Shang-Chi é um daqueles super-heróis de quadrinhos sobre os quais eu não sabia absolutamente nada; apenas que ele existia. Na verdade, a memória mais antiga que tenho do personagem é a de um trecho do antigo programa de Carlos Imperial (não, nem eu esperava mencionar Carlos Imperial aqui) que foi “resgatado” pela Internet há alguns anos e que trazia um número musical estrelado por um grupo de dançarinos fantasiados de Superman, Batman, Robin, Homem-Aranha, Thor e um tal de Kung Fu – que, mais tarde, descobri que talvez se tratasse do mesmo Mestre do Kung Fu que encontrava nas capas de alguns gibis antigos da Marvel. Assim, não consigo evitar certa surpresa ao ver um personagem tão obscuro ressurgir como protagonista de uma produção multimilionária e com potencial para deslanchar uma franquia de sucesso; num sinal de que o modelo industrial da Marvel segue rodando a todo vapor.
25º capítulo do cada vez mais extenso MCU (do inglês, Marvel Cinematic Universe), Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis começa nos apresentando a Wenwu, um guerreiro chinês que milênios antes havia descoberto dez braceletes capazes de conceder imortalidade e poderes divinos a quem os utilizar. Na década de 1990, a fim de expandir ainda mais seus poderes, Wenwu partiu em busca de uma vila mística conhecida como Ta Lo – e, no processo, acabou se apaixonando, casando e tendo filhos com Ying Li, uma das guardiãs do local. O que nos traz a Shang-Chi, que, filho de Wenwu e Li, presenciou o assassinato da mãe quando criança e, após passar infância e adolescência inteiras sendo treinado pelo pai para se tornar um lutador indestrutível, fugiu para os Estados Unidos em busca de uma vida mais pacata, longe de qualquer tumulto. Trabalhando como manobrista ao lado da amiga Katy, o jovem vê sua vida virar de ponta-cabeça quando um grupo de assassinos entra em seu caminho, obrigando-o a buscar reconciliação com a irmã Xialing a fim de se proteger do retorno não só de seu pai, mas de seu passado.
Diferenciando-se estilisticamente das outras produções da Marvel ao assumir abertamente sua inspiração em elementos da cultura chinesa (com direito a conceitos e simbolismos que não só remetem àquela como provavelmente terão um significado maior – ou mais aparente – para quem a conhece de perto), Shang-Chi é hábil ao adotar um design de produção que combina as tradições estéticas/culturais almejadas pelo projeto e as cores vibrantes do universo fabulesco das HQs – e a vila de Ta Lo, em especial, surge como um mosteiro tradicional ao mesmo tempo em que as guerreiras que nele habitam usufruem de uma tecnologia que ancora aquele cenário na fantasia lúdica dos quadrinhos. Da mesma forma, o longa não hesita, por exemplo, em retratar dragões como figuras a serem cultuadas em vez de temidas, destacando-se também pelo simples fato de trazer para a superfície um grupo menos representado em Hollywood e que, ainda mais agora com a pandemia de COVID-19, voltou a ser alvo de uma onda escancarada de ódio e discriminação – e é justamente por isso, aliás, que é decepcionante que o filme eventualmente ceda à condescendência norte-americana a ponto de basear o bom caráter de seu protagonista no fato de ter imigrado para os Estados Unidos (“Parece que viver na América te tornou mais mole”, comenta Xialing), mostrando-se também cínico na maneira com que força uma conciliação entre os dois povos no terceiro ato.
Como se não bastasse, embora tente – e até consiga – estabelecer identidade e ambições próprias no primeiro ato da narrativa, o roteiro de Destin Daniel Cretton, Dave Callaham e Andrew Lanham logo começa a ceder às velhas convenções da Marvel, como a obrigação de fazer menções a eventos de filmes anteriores (mesmo que estas nada acrescentem à trama) e trazer participações especiais que servem apenas para lembrar o espectador de que aquele longa faz parte do MCU – e, para piorar, a narrativa peca ao oscilar loucamente entre explosões de ação e longas passagens expositivas (muitas delas em flashbacks), quebrando o ritmo principalmente a partir do segundo ato. Em compensação, desta vez o senso de humor habitual da Marvel mostra-se mais equilibrado do que em outras ocasiões: sim, há piadas que não funcionam (especialmente aquelas ditas por um certo personagem-surpresa que retorna após sei lá quantos anos/filmes), mas, no geral, as tentativas de provocar o riso surgem orgânicas e eficazes, não anulando a urgência do que vinha antes.
Eficiente ao retratar a personalidade jovial e dinâmica de Shang-Chi sem permitir que isto o transforme num mero irresponsável (ou – pior – numa sombra dos adultos que o cercam, como acontecia com o Peter Parker de Tom Holland), Simu Liu confere graça e carisma a um protagonista que, mesmo preso a um arco batido (o garoto inconsequente que terá que aprender a ser mais responsável e blábláblá), soa autêntico em sua vontade de evoluir e de preservar não só o bem estar, mas a honra dos que estão à sua volta. E, se Meng’er Zhang encarna bem as dores e os dilemas reprimidos de Xialing, Awkwafina faz um milagre ao impedir que Katy se torne um alívio cômico irritante (como tantos outros da Marvel), surgindo divertida na maioria de suas piadas e genuína no carinho que nutre por Shang-Chi. Para completar, o veterano Tony Leung cria um vilão surpreendentemente trágico e multifacetado – e, se por um lado repreendemos pesadamente as atitudes agressivas e megalomaníacas de Wenwu, por outro não deixamos de compreender e, principalmente, lamentar suas motivações.
Já como representante do gênero “ação”, Shang-Chi se mostra mais irregular: sim, as coreografias fogem do lugar-comum ao adotarem o kung fu como base e há um esforço de imaginação notável na forma com que objetos de cena (um laptop, um casaco, etc) se transformam em armas nas mãos dos personagens – e gosto particularmente de como o diretor Destin Daniel Cretton retrata o primeiro embate entre Wenwu e Ying Li como um momento romântico em vez de intenso, soando mais como dança do que como pancadaria. Por outro lado, Cretton tropeça feio ao mergulhar boa parte destas cenas na mais absoluta escuridão, o que, somado aos cortes rápidos e aos movimentos de câmera excessivos, desperdiça as boas coreografias ao torná-las praticamente impossíveis de se enxergar, comprometendo, em particular, toda a sequência nos andaimes de um prédio à noite e, claro, o clímax envolvendo duas criaturas gigantes num céu nublado. Além disso, há momentos que carecem de inspiração e que parecem saídos de qualquer outro filme da Marvel (o plano que traz o herói pulando de um vagão de ônibus a outro, por exemplo, soa reciclado do trecho similar de Pantera Negra no qual T’Challa saltava entre dois carros).
Favorecido pela boa trilha de Joel P. West, que resgata ritmos e percussões que remetem a estilos orientais sem cair em estereótipos ofensivos, Shang-Chi é talvez a primeira produção da Marvel em um bom tempo a quase conseguir estabelecer uma identidade própria. Só espero que, da próxima vez, possamos ao menos enxergar com clareza os feitos extraordinários dos – sim, interessantes – personagens apresentados aqui.