Se Super/Man: A História de Christopher Reeve é o melhor filme de super-herói do ano, O Aprendiz (que estreia nos cinemas no mesmo dia) é a melhor história de origem de super-vilão do ano. Comandada pelo iraniano (radicado na Dinamarca) Ali Abbasi, esta é uma cinebiografia que busca investigar cada etapa do processo que resultou em uma das personalidades mais polêmicas (e cartunescas, eu diria) do mundo pós-moderno: o laranjão Donald Trump. Em vez de encobrir toda a vida do biografado, O Aprendiz prefere delimitar um recorte que ajude a elucidar o todo, acompanhando a mentoria feita pelo inescrupuloso promotor Roy Cohn que ensinou Trump a sair de um jovem e desajeitado aspirante a empresário até o figurão chucro, tacanho e autoritário que passamos a ver nas últimas décadas – e o recorte do filme termina lá pelo fim dos anos 1980.
Não há, portanto, a decisão de se candidatar a presidente dos Estados Unidos, a corrida eleitoral pautada por uma retórica de ódio aos imigrantes, a vitória improvável nas eleições de 2016 (quando Trump contrariou as expectativas de praticamente todos os especialistas e institutos de pesquisa, derrotando a democrata Hillary Clinton no Colégio Eleitoral), o governo marcado por instabilidades e controvérsias, o fracasso na tentativa de reeleição em 2020, a recusa em admitir que perdeu a disputa para Joe Biden, a coordenação de uma rebelião que invadiu e depredou o Capitólio em 6 de janeiro de 2021 (que culminou em cinco mortos e que Trump acompanhou pela tevê na Casa Branca, sem mover uma palha para tentar intervir), as condenações na Justiça por fraude administrativa ou a nova tentativa de voltar ao Salão Oval (uma tentativa que saberemos se deu certo ou não no próximo 5 de novembro). Nada disso consta em O Aprendiz.
Até porque, sinceramente, nem precisa. Toda a construção do personagem aqui nos leva a entender exatamente de onde veio cada detalhe, cada método e cada padrão de comportamento do Donald Trump que já bem conhecemos. Graças às lições perversas de “como ser um vencedor” ensinadas por Roy Cohn ao longo de anos, o protagonista de O Aprendiz (o título é obviamente uma alusão ao reality show homônimo apresentado por Trump e que teve sua versão brasileira a encargo de João Dória e Roberto Justus) é moldado para nunca assumir qualquer erro ou derrota (por mais escancarada que seja) e para mentir e manipular as informações a seu favor sem um pingo de vergonha na cara – e, a partir do momento em que entendemos por que a retórica do “loser” dói tanto em Trump (ele foi treinado para não admitir sê-lo), fica fácil compreender, afinal, por que a mentira compulsiva se tornou sua marca registrada na carreira política e por que ele se recusa a reconhecer a vitória de Biden mesmo quatro anos após aquela eleição. Com isso, O Aprendiz leva o espectador a conhecer os mecanismos por trás do personagem Donald Trump sem se sentir obrigado a fazer piscadinhas tolas para eventos que ocorreriam no futuro do biografado – a única exceção é o momento em que alguém lhe entrega um broche com um slogan que inspira o “Make America Great Again”, que me pareceu meio deslocado, encaixado só pela referência.
O que O Aprendiz retrata, contudo, é que o Donald Trump que conhecemos não é um caso isolado; um cara louco que decidiu, por livre e espontânea vontade, ser o que é. Não; homens como Donald Trump são uma construção do sistema capitalista e neoliberal, que treina seus “jogadores” a se converterem em homens inescrupulosos, embebidos de poder suficiente para acreditarem que tudo podem. Aqui nem vou entrar em minha opinião pessoal sobre o biografado (até porque acho que, a esta altura, ela já ficou bem clara; qualquer pessoa que tenha lido meia dúzia de textos meus já deve supor o que penso sobre Donald Trump), mas o fato é que O Aprendiz claramente enxerga seu protagonista como uma construção (social/econômica) sórdida. E o fato de a sociedade terminar por idolatrar este sujeito diz muito não sobre ele, mas sobre… a sociedade em si – como apontou Coringa, as figuras que um povo escolherá para venerar serão aquelas que merece. (Aliás, é curioso perceber que tanto o filme de Todd Phillips quanto o de Ali Abbasi são histórias de origens de vilões contadas sob diferentes ângulos da pirâmide social: se o primeiro enfoca um oprimido da base, o de Ali Abbasi se concentra num ricaço do topo.)
Dito isso, o mais interessante na abordagem do cineasta e do roteirista Gabriel Sherman (que, entre outras coisas, foi colunista da Vanity Fair) é que ambos exploram a vileza de Donald Trump e Roy Cohn a partir não do horror, mas, sim, do humor – em especial, do constrangimento. Os discursinhos de Roy são absurdos; as cantadas que Trump direciona à jovem Ivana são hilárias de tão imbecis; a ânsia do protagonista em se submeter logo a cirurgias de risco para remover gorduras e parte da calvície (em vez de tentar procedimentos mais saudáveis, mas que demandariam muito mais tempo) diz muito sobre sua impaciência/teimosia, sobre seu impulso de “quero tudo para ontem!”. Roy Cohn e Donald Trump são indivíduos que o filme enxerga como patéticos, dos quais rimos constantemente, mas – o mais importante – nunca perde de vista o fato de que são extremamente perigosos no que representam. Abbasi e Sherman não diluem a ameaça contida na dupla ao retratá-la como dois babacas; até porque eles sempre lembram que a patetice de ambos decorre do detalhe de serem tão influentes. Eles são tão capazes de manipular o mundo a seu favor que pouco importa o que os outros pensarão de suas palhaçadas; a sociedade que se curve a eles.
