Lydia Tár é uma artista sem igual. PhD em Musicologia, professora de piano em uma das universidades mais conceituadas de seu ramo e conhecida por gravar as nove sinfonias de Gustav Mahler, a musicista em questão se tornou a primeira mulher a reger a Filarmônica de Berlim e é uma das pouquíssimas figuras femininas a alcançar o EGOT (ou seja: a vencer o Emmy, o Grammy, o Oscar e o Tony). Mais do que isso: basta escutar uns poucos minutos de qualquer entrevista concedida por Tár para perceber a incontestável paixão desta pela Arte com que trabalha, citando os nomes que a influenciaram, os causos envolvendo estes e as teorias que conhece sobre linguagem musical com um entusiasmo que contagia e salta aos olhos – e o fato de ser tão excepcional em sua área é, na verdade, consequência de décadas de profundo (e constante) estudo sobre Teoria, Prática e História musicais. Negar o talento e a potência de Tár, portanto, seria quase um terraplanismo.
Lydia Tár é, também, uma alma fria e eticamente corrompida. Por trás das cortinas, ela não hesita, por exemplo, em submeter seus alunos a humilhações nada pedagógicas que criam um clima instável durante suas aulas e que ora encostam na beirada do assédio moral, ora a ultrapassam totalmente. O pior, contudo, é que Tár é uma mulher que se utiliza de seu cargo de condutora para aproximar-se de alunas/pupilas que lhe chamam a atenção a fim de criar uma relação com estas, chegando ao cúmulo de enfiar na orquestra uma menina que, pelos regulamentos da Filarmônica, nem deveria ser considerada para uma posição tão alta – e mais: colocando-a à frente de uma outra violoncelista que, em nome da lógica, seria a candidata óbvia e natural àquela cadeira. Aliás, o trato de Tár com as pessoas ao seu redor é tão destrutivo que, dizem, motivou uma de suas ex-parceiras a se suicidar.
A propósito: Lydia Tár não existe, sendo uma criação totalmente ficcional do cineasta Todd Field. No entanto, é uma personagem construída com tamanha riqueza de detalhes que se torna injusto não usá-la como ponto de partida para algumas reflexões sobre certas figuras do mundo real.
Terceiro longa-metragem escrito e dirigido por Todd Field (os anteriores foram Entre Quatro Paredes e Pecados Íntimos, este último lançado há dezessete anos), Tár acompanha a musicista-título prestes a publicar sua autobiografia Tár on Tár e a lançar um álbum com as gravações ao vivo das composições de Mahler – um álbum que será disponibilizado num formato cuidadosamente escolhido pela artista para corresponder àquela que seria, na sua visão, a experiência ideal. Casada com a violinista de sua orquestra e mãe de uma criança pequena, Lydia Tár conta com a ajuda imprescindível da assistente Francesca, que lhe ajuda a organizar sua rotina profissional, mas também lhe fornece amparo pessoal. Porém, tudo começa a se complicar na vida de Tár após uma série de comportamentos anti-éticos e especulações (falsas ou verdadeiras) sobre sua conduta virem à tona, misturando-se ainda ao suicídio de Krista, uma acordeonista que manteve relação íntima – e, pelo jeito, tóxica – com a protagonista.
A partir daí, Tár mergulha de cabeça numa discussão que anda cada vez mais em voga, mas que, paradoxalmente, parece cada vez mais longe de uma conclusão: a possibilidade (ou não) de se separar o artista de sua obra – afinal, é possível seguir consumindo e admirando o material produzido por um ser humano pessoalmente repugnante? (Só de fazer esta pergunta, uns quinze exemplos diferentes já me vieram à mente.) O curioso é que, embora adentrando nestas questões, este trabalho de Todd Field não se propõe a bater o martelo de forma definitiva e/ou irrefutável sobre nenhuma delas, reconhecendo o tal debate como algo infinitamente mais complicado e dotado de nuances do que as redes sociais, em sua superficialidade padrão, nos fazem acreditar que é. Assim, a estratégia que Tár escolhe é a de fazer jus à complexidade do tema que aborda, dedicando seus 158 minutos a nos convencer de que a protagonista é uma musicista digna de efusivos aplausos, mas também um ser humano (em sua vida privada) frequentemente repreensível.
Dedicando a primeira hora de projeção a nos provar minuciosamente por que devemos considerar Lydia Tár uma artista fabulosa (independentemente do que achemos dela a nível pessoal), Field é hábil ao estabelecer como o imenso histórico de conquistas da protagonista (todas listadas na abertura do longa, que a mostra dando uma entrevista para o escritor Adam Gopnik) provém do vasto conhecimento (teórico e prático) que a musicista tem sobre a Arte que domina – conhecimento este que, como fica claro em cada palavra e entonação conferida por Cate Blanchett (numa das melhores performances de sua já brilhante carreira), é motivado por uma paixão absoluta e genuína pela Música em si, sendo notório como as defesas de Tár sobre teorias e técnicas específicas soam sempre aficionadas (mas não a ponto de tornarem-se cegamente emocionadas) e como as filosofias que adota/emprega sobre Arte acabam pautando, de modo geral, seu jeito de ser e enxergar o mundo. Além disso, Field dedica um tempo de tela considerável a mostrar, numa ordem bem encadeada, como se dá o processo criativo da personagem-título e de onde vem suas inspirações (primeiro, a vemos escutar um barulho que fica em sua cabeça; depois, a vemos ouvir outro som que complementa aquele de certa forma; mais tarde, ela elabora um meio de usá-los até, por fim, transformá-los em prática), o que é importante para que tenhamos acesso a um panorama completo de quem a artista Lydia Tár.
Desta maneira, torna-se impossível, para o espectador, negar a potência criativa daquela mulher – o que se contrapõe, por outro lado, ao recorrente desconforto que sentimos diante das atitudes constantemente tóxicas que ela toma em sua vida privada e que atingem diretamente aqueles que a cercam, deixando o público numa difícil posição de apreciar a criação de uma pessoa problemática. Convencida de que seu status renomado lhe dá o direito de adotar uma pose superior e de encarar os demais de cima para baixo, Lydia Tár é uma figura obviamente soberba – e a força de seu ego encontra sustentação no fato de frequentemente a vermos em cena diante de espelhos (o da sala, o retrovisor do carro ou qualquer tipo de vidro que a reflita), sempre reafirmando a ideia de que tudo aponta para dentro dela; tudo (inclusive, ela própria) é direcionado para ela. Além disso, a conduta de Tár é pautada pela manipulação frequente dos sentimentos que os outros nutrem por ela: se aqui ela buscará um carinho que será prontamente fornecido (afinal, todas ao seu redor a amam ou a admiram), ali ela partirá subitamente para a frieza ou, pior, para um jogo mental a fim de fazer os outros sentirem-se culpados por… qualquer que seja a razão.
Todas estas virtudes do filme ao construir este retrato de Tár, claro, são alcançadas também pelo trabalho de Cate Blanchett, que faz por merecer todo o destaque que vem recebendo nesta temporada de premiações e encarna a protagonista com uma entrega que a faz soar não como “uma personagem interpretada por Cate Blanchett”, mas como… Lydia Tár – e o cuidado da atriz ao trazer esta artista à vida é tão minucioso que se atenta a detalhes como gaguejadas durante uma entrevista (que provém não de nervosismo, mas de algo que lhe veio à mente do nada e que ela decide voltar para casualmente comentar), maneirismos que ressaltam seu tato com os instrumentos que toca e pequenos gestos que demonstram suas constantes contradições (ora legítimas, ora partes de manipulações).
E, ainda assim, o linchamento ao qual é submetida e que leva a consequências desastrosas não pode ser classificado como “justo” ou “razoável”, já que nasce de ou de mentiras, ou de meias verdades. Sim, Lydia Tár é um ser humano cruel e de conduta imperdoável – e não dá para dizer que não tenha “cavado a própria cova”, ao menos em certo grau –, mas há um limite de veracidade nas acusações feitas contra ela. Com isso, o filme adota a interessante estratégia de levar o espectador a desgostar de Tár para, lá na frente, sentir-se compelido a defendê-la minimamente, reforçando, no processo, como o tópico é bem mais delicado do que fingem ser.
Fotografado por Florian Hoffmeister numa paleta sempre cinzenta e sufocante, impedindo que qualquer traço de alegria se manifeste naquele universo seco e melancólico, Tár é uma obra cuja abordagem visual/narrativa, embora adotando estratégias tecnicamente ambiciosas, entende cada decisão estilística não como mero exibicionismo, mas como algo a contribuir com a proposta geral do longa – e gosto particularmente de como uma das aulas lecionadas por Tár é enfocada através de um longuíssimo plano sem cortes que, mesmo oferecendo um desafio para todos os envolvidos, é rodado com o intuito claro de potencializar a tensão daquele momento, evitando chamar a atenção para si mesmo.
Tornando-se cada vez mais angustiante e inquieto à medida que se aproxima do fim (aliás, o fato de seus 158 minutos passarem voando é mérito também do encadeamento fluído e tenso criado pela ótima montagem de Monika Willi), Tár é um filme ambicioso, hipnotizante e maduro ao discutir seus temas. E é bem revelador que as primeiras lágrimas que vemos sair dos olhos da protagonista (mesmo após passar por tantas situações que as justificariam) surjam apenas nos minutos finais da projeção.
O que as motiva? Um discurso que vê numa fita VHS sobre o poder da Música. Afinal, o desperdício cometido por Tár ao adotar as condutas que adotou não faz seu amor pela Arte que fazia transparecer menos.