Ambientado num universo frio e opressor onde ninguém parece se sentir exatamente confortável em habitar, o longa apresenta o submundo de Nova York como um lugar intimidador e que exibe de maneira desavergonhada aquilo que a sociedade procura evitar ou esconder por considerar imoral, indo de cinemas pornô abundantes até absurdos imperdoáveis como prostituição infantil. Neste processo, Scorsese idealiza Travis Bickle como uma figura complexa e completamente atípica: ao mesmo tempo em que sente um repúdio inquestionável, o personagem cuja profissão dá nome ao filme também expõe uma forte atração pelas pessoas e costumes comuns, descrevendo a realidade em que vive como uma imundice sem deixar de tentar interagir com outros indivíduos como se buscasse compreender mais a fundo a normalidade.
E claro que, sendo um sujeito que não tem muitas noções básicas de convivência, Bickle é fracassado em diversas ocasiões, chegando ao constrangimento de levar uma namorada a um cinema pornô sem má intenção alguma e se esforçar (sem êxito) para desfazer o erro através de um telefonema – o que dá origem a uma das sacadas visuais mais inteligentes e famosas da carreira de Scorsese, onde o cineasta afasta a câmera e não apenas poupa o espectador de experimentar parte do embaraço da situação encarada por Travis como ainda enfoca uma porta aberta que oferece uma pequena vista para o mundo exterior, como se o diretor sutilmente dissesse que a vida do protagonista consiste mesmo naquilo que ele enfrenta nas ruas. Além disso, é curioso que o Bickle não saiba direito como expressar seus sentimentos acerca da realidade em que vive, algo que reforça o fato de que o personagem é claramente desajustado não somente nos meios sociais, mas em sua própria mentalidade (como comprova seu diálogo com o senador Palantine, onde o taxista reclama da “podridão” e do “cheiro” da cidade levando o político a crer que ele está se referindo à poluição).
Com isso, Travis (um sujeito tremendamente racista e misógino, diga-se de passagem) começa a elaborar uma forma de ser reconhecido pela população sem a intenção de ser necessariamente altruísta – na verdade, seu real objetivo é ganhar notoriedade por uma ação que a sociedade julga justiceira. Sociedade esta que, graças à eficácia de Scorsese, do diretor de arte e dos figurinistas, é sempre ilustrada através da cor vermelha, seja nas paredes da repartição onde os apoiadores de Palantine atuam, nas caixas de leite ou até mesmo nas luzes que enchem o rosto de Bickle no início e no fim da projeção. E se as duas principais conversas que o personagem tem com representantes do sexo feminino (a primeira, uma adulta interpretada por Cybill Shepherd; a segunda, uma adolescente que é obrigada a se prostituir e é vivida por Jodie Foster em início de carreira) ocorrem numa lanchonete e trazem o motorista tratando as duas como “donzelas em perigo”, isto indica o quão cíclica e circular é a lógica de Travis Bickle, que não só subestima a força das mulheres como ainda se oferece para “salvá-las”.
Mas claro que este estudo de personagem dependeria de uma atuação à altura para que funcionasse verdadeiramente – e acredito que aqui reside um dos maiores momentos da carreira de Robert De Niro, que transmite a sociopatia de Bickle mantendo uma expressão neutra que sempre dá a entender que ele está fora de sintonia (e a loucura contida em seus olhos é igualada apenas pelo seu sorriso que jamais deixa de soar insano, destacando-se também a fixação intensa com que ele se distrai observando um remédio diluído num copo). Para completar, não há como não se impressionar com o treinamento a que Travis se submete para agir como um “justiceiro”, chegando a queimar a carne de seu corpo para fazer com que os músculos tornem-se mais rígidos e chamando a atenção desde a montagem perspicaz que retorna ao início do discurso do protagonista quando ele comete alguma gafe até a emblemática cena onde o taxista encara um espelho e questiona “You’re talking to me?” (frase esta que se tornou popular ao ponto de levar De Niro a repeti-la desastrosamente no horroroso As Aventuras de Alceu e Dentinho).
Em suma, Taxi Driver é uma obra pesada e angustiante que reflete a natureza infeliz do universo imundo onde Travis Bickle segue dirigindo seu táxi buscando reconhecimento e entender como opera a sociedade que desperta nele um desprezo tão grande quanto o interesse. É, Martin Scorsese é mesmo um gênio.