Diretor que vem se notabilizando por criar narrativas incômodas e envoltas numa abordagem crua mesmo quando não lida com universos “realistas”, Ali Abbasi não é um cineasta cujos trabalhos anteriores me arrebataram. Não sou exatamente fã de Border nem de Holy Spider; para mim, o melhor trabalho do iraniano-dinamarquês até aqui foi o penúltimo episódio da primeira temporada de The Last of Us (aquele com David, o pastor pedófilo). Em O Aprendiz, no entanto, Abbasi me surpreendeu ao demonstrar um controle perfeito de suas intenções: além de encontrar um equilíbrio surpreendente entre o ridículo e o grotesco das ações de Donald Trump, ele também toma uma decisão inteligente (junto ao diretor de fotografia Kasper Tuxen, é claro) ao escolher retratar boa parte das situações através de uma câmera tremida, que abusa do zoom-in ou out, numa pegada meio The Office que traz uma instabilidade àquelas imagens enquanto ressalta o constrangimento das mesmas. Além disso, é intrigante que, à medida que a narrativa avança, Abbasi e Tuxen vão experimentando cada vez mais com técnicas diferentes (às vezes, simulando um efeito de videotape mesmo em cenas que não se passam em registros gravados, como comerciais), tornando o filme mais delirante ao passo que a persona de Donald Trump – absurda como é – vai se formando. Em outras palavras: o que vemos em O Aprendiz é um mundo de glamour em decadência.
Outro que é fundamental para demarcar as diferentes etapas do personagem, como não poderia deixar de ser, é Sebastian Stan, um ator que, normalmente associado às produções das quais participou na Marvel, cria uma versão de Donald Trump num trabalho de composição que, às vezes, beira o sobrenatural. Já de cara, ele encara um desafio imenso: incorporar o biografado sem parecer uma imitação barata, já que, afinal, o próprio Trump original já é uma caricatura em pé (como reclamar, por exemplo, do cabelo esquisitíssimo – peruca? – de Stan se o penteado do verdadeiro Trump é uma espécie de “vale da estranheza” do mundo real?). Aliás, o trabalho de maquiagem visto aqui alcança resultados inacreditáveis, já que aos poucos vai tornando o ator (aparentemente impossível de se passar pelo biografado) em uma criatura tão idêntica ao laranjão que até esquecemos que se trata de uma representação. O mesmo, por sinal, se aplica a toda a performance de Stan, que é cirúrgico ao retratar o arco de transformação do protagonista através de detalhes milimétricos que vão surgindo gradualmente: se no início o jovem Donald é uma “casca” vazia, retraída e sem muito que chame atenção, aos poucos seus lábios vão formando um biquinho (ridículo), seus olhos vão se apertando, seus gestos vão ficando exagerados (como se tentassem conjurar um feitiço à la Doutor Estranho), sua dicção vai se aperfeiçoando e seu ritmo de fala vai engatando numa velocidade que mal permite que os coadjuvantes possam concluir uma única frase, interrompendo-os como se não existissem – numa demonstração clara da autoestima de quem acredita ser o sujeito mais poderoso que existe. De novo: tudo isso sem nunca soar como mera imitação.
Mas mais do que isso, O Aprendiz mostra como Trump, sendo bom aluno da escola dos chefões da alta burguesia estadunidense, foi treinado o suficiente para passar a perna em seus mentores sem sentir por um segundo sequer que está cometendo algo moralmente duvidoso, um gesto lamentável de ingratidão – e gosto muito de como Jeremy Strong (que já conhece bem o território dos ricaços malignos, já que deu vida ao Kendall Roy de Succession) cria esta transição de um mestre da escrotidão humana para um corpo moribundo que foi vítima dos próprios métodos (ou melhor: do monstro que alimentou). Já Maria Bakalova (que, não custa lembrar, explodiu para o mundo em outra obra de teor extremamente antitrumpista: Borat 2) encarna bem as nuances de Ivana Trump, retratando-a como uma mulher cujos gostos luxuosos não a eximem de caráter, inteligência ou respeito próprio – e, quando o marido a descarta (como se dispensasse um serviço corriqueiro), seu ódio pelo sujeito torna-se patente e verossímil.
Se Trump de fato fez com Ivana o que O Aprendiz o acusa de ter feito, já não sei. Conhecendo de fato o histórico e a persona do protagonista, não duvido de absolutamente nada do que está neste filme de Ali Abbasi – e isso é o mais macabro. É o que torna este longa não só eficiente em sua proposta, mas também assustador em apontar a extensão e a magnitude de um sistema que, além de criar monstros como Donald Trump, também permite que se mantenham invencíveis a ponto de poderem voltar à Casa Branca mesmo após todos os crimes (flagrantes!) que cometeram.
Os Estados Unidos fizeram – e fazem – por merecer um ícone assim.
Visto no Festival do Rio 2024.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: