Confesso que tenho muita familiaridade com o Pantera Negra – o pouco que conheço sobre o personagem se deu através de uma ou outra animação e, claro, de Capitão América: Guerra Civil. Em compensação, sei também que o fato de ter sido um dos primeiros super-heróis negros criados pela Marvel já imbui o potencial para desenvolver algo digno de nota: a inclusão; que, convenhamos, ainda não foi devidamente aproveitada pelos filmes baseados em HQs da Marvel ou da DC. Sim, Blade 1 e 2 conquistaram bons resultados nas bilheterias e foram moderadamente elogiados tanto pelo público quanto pela Crítica, mas basta recordar que, além de dirigidos e roteirizados por brancos, aqueles dois longas não escancaravam suas origens enraizadas em quadrinhos – ou pelo menos não tanto quanto Pantera Negra, um filme que obviamente pertence ao subgênero dos super-heróis.
Seria um desperdício, portanto, colocar um personagem desses nas mãos de cineastas brancos, já que estes logicamente não compreenderiam de maneira visceral as implicações sociais e culturais que estão incutidas no conceito deste herói. Assim, faz todo o sentido que Pantera Negra não só conte com um elenco majoritariamente negro, como ainda seja co-roteirizado por Joe Robert Cole e dirigido pelo mesmo Ryan Coogler que, nos últimos cinco anos, recontou a trágica história de Oscar Grant em Fruitvale Station e enfocou a comunidade negra que reside na Filadélfia em Creed.
O resultado é um longa que funciona muitíssimo bem como entretenimento, mas que, assim como o ótimo Mulher-Maravilha, serve como um indício de que os filmes de super-heróis (e os blockbusters em geral) têm muito a ganhar abraçando a representatividade e a inclusão. (Ainda assim, é claro que, como o homem branco que sei que sou, não posso ser cínico a ponto de definir o que merece ser o retrato decisivo das mulheres ou dos negros na cultura pop – algo que, inclusive, cheguei a comentar brevemente ao escrever sobre Detroit em Rebelião.)
Trazendo de volta o personagem apresentado em Guerra Civil e dando-lhe a oportunidade de estrelar sua própria aventura (estratégia também empregada em Homem-Aranha: De Volta ao Lar), Pantera Negra já conta com a vantagem de não ter que gastar cerca de uma hora contando a origem do herói, mergulhando de cabeça numa trama sem perder tempo com firulas. Aqui, o príncipe T’Challa volta ao reino escondido de Wakanda para assumir a coroa de seu pai, assassinado há cerca de uma semana. Ao conquistar o manto do Pantera Negra (uma espécie de herança mantida entre os reis wakandanos), T’Challa resolve caçar o contrabandista Ulysses Klaue (ou “Garra Sônica”), que se apropriou do mineral mais poderoso de Wakanda: o metal vibranium. Como se não bastasse, o misterioso Killmonger se une ao criminoso e aos poucos torna-se mais ameaçador, alcançando a função de real antagonista da trama.
Dando a entender que Ryan Coogler teve a liberdade que muitos diretores não têm ao comandar um projeto deste tipo, Pantera Negra é um filme que, se não fosse a cena que vem depois dos créditos, poderia perfeitamente deixar de pertencer ao universo cinematográfico da Marvel, já que a maneira como reflete a realidade afrodescendente e suas manifestações culturais acaba oferecendo à narrativa uma personalidade particular – e, claro, distante do que costumamos ver no subgênero dos super-heróis (o “sub” não é pejorativo; apenas a constatação de um estilo existente dentro da ação e da fantasia). E se a designer de produção Hannah Beachler acerta ao imaginar Wakanda como uma daquelas terras que só poderiam ter saído de uma história em quadrinhos – e que inclui panteras esculpidas em montanhas, edifícios futuristas e uma variedade esplendorosa de cores –, a diretora de fotografia Rachel Morrison (que, graças ao seu ótimo trabalho em Mudbound, tornou-se a primeira mulher a ser indicada ao Oscar nesta categoria) é particularmente hábil ao conferir um caráter lúdico e onírico às (belíssimas) sequências ambientadas no Plano Ancestral. Para completar, o compositor Ludwig Göransson evoca uma aura tribal, através de tambores e cânticos, que enriquece o longa com a mesma eficácia das canções do rapper Kendrick Lamar (outro artista negro que colocou sua persona e o meio no qual está inserido em sua obra).
