comunicam num tom de voz sussurrante (como se isso sugerisse “gravidade”), o compositor Jon Ekstrand copia descaradamente o tema de Batman Begins (numa sequência que, inclusive, é toda roubada do momento em que Bruce Wayne se erguia numa caverna tomada por morcegos naquele filme) e o diretor de fotografia Oliver Wood mergulha todas as cenas em sombras que tornam praticamente impossível entender o que nelas acontece (quando as comparamos ao que Greig Fraser alcançou no Batman de Matt Reeves, percebemos ainda mais como o trabalho de Wood aqui é zerado de imaginação). Ainda assim, não há uma única passagem nos 104 minutos de projeção que inspire temor, ameaça e/ou suspense genuínos, ao passo que as sequências de ação apresentam-se ininteligíveis não só por serem engolidas pela mais absoluta escuridão, mas também por serem imageticamente poluídas pelos vários elementos visuais que pipocam na tela de forma caótica, desde a infinidade de morcegos que surgem no clímax até as fumaças/borrões/névoas coloridas que saem dos vampiros à medida que eles se movem (se parecia um recurso “estiloso” na teoria, na prática serve apenas para dificultar ainda mais a compreensão da ação).
Povoado por personagens aborrecidos como o filme que os abriga, Morbius é protagonizado por um Jared Leto que, embora basicamente interpretando… bom, Jared Leto (com as mesmas pausas, inflexões e olhares que já nos habituamos a ver em entrevistas com o ator), ainda assim se esforça ao máximo possível para trazer alguma dignidade a um herói que se limita a dizer “Preciso me curar” aqui e “Estou com fome” ali. E, sim, usei a palavra “herói” para descrevê-lo, já que em momento algum Michael Morbius executa uma ação/reação que deixe qualquer dúvida sobre sua moralidade – e, quando o filme finalmente parece sugerir alguma complexidade/ambiguidade sobre a índole do protagonista (criando a hipótese de ele ter assassinado uma enfermeira inocente), ele logo se acovarda e corre para explicar que não foi bem isso que aconteceu. Se há um vilão em Morbius, este é o Milo de Matt Smith, uma variação genérica do próprio herói cujo arco é tão mal-ajambrado que ele vai de “amigo do herói em busca de uma cura” a “vilão dO Máskara” praticamente de uma cena para a outra.
E com direito a uma dancinha patética que mostre como sua autoestima foi às alturas após adquirir os poderes de vampiro – algo que eu poderia enxergar como uma piada aceitável caso Morbius assumisse o humor e a bobeira descompromissada em vez de se levar tão a sério na maior parte do tempo.
Digam o que quiserem sobre Batman & Robin ou Venom; por piores que sejam aqueles filmes (e são muito ruins mesmo), ao menos eram obras que apresentavam alguma proposta (o interesse em resgatar um humor camp; uma autoparódia com os super-heróis; uma versão infantil das comédias de Seth Rogen; sei lá o quê). Morbius, porém, é um produto tão despreocupado com a Arte que representa quanto o último Mortal Kombat; um enlatado industrial que não só não encontra como nem tem vontade de encontrar voz própria ou qualquer atributo que justifique sua existência.
É oficial: os anos 1990 dos quadrinhos de super-heróis chegaram ao Cinema.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. #ForaBolsonaro)