Em 1962, os Estados Unidos ainda viviam as leis segregacionistas Jim Crow, que basicamente institucionalizavam o racismo e a segregação no país. Em Tallahassee, na Flórida, um adolescente chamado Elwood Curtis cresce numa comunidade negra ao lado da avó e é inspirado pelas falas empoderadoras dos professores, pelos discursos de Martin Luther King Jr., pelos filmes de Sidney Poitier e pela luta pelos direitos civis de modo geral. É um menino com um futuro brilhante pela frente. Infelizmente, esse futuro é cessado quando, de repente, Elwood é injustamente preso e mandado para o Reformatório Nickel, uma academia de reeducação para menores de idade que aos poucos se revela um território hostil, em que a violência psicológica e física são norma e até casos de assassinato e ocultação de cadáver ocorrem por lá – e é aí que Elwood se aproxima e cria uma amizade com Turner, um outro garoto que o ajuda a sobreviver naquele inferno. Esta é a base de O Reformatório Nickel, baseado num livro de mesmo nome (e vencedor do Pullitzer) que Colson Whitehead escreveu a partir do caso real da Escola Dozier, na Flórida.
Se a premissa de O Reformatório Nickel já é promissora por si só, na prática as coisas ficam ainda mais interessante graças à forma que o diretor RaMell Ross escolheu de narrar tal história: através de planos em primeira pessoa, que assumem o ponto de vista subjetivo de Elwood e Turner – o que acaba se tornando o grande diferencial do filme. Assim, do início ao fim Ross e o diretor de fotografia Jomo Fray eles rodam o filme todo numa razão de aspecto reduzida, para gerar uma sensação de sufoco e claustrofobia, e mergulham o espectador (através deste recurso da câmera em primeira pessoa) na perspectiva dos dois personagens centrais. É uma decisão que funciona de várias formas, ajudando, em especial, a reforçar a conexão e o “porto seguro” que um personagem representa para o outro: se durante a primeira meia hora acompanhamos apenas o ponto de vista de Elwood, quando Turner entra em cena passamos a assumir também a ótica deste, o que ajuda a estabelecer o novo sujeito como um “irmão” tão importante quanto. Além disso, com a alternância dos dois pontos de vista, ambos os indivíduos aparecem constantemente olhando um para o outro (leia-se: diretamente para a câmera), o que faz nós, espectadores, sentirmos que eles estão conversando conosco, aumentando ainda mais a sensação de cumplicidade.
Não menos importante é perceber que esta decisão (da narrativa em primeira pessoa) permite que absorvamos o impacto da história relacionando-a com as nossas próprias condições: para um espectador branco, assumir o ponto de vista daqueles personagens – sofrendo como sofrem – será um exercício de empatia; para um público negro, contudo, suponho (não posso falar por nenhuma pessoa negra, mas suponho) que ver aquelas situações de racismo em primeira pessoa seja como viver/reviver um trauma para, então, encontrar um colega que soa como “porto seguro” no meio da situação. Além disso, acaba que esta escolha faz uma diferença também para as atuações, já que, como vemos os rostos dos protagonistas bem menos do que ouvimos suas vozes, acaba que nossa atenção se volta muito mais às vozes dos dois atores, tornando-as o centro de suas composições – e tanto Ethan Herisse (que dá vida a Elwood) quanto Brandon Wilson (que encarna Turner) fazem ótimos trabalhos, ressaltando o peso, a angústia, os sonhos e as oscilações de humor dos personagens através do tom de voz, das pausas, do ritmo da fala e, não menos importante, de suas respirações.
Dito isso, nem sempre RaMell Ross consegue manter a escolha sob controle, já que de vez em quando ele alterna estes planos em primeira pessoa com outros aleatórios que surgem em terceira (registrando, por exemplo a nuca de um personagem). O problema é que, quando surge um plano aleatório em terceira pessoa no meio de uma cena cujo resto é todo em primeira, isso acaba gerando uma leve confusão momentânea, nos desorientando em relação a quem é quem durante tal sequência. Além disso, acredito também que a decisão de entrecortar a trama no Reformatório com flashes de notícias da época e, principalmente, com trechos do Elwood no futuro (de novo: em terceira pessoa) pode até não gerar um sentimento de confusão (não há absolutamente nada de complicado ou difícil de entender na trama), mas a deixa um pouco mais “embolada” do que precisava.
Em compensação, quando chega o desfecho (sem spoilers!), a alternância entre passado e futuro (entre década de 1950 e década de 1980) é amarrado de uma forma que, confesso, me pegou desprevenido, costurando as duas linhas cronológicas de maneira não só inteligente, como consistente – e de modo que demonstra como a relação entre Elwood e Turner foi forte a ponto de perdurar para sempre, com um fazendo de tudo para preservar a memória e o legado do outro. Assim, O Reformatório Nickel é um filme que discute a violência infantil sem cair no território da mera espetacularização/sensacionalismo e que desperta revolta através de ações que movem a narrativa em vez de pará-la para verbalizar seu discurso de forma óbvia e direta.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: