Quem me conhece já deve saber que sou fã incondicional do cineasta Quentin Tarantino (e afirmo isso com toda a franqueza, sem correr riscos de seguir as chamadas “modinhas” da Internet). De Cães de Aluguel a Django Livre, admiro imensamente todas as obras do diretor (sim, inclusive Jackie Brown e À Prova de Morte): os dois volumes de Kill Bill criam uma ótima fusão entre filmes B de samurais e westerns; Bastardos Inglórios desconstrói fatos históricos com estilo e ironia; e Pulp Fictionencabeça minha lista particular de filmes favoritos há anos. Dito isso, é um alívio constatar que Os Oito Odiados segue evidenciando o talento farto de Tarantino – embora traga defeitos que o classificam como o longa mais fraco da carreira do diretor.
Retornando ao universo dos faroestes após Django Livre, o cineasta abre sua nova película com uma longa sequência de créditos iniciais que explora detalhadamente a imagem de uma estátua de Jesus Cristo crucificado em meio à neve e, logo em seguida, nos apresenta ao major Marquis Warren, um caçador de recompensas que lutou com a União durante a Guerra Civil e precisa ir à cidade de Red Rock. Com isso, o personagem pega uma carona na carroça do também caçador de recompensas John Ruth, ou O Enforcador, que leva a criminosa Daisy Domergue para ser executada. No caminho, o xerife Chris Mannix, que atuou na Guerra Civil junto aos confederados, também entra na carroça e, após um tempo na estrada, os quatro (ou cinco, considerando o carroceiro) se veem obrigados a buscar abrigo numa cabana em razão da nevasca fortíssima – e que já é ocupada por Joe Gage, Bob, Oswaldo Mobray (um carrasco) e Sandy Smithers (um general da Confederação). Como oito pessoas com tamanhas distinções irão conviver entre si? Simples: não convivendo.
Trazendo algumas características e rimas conceituais com os demais trabalhos do diretor, Os Oito Odiados se passa dentro de um local fechado na maior parte do tempo (como Cães de Aluguel), conta com uma cronologia não linear (como Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Kill Bill), tem sua narrativa dividida em capítulos (como Kill Bill e Bastardos Inglórios), referencia a marca fictícia de cigarros/tabaco Red Apple e traz um certo momento que imediatamente me lembrou a cena de Pulp Fictiononde um indivíduo armado sai de um banheiro surpreendendo Vincent Vega e Jules Winnfield (desta vez, sem milagres). Assim, a produção se mantém inquestionavelmente coesa com relação ao estilo que Tarantino consagrou ao longo de sua impecável filmografia – o que, no mínimo, já garante a alegria de seus fãs (como eu) e transforma este novo longa numa experiência prazerosa por natureza. Da mesma forma, é curioso que o próprio título da produção contenha exatamente o número de produções do cineasta (isso se não dividirmos Kill Bill em dois filmes, é claro) e remeta também ao longa 8½, de Federico Fellini. E por mais que não hajam tantas canções marcantes quanto as vistas nos projetos anteriores do diretor, tal falta é devidamente compensada pela excelente composição incidental de Ennio Morricone, que, além de evocar (obviamente) o espírito das trilhas sonoras de faroestes, demonstra uma capacidade fabulosa de potencializar tensão e o tom fúnebre de maneira mais que apropriada.
Mantendo um clima sempre claustrofóbico e intimidador, Tarantino e o diretor de fotografia Robert Richardson são particularmente brilhantes ao retomarem o Ultra Panavision 70 (bastante popular nos anos 1960) e rodarem o filme inteiro com câmeras 70mm (o que resulta numa razão de aspecto bem mais larga do que a comumente vista e que já se encontrava praticamente extinta há décadas). Como o Brasil não tem projetores ou salas especiais para rodarem o formato, infelizmente teremos que amargar exibições com as famosas barras pretas horizontais (ou letterbox) que ocupam as partes superior e inferior da tela. Independente disto, a fotografia jamais deixa de encantar graças à forma inteligente com que é utilizada: por mais larga que seja a proporção dos quadros e ainda que existam tomadas que exploram a vastidão das paisagens, a maior parte da narrativa é ambientada em locais fechados e que propõem a Tarantino e Richardson o desafio de filmarem em 70mm dentro de lugares como carroças e cabanas – algo que é cumprido de forma exemplar, já que os planos ocorridos dentro de tais ambientes tendem a explorá-los com o máximo de detalhes. Com isso, mesmo que haja um personagem dialogando no centro do quadro, não deixa de ser intrigante ver que existem outros nas extremidades agindo de modo particular.
Ainda que traga o bom humor pontualmente, Os Oito Odiados é realmente certeiro no desenvolvimento de uma atmosfera claustrofóbica, opressiva e intensa – e acredite: o talento de Tarantino para criar tensão segue à altura do clímax de Cães de Alguel, da cena em que Butch Coolidge e Marsellus Wallace são capturados por lojistas insanos em Pulp Fiction e da introdução de Bastardos Inglórios. Aliás, arrisco dizer que é nesta nova produção onde reside um dos melhores momentos da carreira do diretor: aquele ocorrido aproximadamente na metade da projeção e que traz (sem malditos spoilers!) um personagem narrando uma história – que, mesmo podendo ser falsa, é suficientemente impactante e compõe uma sequência que se torna ainda mais angustiante graças a um indivíduo que, durante a cena, toca Noite Feliz num piano e volta ao começo da canção sempre que comete um erro. E considerando que o objetivo de Tarantino no que diz respeito aos personagens é transformá-los em figuras intrigantes, porém odiáveis (basta ver o título do filme para chegar à esta conclusão), não há como dizer que o roteiro não é bem sucedido: Samuel L. Jackson concebe o major Marquis Warren como um sujeito inteligente, mas cuja condição desfavorecida (pertence a um tempo onde o preconceito impedia os negros de terem imponência e autoridade) não desperta compaixão no espectador graças ao mau-caratismo e instinto de vingança desprezível do personagem; Kurt Russell emprega uma agressividade que torna John Ruth num ser ameaçador, mesmo que nunca se torne uma figura caricatural nem deixe de soar humano; Bruce Dern conta com um passado sombrio e que, devido à forma superficial como Smithers lidou com o mesmo, não se anulou; e Walton Goggins confere uma ambiguidade a Chris Mannix que o torna imprevisível e leva o público a questionar constantemente suas ações.
No entanto, quem realmente se sobressai é Jennifer Jason Leigh: merecendo ser indicada ao Oscar de coadjuvante feminina por seu trabalho aqui, a atriz adiciona força e irreverência a Daisy Domergue não para torná-la engraçada, mas para fazer com que soe ameaçadora e insana – o que rende algumas das melhores falas do longa (“Quando chegar ao inferno, diga que Daisy o enviou” é só um exemplo). Além disso, o fato de que Daisy aguenta as maior quantidade de agressões físicas vistas ao longo da projeção a transforma em mais uma personagem feminina imponente criada por Quentin Tarantino, que, por sua vez, é sábio ao criar momentos sádicos que envolvem vômitos de sangue para tornar Domergue temível visualmente. Por outro lado, se Tim Roth é hábil ao emular a performance de Christoph Waltz em Bastardos Inglórios e Django Livre, Michael Madsen e Demián Bichir surgem subaproveitados; e se, de fato, pude torcer para que a dupla tivesse o fim mais cruel possível, minha motivação para tal desejo veio a partir de uma cena revelada depois do destino dos dois personagens. Por falar nisso, o flashback ocorrido (novamente: sem spoilers) no quinto capítulo da narrativa quebra o ritmo de maneira atroz e poderia muito bem ter sido excluído do corte final; e se a cronologia desordenada de Cães de Aluguel, Pulp Fiction e Kill Bill servia para tornar a narrativa ainda mais interessante, aqui soa mais como uma vítima de uma montagem problemática.
Contudo, nenhuma falha em Os Oito Odiados é tão grave quanto sua duração desnecessariamente longa: demonstrando que a autoindulgência iniciada em Kill Bill: Volume 2 pode ter se tornado uma tendência negativa em sua filmografia, Quentin Tarantino inclui diversas sequências desnecessárias e diálogos que perdem o charme por surgirem em quantidades excessivas e não avançarem o desenvolvimento dos personagens ou da narrativa, empalidecendo diante das conversas memoráveis de Cães de Aluguel, Pulp Fiction, Bastardos Inglórios e Django Livre. Pra piorar, existem passagens inteiras que poderiam ser resumidas (como o quinto capítulo) ou simplesmente descartadas (como o já citado flashback), e como resultado, fica claro queOs Oito Odiados poderia ter uns 30 ou 40 minutos a menos; um problema que se torna ainda mais grave quando consideramos que a narrativa faz questão de repetir alguns conceitos de cenas – para citar um exemplo, existem constantes momentos onde os personagens se encontram realizando negociações que, no fim das contas, não chegam em lugar algum. Mas não é só: ao perder momentaneamente a noção de como explicar determinados eventos, o diretor erra ao inserir ao acaso narrações em offque, além de surgirem expositivas, se tornam ainda mais falhas por aparecerem apenas em alguns pontos específicos da narrativa em vez de marcarem presença do início ao fim da projeção, evidenciando ainda mais a natureza óbvia e explicativa das mesmas.
Por fim, Tarantino peca ainda ao trazer conflitos, sequências e tipos de diálogos excessivamente familiares com relação ao que foi visto em suas obras passadas; mas em vez de parecerem uma forma de manter o longa coerente com relação ao estilo autoral do cineasta, tais características acabam soando mais como uma preguiça do diretor/roteirista e tendem a tornar a película moderadamente previsível e convencional. Problemas à parte, o fato é que Os Oito Odiados é competente o bastante para se definir como mais um acerto de Quentin Tarantino – e como se não bastassem os méritos desta nova produção, a maneira objetiva com que trata o racismo como um mal a ser superado e a igualdade como um bem a ser conquistado demonstra que só poderia mesmo ter sido realizada por um dos realizadores mais inventivos e admiráveis do Cinema contemporâneo.