(Obs.: esta crítica traz spoilers da animação de 1994 – o que, na prática, significa que também traz spoilers desta refilmagem. Se bem que, a esta altura do campeonato, acho que é simplesmente impossível alguém não saber o que acontece no filme, certo?)
O novo O Rei Leão está para a animação de 1994 assim como o Psicose de Gus Van Sant está para o clássico de Alfred Hitchcock: você reconhece diversos momentos que poderiam ser considerados geniais caso não fossem uma mera reprodução de algo feito no passado e, sempre que está prestes a aplaudi-los, percebe que os méritos devem ser creditados não à nova versão, mas à original. Sim, há várias sequências nesta refilmagem que fazem o espectador sentir-se satisfeito e entretido com o que está vendo, porém o encantamento provocado por estas cenas se deve mais à nostalgia do público pelo desenho de Roger Allers e Rob Minkoff do que ao trabalho de Jon Favreau aqui. É como se, no lugar de sua “alma”, o filme trouxesse apenas uma foto antiga e amarelada de Rafiki erguendo Simba na abertura d’O Rei Leão original, sem perceber que a nostalgia nem sempre é o suficiente para que um projeto dê certo.
Aliás, é até injusto dar crédito ao trabalho do roteirista Jeff Nathanson (Velocidade Máxima 2 e Piratas do Caribe 5 – pois é), já que o que ele faz aqui nada mais é do que reciclar o mesmo roteiro que Irene Mecchi, Jonathan Roberts e Linda Woolverton escreveram em 1994, chegando ao ponto de repetir não só os acontecimentos e a estrutura narrativa do original, mas exatamente os mesmos diálogos. Assim, qual o sentido de resumir aqui a trama desta nova versão, como se alguém não soubesse do que se trata? Não houve nenhuma mudança: após o rei Mufasa ser assassinado por seu irmão Scar, o príncipe Simba foge da região de Pride Rock e deixa sua terra natal para ser governada pelo tio golpista e pelas hienas que chegaram para aterrorizar os animais que vivem ali. A partir daí, Simba conhece o suricato Timão, o javali Pumba e a filosofia do “Hakuna Matata”, que o faz crescer e se tornar um leão nem um pouco interessado em reivindicar o trono – isto é, até passar por uma breve jornada de autodescoberta que o leva a entender seu papel no “ciclo da vida”.
Amplamente divulgado pela Disney como uma refilmagem live-action do filme de 1994 (o que é mentira, já que praticamente tudo nesta nova versão foi criado através de computadores – e isto é mais do que o suficiente para caracterizá-la, sim, como uma animação), O Rei Leão escancara desde o início sua intenção de conferir uma abordagem fotorrealista à história criada por Allers e Minkoff. Neste sentido, é importante destacar o trabalho simplesmente impecável dos animadores da Disney: obtendo um resultado ainda mais impressionante do que em Mogli: O Menino Lobo, a equipe técnica responsável pela animação merece aplausos por tudo que foi realizado aqui, criando animais totalmente digitais, mas que sempre soam verdadeiros. Observem, por exemplo, a maneira como se movem, as texturas em seus corpos peludos, o impacto do vento em seus pelos, os restinhos de saliva em suas bocas e as sujeiras que vão se acumulando em suas patas – aliás, não acho exagero dizer que O Rei Leão pode representar uma revolução para Hollywood, que talvez tenha finalmente encontrado uma forma de incluir animais em seus filmes sem precisar arrancá-los de seu habitat natural.
Por outro lado, o simples fato de investir no fotorrealismo já estabelece um desafio imenso para o projeto, já que o desenho tem a vantagem de oferecer aos artistas a oportunidade de abraçar o cartunesco de um jeito que o live-action é simplesmente incapaz de permitir (algo que, inclusive, discuti recentemente em meus textos sobre Aladdin e Turma da Mônica: Laços). E, infelizmente, este é um desafio que O Rei Leão não consegue resolver: removendo praticamente todas as expressões dos rostos dos animais, a técnica fotorrealista impõe diversas limitações que, em termos de inventividade, fazem esta nova versão empalidecer diante da original. Assim, torna-se difícil sincronizar os movimentos labiais dos personagens e as falas que estão sendo recitadas pelo elenco de voice acting – e é particularmente estranho ouvir frases articuladas saírem do bico naturalmente rígido de um pássaro como Zazu, por exemplo. Mas o pior é quando Simba encontra seu pai, Mufasa, morto no chão e começa a chorar: por um lado, sua voz está chorosa; por outro, não há um único movimento em seu rosto, o que compromete o peso dramático da cena.
Isto, por sinal, é agravado pela direção de Jon Favreau, que se revela fria, burocrática e mesmo preguiçosa na maior parte do tempo – e esta talvez seja a grande decepção do projeto, já que Favreau não costumava ter problemas com isso em seus trabalhos anteriores. Aqui, no entanto, a abordagem do cineasta se mostra problemática ainda na sequência de abertura (ao som de “Circle of Life”), sendo particularmente frustrante como o momento em que Rafiki ergue o pequeno Simba no ar é enfocado através de meia dúzia de planos quase estáticos e distantes que soam pobres quando comparados à versão original (lá, a ação era mostrada através de planos que buscavam tratar os personagens como figuras imponentes e de vários cortes que faziam o ato em si parecer mais heroico). Além disso, a falta de imaginação de Favreau ao conduzir os números musicais não poderia ser mais patente, abandonando a iconografia nazista que tornava Scar tão assustador em sua apresentação de “Be Prepared” e substituindo as cores, o dinamismo e a graça das coreografias de “Hakuna Matata” pela simples imagem de Simba, Timão e Pumba… caminhando enquanto cantam pela floresta (e só).
Não que o novo O Rei Leão não tenha momentos que me encantaram: durante a apresentação de “I Just Can’t Wait to Be King”, por exemplo, me peguei sorrindo ao ver Simba e Nala correrem e cantarem uma música que me lembro de ter ouvido desde criancinha. Mas aí que está o problema: a minha empolgação veio não daquilo que o filme em si estava criando, mas da memória afetiva que eu tenho pela obra original – e o mérito disso pertence não a Jon Favreau, mas a Roger Allers e Rob Minkoff por um trabalho que fizeram há 25 anos. Não deixa de ser revelador, portanto, que os melhores momentos desta nova versão sejam justamente os poucos que se propõem a criar algo novo, como aquele que mostra a Nala adulta fugindo sorrateiramente do cárcere de Scar (e que ao menos tenta explicar a coincidência absurda de ela e Simba se esbarrarem por acaso no meio da floresta depois de tanto tempo) e, claro, a divertida piadinha que traz um antílope reagindo a uma certa pergunta de Simba.
Ainda assim, na maior parte do tempo, O Rei Leão é uma obra submissa à memória de outra infinitamente melhor, não se dando nem ao trabalho de tentar encontrar uma personalidade própria – e não, o fato de ser visualmente “fotorrealista” e de trazer um ou outro momento inédito não compensa a falta de imaginação geral do projeto. O que Jon Favreau e os executivos da Disney não parecem ter sido capazes de entender é que não se resgata a força de um clássico refilmando-o quadro a quadro, fazendo um simples “Ctrl C + Ctrl V” de todos os seus planos. Na verdade, quando algo assim ocorre, o que resta para o espectador é a impressão de estar assistindo a um artista ligar vários pontinhos uns aos outros até que estes formem a imagem de um desenho pré-determinado, sem jamais ilustrar nada por conta própria – o que, na prática, é exatamente o que Favreau faz aqui.
No fim das contas, há um momento específico que resume bem todos os problemas deste novo O Rei Leão: a morte de Mufasa (que, em 1994, foi tão chocante para as crianças daquela época quanto a morte da mãe de Bambi havia sido para as gerações anteriores). Aqui, quando o rei é atirado de um abismo por seu irmão e morre ao cair no chão, a reação de Simba é enfocada por Jon Favreau de maneira fria e distante, com a câmera mantendo-se relativamente longe da situação em si. E isto diz muito sobre o filme como um todo, que está o tempo todo tentando replicar a força do clássico lançado há 25 anos, mas sempre falhando em capturar sua “alma”.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: