Corra! (1)

Título Original

Get Out

Lançamento

18 de maio de 2017

Direção

Jordan Peele

Roteiro

Jordan Peele

Elenco

Daniel Kaluuya, Allison Williams, Bradley Whitford, Catherine Keener, Caleb Landry Jones, Lil Rel Howery, Betty Gabriel, Marcus Henderson, LaKeith Stanfield, Stephen Root, Erika Alexander, Geraldine Singer e Zailand Adams

Duração

103 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Jordan Peele, Sean McKittrick, Jason Blum e Edward H. Hamm Jr.

Distribuidor

Universal Pictures

Sinopse

Chris (Daniel Kaluuya) é jovem negro que está prestes a conhecer a família de sua namorada caucasiana Rose (Allison Williams). A princípio, ele acredita que o comportamento excessivamente amoroso por parte da família dela é uma tentativa de lidar com o relacionamento de Rose com um rapaz negro, mas, com o tempo, Chris percebe que a família esconde algo muito mais perturbador.

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Corra! | Crítica

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ATENÇÃO: me esforcei para evitar spoilers na medida do possível, mas mesmo assim houveram momentos em que posso ter detalhado demais a trama. Assim, sugiro que você leia esta crítica apenas depois de assistir ao filme.

Como todo tipo de manifestação artística, o Cinema tem a função de refletir e comentar os aspectos que compõem a sociedade de acordo com o passar do tempo. Sendo assim, é fundamental que o racismo seja denunciado através da Sétima Arte, pois se trata de um problema que o mundo enfrenta há séculos sem que chegue a uma solução decisiva. Por outro lado, a pior coisa que pode acontecer com um tema tão importante é a pasteurização dos meios encontrados para discuti-lo – o que é bastante comum em temporadas de premiações, onde conhecemos produções preguiçosas que se aproveitam de assuntos seríssimos apenas para tentar abocanhar um Globo de Ouro aqui e uma indicação ao Oscar ali.

Este é um perigo que ocorre não só com temáticas, mas com gêneros de modo geral. Quando reavaliamos a história recente dos filmes de terror, percebemos que de vez em quando surge um exemplar que está preparado para resistir ao teste do tempo e ser lembrado daqui a 30 anos, mas o fato é que títulos como Invocação do Mal, The BabadookCorrente do Mal ou A Bruxa representam uma minoria em meio a longas como DominaçãoUma Chamada PerdidaA Possessão do Mal ou mais uma das infinitas continuações de Jogos Mortais e Atividade Paranormal.

O que Corra! (ou Get Out) consegue fazer, no entanto, é uma união de gênero e tema onde ambos só têm a ganhar: estabelecendo-se como uma mistura de Adivinhe Quem Vem para Jantar, O Bebê de Rosemary e Que Horas Ela Volta?, o filme que marca a estreia de Jordan Peele na direção surpreende ao revelar uma personalidade intrigante, apresentando-se ao mesmo tempo como um terror divertidamente satírico e uma declaração anti-racista adoravelmente caricata. Na trama, somos apresentados a Chris, um jovem negro que vai passar alguns dias na casa dos pais de Rose, sua namorada que, por sinal, é branca. Ao conhecer os parentes da garota, a mansão onde vivem e os amigos da família, porém, Chris começa a ser submetido ao horror de uma elite branca que tende a subjugar a comunidade negra desde sempre.

Em outras palavras: trata-se de um filme de terror onde os fantasmas são pessoas atormentadas por incontáveis anos de repressão, retratando os antagonistas como representantes daquela classe média alta e composta por figuras majoritariamente brancas que insistem em dizer que seus empregados são “membros da família” mesmo que estes sejam obrigados a usar banheiros diferentes, servir aos seus empregadores, ir e vir nos horários determinados pelos patrões e tocar a campainha da casa sempre que chegam em vez de possuir uma chave. Aliás, o roteiro de Jordan Peele é hábil ao escapar do lugar-comum quando necessário, trazendo pessoas que “votariam no Obama pela terceira vez sem pensar duas vezes” – e quando certo personagem diz que “A cor da sua pele não me interessa“, é possível deduzir que se trata de um exemplo claro de hipocrisia e que sim, a cor da pele de Chris interessa ao indivíduo.

Em contrapartida, na maior parte do tempo o longa investe em caracterizações cartunescas, diálogos óbvios e numa abordagem ocasionalmente artificial. Geralmente, eu condenaria esta decisão; no entanto, graças ao ótimo trabalho de Jordan Peele, a produção deixa claro que o objetivo era justamente este e que criticar o tom caricatural da narrativa seria o mesmo que negar os seus propósitos. Aliás, não creio que Corra! seja uma obra que se propõe a iniciar debates; é, na verdade, uma grande brincadeira que pode acabar iniciando debates ou não. Neste momento, Peele evidencia sua experiência enraizada em programas de comédia como MADtv Key & Peele: trazendo um senso de humor bem maior do que costuma se esperar de uma produção deste tipo, o diretor se dá ao luxo de brincar com velhas tradições e clichês do gênero “terror” ao incluir jump scares que parecem mais interessados em despertar o riso do que em provocar sustos. Além disso, o roteiro não se intimida diante da possibilidade de se entregar ao absurdo, usando este para retratar a manipulação que os líderes da pirâmide social praticam para dominar pessoas específicas (que, por sua vez, podem ter dificuldades para se libertar, pois desde sempre são forçados a se inserir num contexto que tende a menosprezá-los).

O que nos traz ao terceiro ato, onde Peele se entrega sem reservas à insanidade e à sanguinolência sem jamais perder a noção do tom que pretende estabelecer para a narrativa, mantendo-se eficaz também ao empregar (mais uma vez) o absurdo total como ferramenta para expor um problema da realidade. É possível que algumas pessoas acusem o clímax de soar “irresponsável” ou “imoral” (e não nego que algumas imagens presentes nos minutos finais da projeção são perturbadoras), mas é importante reconhecer que, no fim, Chris estava lutando pela sobrevivência, não pela vingança. E se houve uma catarse naquele desfecho, é porque Jordan Peele ergueu um espelho para o público e mostrou como nós, espectadores, podemos ser seduzidos pelo sentimento de revanchismo.

E se Peele acerta tanto no roteiro, o mesmo pode ser dito a respeito das técnicas de direção que adota: além de todos os elogios que já fiz ao tom que o cineasta concebeu para o longa, é interessante observar que o diretor se destaca logo na abertura, utilizando um plano-sequência atraente e que evidencia o estilo cuidadoso que Peele constrói desde o princípio. Da mesma forma, o realizador faz questão de imergir o espectador dentro das situações experimentadas pelo protagonista, usando bem a câmera subjetiva numa cena que envolve hipnose e coordenando os efeitos sonoros com uma minúcia apreciável, como pode ser constatado nos instantes em que Chris presta atenção no ruído de uma colher se arrastando na borda de uma xícara (o design de som deste filme, diga-se de passagem, merece ser tido como exemplo por qualquer um que tente criar um clima de tensão).

Outro nome responsável por envolver o espectador no horror enfrentado por Chris é, obviamente, o ator Daniel Kaluuya, que participou de um episódio da série Black Mirror e que, aqui, consegue desenvolver uma performance complexa através de seu olhar expressivo e que vai da alegria ao pânico em questão de segundos, conquistando o público tanto nos momentos onde se diverte com a família de Rose quanto nos instantes onde passa pela mais pura inquietação. E se Allison Williams cria uma personagem cheia de nuances e inesperadamente convincente quando finge determinadas emoções durante uma conversa telefônica, Bradley Whitford e Catherine Keener compõem de maneira precisa aquele tipo de casal de classe média alta que exala hipocrisia e um ar de superioridade sem perceber isto, ao passo que Lil Rel Howery funciona surpreendentemente bem como alívio cômico e conta com frases que constantemente geram gargalhadas de forma natural e orgânica (“I’m TSmotherfuckingA“).

Tudo funcionando em perfeita harmonia, porém sempre favorecendo a visão sociocultural que Jordan Peele reflete através da estrutura e da atmosfera de um bom filme de terror. O que importa mesmo é que, nos minutos finais da projeção, temi que o personagem principal de Corra! fosse capturado não por espíritos malignos ou algo parecido, mas por policiais que não hesitariam antes de prendê-lo apenas por causa da cor de sua pele. É este tipo de autoridade que, inclusive, foi comentada por Chris Rock num episódio da websérie Comedians in Cars Getting Coffee, onde o humorista dizia que, se não estivesse na companhia de Jerry Seinfeld (um branco), seria obrigado a estacionar o carro e mostrar seus documentos.

Eis algo que não costumo dizer com frequência ao escrever sobre representantes deste gênero específico. E mais: não ficarei surpreso se, no futuro, eu encontrar trechos de Corra! em documentários parecidos com A 13ª Emenda ou Eu Não Sou Seu Negro. Como já falei no início do texto, não é todo dia que surge um título que impressione como filme de terror assim como não é fácil discutir o racismo no Cinema – e que Jordan Peele tenha sido capaz de fazer as duas coisas simultaneamente é um feito, no mínimo, admirável.

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