Já como diretor de ação, Coogler mostra-se especialmente inspirado ao rodar um plano longo que passeia pela sala de um cassino enquanto múltiplos personagens protagonizam uma briga feroz, sendo bem-sucedido também ao conduzir a perseguição que vem logo em seguida e ao estabelecer uma atmosfera de urgência crescente a partir do terceiro ato, que, repleto de energia, traz momentos empolgantes como aquele onde a guarda real (composta única e exclusivamente por mulheres) resolve enfrentar o vilão. Por outro lado, quando o filme insiste em abusar de efeitos visuais irregulares e substituir os atores por modelos digitais que se encaixariam melhor num game, o resultado transforma-se num problema evidente: ao constatar que a textura dos personagens é lavada demais, a maneira como se movimentam é artificial e seus corpos não parecem ter peso algum, o espectador automaticamente lembra (por pouco tempo) que nada daquilo passa de uma encenação e se desconecta do que está vendo, o que fragiliza pontualmente sua imersão.
Mas um dos méritos mais inesperados de Pantera Negra, no entanto, é perceber como Ryan Coogler encara com seriedade o personagem e o universo entorno deste: sim, há uma importante leveza na maneira com que trata um material que é, em essência, uma fantasia infanto-juvenil (afinal, estamos falando de um roteiro que envolve um super-herói, um vilão que atende pela alcunha de “Garra Sônica”, um metal chamado vibranium e tecnologias que não estão nem próximas de existir no mundo real, soando quase como mágicas); em compensação, isto não impede Coogler de abraçar naturalmente o aspecto fabulesco (e absurdo) daquele universo, optando por um caminho que difere da auto-paródia muitas vezes adotada pelas adaptações de HQs. Neste sentido, Pantera Negra demonstra ter aprendido bem as lições ensinadas por X-Men – O Filme, que há quase 18 anos provou que era possível levar a sério uma história protagonizada por superseres vestidos de forma extravagante.
Buscando um senso de humor mais seco e pontual do que a Marvel está habituada a oferecer (aproximando-se mais do primeiro Homem de Ferro em suas tentativas de provocar o riso), o roteiro escrito por Coogler ao lado de Joe Robert Cole é uma grata surpresa do ponto de vista temático, inserindo alguns comentários que, querendo ou não, remetem a questões políticas: é lógico, por exemplo, que o fato de Wakanda ter uma notável aversão ao mundo exterior reflete a atual situação da Europa, que se mantém rígida quanto à possibilidade de abrir suas portas para imigrantes refugiados – e embora não seja a mais sutil das alegorias, a simples presença dela num blockbuster já é algo admirável. Mas não só: quando a cientista vivida por Letitia Wright se vira para o agente da CIA interpretado por Martin Freeman e diz “Não me dê sustos, colonizador!“, trata-se de uma piada rápida, mas que conta com um contexto histórico inegável. E se as atitudes tomadas pelo vilão podem ser questionadas, as motivações por trás dessas ações serão facilmente compreendidas por qualquer um que tenha visto A 13ª Emenda ou simplesmente saiba do disparate que são as prisões arbitrárias contra a comunidade negra.
Por falar em vilão, o ótimo Michael B. Jordan encarna um antagonista multidimensional que, mesmo despertando o sentimento de perigo iminente, é também uma vítima da opressão que sofreu ao lado de tantas outras pessoas, impedindo o espectador de condená-lo por suas ações revanchistas – aliás, é bom que Pantera Negra reconheça que, num filme de super-herói, o vilão é fundamental, pois aprendemos a valorizar mais os esforços do protagonista quando a ameaça que combate soa como um desafio real (e Andy Serkis é outro que merece elogios, transformando Ulysses Klaue num maníaco que parece se divertir imensamente com sua própria loucura). Mas é claro que o herói é igualmente importante, sendo então um alívio que Chadwick Boseman dê vida a um T’Challa interessante, fiel aos seus princípios e dono de uma nobreza que o estabelece como uma figura consideravelmente adulta.
Unindo-se a Guerra Civil e ao primeiro Homem de Ferro como um dos melhores capítulos desta longa jornada do Universo Cinematográfico da Marvel, Pantera Negra é um filme de super-herói surpreendentemente ambicioso e que prova (mais uma vez) que buscar a representatividade, olhar para outras culturas e dar voz aos que não têm o devido espaço vale a pena, conseguindo ser tematicamente relevante sem deixar de funcionar como um belo espetáculo – e trazendo, por fim, aquela identidade diferenciada que tanto faltava neste subgênero adaptado dos quadrinhos.