O Agente Secreto não existiria da mesma forma se Kleber Mendonça Filho não tivesse feito todos os trabalhos que dirigiu anteriormente – em especial, Retratos Fantasmas (meu favorito de sua filmografia). Se hoje ele é capaz de realizar um filme que crie uma atmosfera tão particular a partir da ambientação específica de Recife, construindo uma “mística” em torno da cidade que vem do carinho que nutre por sua História (geral e pessoal) e das memórias de cada canto, pessoa e cinema de rua que visitou no passado, é porque o lindo documentário de 2023 certamente o preparou ao aperfeiçoar seu modo de olhar para a própria terra natal e para as lembranças que guarda desta. E se O Agente Secreto é a obra de ficção mais madura da carreira de Kleber – e acredito que seja mesmo –, isso é fruto de um refinamento artístico/autoral de anos, que percorreu todos os seus longas anteriores até culminar aqui.
E olha que nem sou fã incondicional da obra de Kleber. Embora tenha colocado seu trabalho anterior no topo da minha lista dos melhores filmes de 2023, considero a filmografia pregressa do recifense um tanto irregular: quando cria narrativas centradas em um(a) único(a) personagem (como em Aquarius e, de certa forma, no próprio Retratos Fantasmas), Kleber tende a alcançar melhores resultados, já que delimita bem as ideias que pretende elaborar a partir das particularidades dos protagonistas; quando desenvolve tramas espalhadas em vários núcleos de diversos personagens (como em O Som ao Redor e Bacurau), as coisas saem um pouco de controle. Pois talvez o fato de O Agente Secreto se encaixar no primeiro grupo ajude a explicar por que é um dos melhores de sua carreira.
Ambientado em 1977, quando a ditadura militar era comandada por Ernesto Geisel (e num período que os letreiros iniciais descrevem como uma época “de muita pirraça”, já ditando um tom meio irreverente que permeará o filme e os personagens nas próximas duas horas e meia), o roteiro do próprio Kleber acompanha Marcelo, um pesquisador de tecnologia quarentão que, após anos afastado, retorna a Recife com uma identidade falsa (por motivos que depois descobriremos) e com dois objetivos: 1) reaproximar-se do filho e 2) respirar um pouco depois da morte da esposa Fátima. Amparado por um grupo de “refugiados” (que não gostam de se identificar assim), Marcelo aos poucos descobre, no entanto, que a paz que procura está sob ameaça, já que dois assassinos profissionais vêm à cidade encarregados de matá-lo – e por razões que manterei temporariamente em segredo a fim de evitar spoilers (quando tiver de entrar em detalhes, avisarei antes).
O interessante, contudo, é que se geralmente o lado da ditadura que estamos mais habituados a ver/ouvir/ler sobre é o da repressão em si – as prisões, torturas e mortes nos porões do DOPS, a perseguição que levava tantos ao exílio e a censura contra artistas e veículos de comunicação –, O Agente Secreto prefere explorar problemáticas menos óbvias sobre o período. (Não que não haja narrativas que fujam deste escopo, como certos incautos costumam reclamar; basta procurar por elas – e, em 2 de abril de 2022, publicamos aqui uma lista com 25 filmes sobre a ditadura militar que retratam diferentes ângulos sobre o regime.) Embora longe de ignorar estes aspectos mais conhecidos, o que realmente interessa a O Agente Secreto é a facilidade com que a máquina repressiva do Estado era corrompida ou pelos próprios militares, ou pelos amiguinhos destes. Em outras palavras: ao contrário do que defendem uns imbecis por aí, a ditadura não só foi um tempo de desenfreada corrupção, como ainda a deixou de “presente” (junto à inflação galopante) para a democracia que veio a seguir.
Além disso, o filme demonstra como a ditadura pouco se importava com conceitos aparentemente tão caros, como “soberania nacional”, já que o principal vilão aqui é um sujeito cujos planos incluem a venda de uma empresa para o capital estrangeiro, ou mesmo com a ciência em si, uma vez que a real motivação para Marcelo ser perseguido – e aqui vem um detalhe sobre a trama que talvez configure um spoiler – é porque se atreveu a peitar um superior que queria encerrar o instituto de pesquisa em que o protagonista trabalhava. O que Kleber relembra, portanto, é que a ditadura militar não só era um aparato de terrorismo de Estado, como também era um balcão de negócios para quem se interessasse – fosse do Exército ou não. Tanto é que o vilão nem é um militar; apenas um chefe que se aproveita do poder e da proximidade com o regime para mandar perseguir um cara comum e que nem é envolvido com a luta armada (“Olha, eu sou mais comunista do que capitalista, mas não sou nem um nem outro”, diz Marcelo).
Não à toa, o protagonista em questão – ao contrário do que o título possa sugerir – surge não como uma figura de aura heroica ou grandiosa, mas, sim, como um sujeito simples, introvertido e delicado que permite a Wagner Moura compor uma das melhores performances de sua já brilhante carreira. Não que Marcelo não possa ser descrito como herói; apenas é um cara que não reivindica tal status para si, se apresentando como uma figura calma, introspectiva, que atravessa a projeção com um estoicismo notável (na expressão e em suas ações) e que, mesmo nos momentos de raiva e/ou frustração, evita ao máximo se entregar a rompantes de fúria. Além disso, Moura traz vulnerabilidade ao personagem ao retratar suas ansiedades através menos de explosões e mais dos detalhes de seu corpo, como uma gaguejada aqui ou uma tremida no canto do olho ali. (Há um outro momento, nos minutos finais do longa, em que a atuação de Moura chega a níveis extraordinários, mas… voltarei a isso adiante.)
