A esta altura, é redundante dizer que a recente onda de refilmagens live-action das animações clássicas da Disney representa um sintoma da falta de criatividade por parte do estúdio. Num mundo em que o público está cada vez mais apegado ao passado, não é mais necessário estimular os realizadores a se reinventarem; basta replicar ponto a ponto as mesmas narrativas de antigamente (sem sequer tentar adicionar alguma novidade a elas) e os espectadores, envolvidos em pura nostalgia, não tardarão em transformar estas novas versões em grandes sucessos de bilheteria. Não é surpresa, portanto, que a maioria dos últimos esforços da Disney tenham obtido resultados artisticamente preguiçosos: sim, de vez em quando surge um Christopher Robin, um Mogli: O Menino Lobo ou mesmo um Aladdin, mas, no geral, esta tendência iniciada por Tim Burton em sua versão de Alice no País das Maravilhas resultou em mediocridades como Alice Através do Espelho, Malévola: Dona do Mal, A Bela e a Fera, O Rei Leão e, agora, este Mulan.
Recontando a mesma história da ótima animação dirigida por Barry Cook e Tony Bancroft em 1998, esta nova versão busca também, como segunda fonte de inspiração, a própria lenda original da guerreira Mulan – afinal, muitos espectadores chineses acusaram o longa de Cook e Bancroft de desrespeitar os mitos e a cultura por trás da personagem-título, numa tentativa de “ocidentalizá-las”. Assim, alguns detalhes e personagens (como os números musicais, o dragãozinho Mushu e o grilo Cri-Kee) foram totalmente excluídos desta refilmagem em prol de uma conciliação com o público chinês; embora, na prática, o roteiro de Rick Jaffa, Amanda Silver, Lauren Hynek e Elizabeth Martin não resista à tentação de recriar momentos icônicos do filme de 1998 mesmo que estes nada acrescentem à nova narrativa (e toda a sequência que traz Mulan num lago à noite, por exemplo, existe aqui só porque já existia na animação). De resto, é a mesma premissa que vimos há 22 anos: Hua Mulan é a filha mais velha do guerreiro Hua Zhou, encarregado de defender o vilarejo que ocupa. Depois que o Império Chinês exige que um homem de cada família se voluntarie para uma guerra contra o exército de Rouran, Mulan decide se disfarçar de garoto e juntar-se aos demais combatentes homens, provando-se uma hábil guerreira no processo.
Voltando a cair na mesma armadilha de quase todas as refilmagens recentes da Disney, que falham em equilibrar-se entre o realismo natural do live-action e o visual fabulesco que o desenho animado permite alcançar com mais facilidade (um problema que já discuti ao escrever sobre Aladdin e O Rei Leão), o novo Mulan desde o princípio se apresenta como uma obra que não faz a menor ideia do tom que pretende adotar ao contar sua história: ainda nos primeiros 15 minutos de projeção, por exemplo, o exército de Rouran surge atacando um vilarejo e a cena, ao mesmo tempo em que traz figurinos e cenários cujas cores remetem à estética inocente da animação, é também conduzida pela diretora Niki Caro de forma excessivamente grave, violenta e pesada – no que se contrapõe, porém, à tolice da cena engraçadinha que envolve Mulan derrubando chá nas gueixas. Além disso, é estranho que o filme faça tanta questão de rejeitar os traços mais fantasiosos do original de 1998, mas ao mesmo tempo se dê ao trabalho de incluir uma ave vermelha que imediatamente remete a Mushu e um personagem que, ocupando o posto de ajudante deixado vago por Cri-Kee, se chama… Cricket.
Mas os tropeços de Caro não param por aí: embora tendo a boa ideia de inspirar-se nas coreografias empregadas por filmes como Herói ou O Tigre e o Dragão (nos quais seus personagens desafiavam a gravidade e lutavam com a beleza de um número musical), a cineasta desperdiça os golpes, espadadas e pequenos voos executados pelos atores (ou por seus dublês) ao filmá-los em uma câmera sempre movimentada e ao montá-los em cortes rápidos e excessivos, impedindo o espectador de acompanhar claramente a ação (não à toa, a impressão que dá é a de que o montador David Coulson quis aproveitar todos os takes que haviam sido rodados, já que, durante as lutas, os cortes vêm a cada milésimo de segundo e sempre para ressaltar um plano que nada acrescenta ao conjunto da cena). Aliás, levando em conta que a estética dos cortes rápidos e da câmera tremida não é uma tradição dos filmes nos quais Mulan busca se referenciar, acabei concluindo que a intenção de Niki Caro (e do projeto como um todo) era não a de se inspirar ou de “homenagear” o Cinema chinês, mas a de simplesmente imitar uma estética ocidental a fim de reempacotá-la em uma embalagem Disney – algo que confirmei quando, depois de assistir ao filme, fui ao Google e descobri que Caro é neozelandesa.
Como se não bastasse, Mulan traz uma série de decisões narrativas que soam, no mínimo, questionáveis em um longa que faz tanta questão de celebrar o empoderamento feminino – e que, no processo, acabam servindo apenas para diminuir a força das mulheres da trama. Jamais acrescentando qualquer camada nova à discussão proposta pela animação de 1998 (na verdade, o que esta nova versão faz é pegar tudo que já era implícito no original – sobre o poder e a jornada de Mulan – e verbalizá-lo através de uma conversa tola e esquemática entre a protagonista e uns colegas durante o jantar), esta refilmagem reduz a autonomia da heroína a fim de permitir que os homens da trama a ajudem a tomar suas próprias decisões, sendo sintomático, por exemplo, que a frase “Se vocês acreditaram em Hua Jun, por que não acreditariam em Hua Mulan?” (antes dita por Mulan após revelar sua verdadeira identidade) agora saia da boca de Chen, seu par romântico, na tentativa de salvá-la. E mais: desta vez é o pai de Mulan quem vive tentando convencê-la a acreditar em si mesma, ao passo que sua mãe é quem a estimula a virar dona de casa – o que só não é tão decepcionante quanto a inclusão de uma vilã que motiva os planos de Rouran (uma vilã que, por sinal, o próprio filme descarta depois, não tendo a menor ideia do que fazer com ela).
O que nos traz ao principal problema do novo Mulan: a própria. Diferente da animação de 1998, na qual Mulan atravessava um arco que a fazia amadurecer, entender sua própria força de espírito e tomar naturalmente suas decisões por conta própria, esta releitura submete a personagem a mais uma daquelas histórias de “profecias” que fazem todas as suas atitudes soarem pré-determinadas. Assim, se Mulan evolui a ponto de se descobrir uma guerreira habilidosa, isto ocorre não porque ela conquistou o status por mérito, mas porque foi “escolhida pelo destino” (e não sei se isso vem da lenda chinesa ou não, mas não importa: se não funciona no contexto do filme, não funciona e pronto). E, por mais que Yifei Liu tente conferir alguma dimensão (e algum carisma) à personagem-título, o fato é que esta atravessa a narrativa inteira sem esboçar um traço de personalidade própria, limitando-se a meia dúzia de falas genéricas e a ter suas decisões tomadas pelos outros (sejam estes os homens da trama ou… bom, o “destino”).
Assim, a falta de identidade que contaminou boa parte das refilmagens live-action parece ter ganhado reflexo na própria protagonista desta nova versão – e, se a Mulan de 1998 encorajou uma geração inteira de pequenas espectadoras a acreditar em si mesmas, a de 2020 é uma heroína passiva, carente de personalidade e que logo cairá no esquecimento.
Como o próprio filme.