Há uma imagem em Projeto Flórida que resume com precisão as intenções gerais do diretor Sean Baker: estou me referindo a um plano geral que traz, no canto inferior direito, duas personagens dançando alegremente enquanto passam perto de uma loja de armas, cuja enorme fachada ocupa parte do lado esquerdo do quadro. Isto diz muito a respeito das proezas que Baker conquista aqui, criando um filme que enfoca o cotidiano de pessoas que passam por dificuldades constantes, mas que seguem tentando (e às vezes até conseguem) encontrar alguma felicidade pontual no meio da miséria – algo que o diretor também fez no ótimo Tangerine, que, além de ganhar notoriedade por ter sido inteiramente filmado com a câmera de um iPhone, se aprofundava na vida difícil de duas travestis e alcançava um resultado que funcionava tanto como etnografia quanto como construção dramática.
Roteirizado por Baker ao lado do colaborador habitual Chris Bergoch, Projeto Flórida é uma obra mais interessada em mostrar o dia-a-dia dos personagens do que em estabelecer uma trama concreta. Basta dizer, porém, que o longa se passa num motel chamado Magic Castle, que fica próximo ao Walt Disney World e abriga não só hóspedes ocasionais, mas moradores que “alugam” semanalmente um apartamento a fim de permanecerem fixos num único lugar. Entre estes inquilinos está a pequena Moonee, que passa a maior parte do tempo brincando com seus amigos, enchendo o saco do gerente Bobby Hicks e participando de pequenos esquemas/golpes com sua jovem mãe Halley.
Quase todo rodado em 35mm (o que confere ao filme uma aparência levemente desgastada, mas nunca a ponto de tornar-se feia ou deselegante), Projeto Flórida é fotografado por Alexis Zabe de maneira sempre alegre e expressiva, ressaltando cores intensas como o roxo do Magic Castle, o verde do gramado e o azul do céu (o contraste entre esses tons, inclusive, encontra uma harmonia belíssima). E se a designer de produção Stephonik Youth concebe o motel que abriga a história como uma locação que carrega uma personalidade própria, a montagem assinada pelo próprio Sean Baker exerce um papel fundamental num projeto como esse: como o longa se concentra menos numa trama e mais no cotidiano dos personagens, a maioria das cenas mostra somente acontecimentos casuais que poderiam soar avulsos e desconexos se não fossem “costuradas” com cuidado; sendo então um alívio que Baker consiga, sim, transitar entre esses eventos triviais com fluidez, estabelecendo um senso de rotina que funciona de forma consistente.
Mas é na direção que Sean Baker se sobressai – e aqui retorno àquela que talvez seja o maior mérito da obra: revelar os instantes de leveza que são pontualmente alcançados por pessoas que vivem numa situação miserável. Já abrindo a projeção com uma sequência de créditos embalada pela canção “Celebration”, Baker transforma as risadas de Moonee em alguns dos melhores momentos do filme (é divertido e tocante, por exemplo, observar suas idas à sorveteria, ver suas dancinhas animadas, escutar as provocações que grita para uma senhora que faz top less e até mesmo brincar com a mãe enquanto vende perfumes na porta de um hotel). O que Sean Baker consegue em Projeto Flórida, portanto, é proporcionar ao espectador uma experiência cheia de afeto, calor humano e sinceridade – aliás, duvido que alguém chegue ao fim da projeção sem ter se apegado imensamente àqueles personagens, quase como se sentisse um habitante daquele motel e tivesse acompanhado aquelas situações de perto.
O que não quer dizer, por outro lado, que o filme torne-se leve demais e elimine completamente o impacto das passagens mais dramáticas. Não, Projeto Flórida não esquece que, afinal, Moonee e sua mãe estão localizadas numa região obscura e longe do encantamento que o Magic Kingdom costuma despertar em seus visitantes, sendo obrigadas a testemunhar situações constrangedoras como os xingamentos humilhantes que um casal de brasileiros (pois é) começa a disparar ao chegar no motel por engano. O Magic Castle pode até abrigar crianças risonhas e estar situado perto da Disney, mas o que aquele lugar vê com mais frequência é gritaria, briga e/ou bebedeira alheia (sem contar as sirenes da polícia e os auxílios de uma ou outra instituição de caridade). Mas não é só: à medida que a projeção avança, os erros cometidos pelos personagens vão desencadeando consequências brutais e cada vez mais angustiantes – e quando o longa chega aos minutos finais e (sem spoilers) ocorre algo de partir o coração, percebemos que, embora desejássemos que aquilo não tivesse acontecido, era natural e inevitável que tudo se encaminhasse para este tipo de resolução.
Neste sentido, a atriz estreante Bria Vinaite faz um excelente trabalho ao abordar as múltiplas facetas de sua personagem: sim, é inquestionável que Halley é uma péssima mãe, servindo como uma má influência para Moonee ao tomar as atitudes mais irresponsáveis do mundo, tornar sua filha cúmplice de pequenas ações ilegais e partir para a agressividade (física e verbal) em momentos cruciais; em contrapartida, é impossível deixar de reconhecer o amor que Halley sente pela garota, divertindo-se ao brincar com ela e ficando notavelmente feliz quando vê Moonee sentindo-se animada ou relativamente livre – e a impressão que fica para o espectador é complexa, pois queremos que a jovem pague por seus atos inconsequentes sem comprometer sua relação harmoniosa com a menina.
Já Willem Dafoe justifica cada indicação a prêmios que recebeu por seu desempenho aqui, evitando qualquer traço de intimidação ao passo que encarna Bobby como um sujeito tridimensional e cheio de carinho: dividido entre as responsabilidades de seu ofício e o apego que tem por seus hóspedes, o gerente do motel é, sim, um homem falho (notem a forma grosseira como trata seu filho em certo instante) e que de vez em quando se entrega a curtas explosões que já não podem ser mais controladas (vejam a maneira como grita com Halley após perder a paciência). Em compensação, é também outra pessoa que não esconde o apreço que sente pelos personagens hospedados no motel, abrindo um sorrisinho contagiante ao presenciar uma partida de pique-esconde, livrando as crianças de um velhinho suspeito e oferecendo ajuda à mãe da protagonista quando falta dinheiro para algo importante. Assim, quando Bobby faz um sinalzinho de uma arma disparando em direção às crianças, fica claro que aquele gesto era só uma brincadeirinha inocente (não havia ideação homicida alguma ali).
De qualquer forma, qualquer análise de Projeto Flórida que se esqueça de falar sobre a performance de Brooklynn Prince deve ser sumariamente desconsiderada, já que a menina (de sete anos de idade) carrega boa parte da “alma” do filme nas costas. Claro que os méritos entorno de Moonee começam no roteiro, que transforma a criança no símbolo de tudo aquilo que este trabalho de Sean Baker: por um lado, a miséria na qual está inserida obviamente repercute em sua persona, que está acostumada a ver coisas pesadas demais para sua faixa etária e enxergar o mundo com uma melancolia particular (algo que pode ser notado quando ela diz “Sempre sei quando um adulto está prestes a chorar“); por outro, a empolgação que sente ao divertir-se com seus amigos só não é mais significativa que sua esperança pontual (outra fala que merece destaque: “Sabe por que essa é minha árvore favorita? Porque ela caiu e, ainda assim, voltou a crescer“).
Essa divisão entre a alegria natural da infância e o peso de uma vida adulta complicada é estabelecida com perfeição por Prince, que confere a Moonee uma naturalidade típica de um intérprete que só conquistou tamanho domínio depois de anos de prática (e de novo: ela tem sete anos de idade). Afastando-se completamente da artificialidade que muitas vezes leva os atores mirins a falharem em suas composições, a pequena atriz transforma a protagonista numa menina divertida e carismática que, apesar de algumas atitudes mais intensas, nunca deixa de expressar o entusiasmo característico desta fase da vida – mas ela surpreende também ao revelar, nos últimos minutos do filme, uma nuance até então desconhecida da personagem, deixando escapar uma vulnerabilidade emocional que impacta embora seja inevitável para qualquer ser humano. O mínimo que posso dizer sobre Brooklynn Prince é que ela mantém, desde já, uma forte promessa para o futuro, indicando que uma carreira cheia de potencial está por vir – e mal posso esperar para reencontrar a garota em próximos projetos.
Chegando a um desfecho que deixa a película de lado e passa a utilizar uma filmagem feita em sigilo com um iPhone (quando a produção resolve embarcar numa situação arriscada que certamente dificultaria o uso de equipamentos mais sofisticados e chamativos), Projeto Flórida se encerra fazendo jus à filosofia que seguiu até ali: buscando alguma felicidade para iluminar – por alguns minutos – a vida miserável daqueles personagens (algo que, inclusive, remete ao fim de Tangerine, que também envolvia uma consolação num momento doloroso).
E que este desfecho conte ainda com uma (re)composição instrumental de “Celebration”, que havia tocado em sua versão original na sequência dos créditos iniciais, é uma rima sonora particularmente inspirada que deixa o filme terminar com a eficácia que começou.