Enquanto isso, Luciano Chirolli dá vida a um vilão que, curiosamente, funciona mais por ser cínico do que por ser intimidador, atravessando boa parte da narrativa com um sorrisinho dissimulado (daqueles que irritam por fingirem simpatia e/ou cordialidade) e transitando, na reta final, para uma expressão de rancor e frustração que soa bastante convincente. E se Alice Carvalho tem a chance de ilustrar em uma única cena a lealdade e, principalmente, o respeito intelectual de Fátima por Marcelo (e o faz com uma intensidade que só torna as reações da personagem ainda mais autênticas), os demais personagens que compõem o grupo dos “refugiados” demonstram a sensibilidade de Kleber ao perceber que, no mundo real, as pessoas extraordinárias geralmente são aquelas que… não imaginaríamos que o seriam; aquelas pelas quais cruzamos na rua sem supor que já viveram coisas espetaculares. Neste sentido, Tânia Maria merece ganhar o mundo após este filme, já que empresta a Dona Sebastiana um timing cômico que provém da espontaneidade com que recita suas falas (estas nunca parecem calculadas, mas, sim, coisas que por acaso vieram à mente da personagem e que saem de forma tão casual que, por isso, tornam-se hilárias) e uma força inesperada ao revelar-se dona de um passado infinitamente mais rico, valente e grandioso do que esperávamos.
Outro personagem fundamental, aliás, é Seu Alexandre, projecionista do Cine São Luiz inspirado numa figura real que, por sua vez, foi relembrada em Retratos Fantasmas e rendeu o momento mais emocionante daquele filme. Aqui interpretado por Carlos Francisco e transformado em pai de Fátima, Seu Alexandre reforça não só o vínculo afetivo entre o protagonista, sua esposa e o filho de ambos, como também a adoração de Kleber pelas histórias de Recife, pela atmosfera particular da cidade e pelos cinemas de rua que frequentou na juventude. Assim, ao retratar a capital pernambucana como um lugar tão vivo, com tanta personalidade que acaba virando quase um personagem à parte, o diretor leva o espectador a entender perfeitamente por que Marcelo decide voltar para lá, sentindo-se abraçado por tudo que envolve aquela terra. Se a memória afetiva do protagonista por Recife soa tão palpável, é porque tem origem, antes de mais nada, na do próprio Kleber, que a transpassa para a tela.
Não que eu tenha achado O Agente Secreto perfeito de ponta a ponta: ainda que a grande maioria das tentativas de humor sejam bem-sucedidas (principalmente as de Dona Sebastiana), há uma ou outra intervenção cômica que nem sempre funciona do mesmo modo. (Dito isso, embora minha primeira reação à subtrama envolvendo uma perna decepada não tenha sido das melhores – um componente de esquisitice que, a princípio, me pareceu meio abrupto –, confesso que tenho gostado mais da situação à medida que penso sobre ela, já que brinca com um teor de “lenda urbana” – narrada de forma absurda por um jornal local – que acaba ajudando a compor a “mística” daquele lugar). Ainda assim, admito que O Agente Secreto é um filme que foi me conquistando aos poucos (em especial, do meio para o fim), já que vários elementos que me soaram um tanto “jogados” ao fim se amarram de modo consistente.
E é justamente do meio para o fim que surgem os dois momentos que mais me deram nó na garganta em O Agente Secreto – e nem preciso dizer que, daqui em diante, haverá spoilers liberados: o primeiro envolve uma mensagem que o filho de Marcelo lhe deixa por escrito, afirmando que finalmente parece estar “conseguindo esquecer a mãe”, e o segundo consiste… no desfecho do longa, que costura algo que até então parecia “solto” na história (os constantes flashforwards que levam a pesquisadoras ouvindo, em 2025, as falas de Marcelo em um gravador). Ao trazer Wagner Moura interpretando, também, o filho adulto do protagonista, O Agente Secreto permite ao ator não só compor um personagem totalmente novo (com sotaque, emotividade e jeito de se expressar diferentes do anterior), mas também retratar a dor do sujeito ao não conseguir lembrar do pai e – pior – nem querer fazê-lo, já que acessar tal lacuna o massacraria ainda mais.
É um final inesquecível, mas doloroso, que de certa maneira acaba dialogando com o de Ainda Estou Aqui, outra obra que reforçava como que, ao matar um perseguido político, a ditadura arrancava não só uma vida, mas também as memórias afetivas que os familiares daquela vítima ainda viriam a criar se não a tivessem executado. A diferença é que, se o filme de Walter Salles se encerrava com uma vítima do esquecimento ainda sendo capaz de rememorar, o de Kleber Mendonça Filho termina reiterando a tragédia de um menino que teve tirada dele a mera possibilidade de um dia poder se lembrar bem do pai.
Visto no Festival do Rio 2025.
Assista também aos vídeos SEM e COM spoilers que gravei sobre o filme:


