Mesmo antes de ganharem uma popular série animada nos anos 1990, os X-Men já prometiam invadir as telonas há um tempo – uma promessa que nem o sucesso dos Batmans de Tim Burton incentivou a tornar-se realidade. E, com o melancólico fim da quadrilogia do Homem-Morcego (com o inexplicável Batman & Robin), os grandes estúdios de Hollywood perderam suas esperanças nas adaptações de HQs. Entretanto, a Marvel insistiu e, depois de lançar o bem-sucedido Blade: O Caçador de Vampiros, motivou a 20th Century Fox a se arriscar na empreitada, concedendo ao diretor Bryan Singer (Os Suspeitos e O Aprendiz) o desafio de trazer aos mutantes à vida. O resultado veio em 2000 na forma de X-Men: O Filme, uma produção responsável não apenas por gerar continuações, prequels e spin-offs, mas por promover toda a ascensão dos heróis de HQs no Cinema.
Escrito por David Hayter, o roteiro tem início com o senador conservador Robert Kelly propondo uma lei que obrigará todos os mutantes a se registrarem, tornando públicas suas habilidades num mundo em que são escorraçados pela sociedade. Após isso, saltamos para o núcleo onde a mutante de dezessete anos Marie D’Ancanto (ou Vampira), após ter acidentalmente posto seu namorado em coma, foge e conhece Logan (ou Wolverine). Depois que Ciclope e Tempestade os levam à Escola para Jovens Superdotados, a dupla é abrigada pelo líder da instituição, o professor e telepata Charles Xavier, cujo maior sonho é viver num mundo em que humanos e mutantes convivam em harmonia. Do outro lado, temos a Irmandade de Mutantes encabeçada por Magneto, um sujeito capaz de manipular metais e cujo maior desejo é ver os mutantes assumindo controle da Terra e os humanos tornando-se subservientes a eles.
Diferenciando-se de bobagens como A Volta do Incrível Hulk, O Justiceiro, Howard: O Super-Herói, Quarteto Fantástico (poderiam ser todos, mas no caso me refiro apenas à versão de 1994), Supergirl e Batman & Robin, este X-Men traz como diretor Bryan Singer, que, homossexual assumido, retrata o preconceito contra os mutantes como uma clara alusão à homofobia, ao racismo e a outras formas de ódio a minorias que existem no mundo real. Com isso, todo o subtexto que envolve a opressão desferida pela Humanidade contra os homo superior torna-se a grande riqueza do longa – em dado momento, a Mística vira-se para o senador Kelly e, numa de suas pouquíssimas falas no filme, diz: “Graças a pessoas como você, eu tinha medo de ir à escola quando criança“.
Além disso, Singer e Hayter nos apresentam a uma série de diálogos e discussões que, até então, eram impensáveis em produções sobre super-heróis: logo nos primeiros minutos, o senador Kelly afirma que há uma garota em Illinois capaz de atravessar paredes e questiona “o que a impede de entrar num cofre, na Casa Branca ou em nossas residências?” – o que levanta um monte de indagações interessantes: como seriam as nossas vidas se seres superpoderosos vivessem entre nós? Deveríamos nos proteger ou seríamos protegidos por eles? Assim, Singer torna o preconceito contra mutantes ainda mais realista, tornando-o uma questão delicada que sempre divide opiniões.
Ao mesmo tempo, não deixa de ser interessante notar o cuidado que o roteiro e a direção tiveram ao conceber os personagens e seus arcos dramáticos – e é curioso que frequentemente os heróis apareçam manifestando real desespero e até uma certa culpa diante de suas condições, vendo-se menos como pessoas “especiais” e mais como aberrações (a Vampira, em particular, é a que mais sofre neste sentido). O melhor de tudo é constatar que, no processo, Hayter e Singer conseguiram manter um pé na realidade e fizeram de X-Men um dos filmes de heróis mais maduros e realistas já produzidos, apesar, é claro, de toda a fantasia envolvida.
Fora isso, o longa se sai igualmente bem na escalação de seu elenco e (como já dito) no desenvolvimento de seus personagens: mesmo com suas radicais diferenças físicas em relação ao original dos quadrinhos, Wolverine é o integrante mais carismático do grupo e é beneficiado por um roteiro que trata seu passado como um mistério a ser resolvido no futuro, ao passo que o australiano Hugh Jackman o retrata como um herói interessante não pelas garras de adamantium ou pelo fator de cura, mas pelo carisma que conferiu a ele – e, apesar da nítida redução de sua selvageria característica das HQs (afinal, é um filme “para a família”), Logan é sem dúvida alguma o mais divertido de todos os personagens desta produção. Já Anna Paquin cria uma Vampira com complexos conflitos internos e que sente-se culpada por ser uma mutante – e, se Halle Berry pouco tem a fazer como Tempestade (o que é uma pena), Famke Janssen concebe Jean Grey como uma mulher focada em objetivos nobres e altruístas.
Todavia, os dois pilares do filme são Charles Xavier e Erik Lehnsherr: beneficiado pelo desempenho sempre excelente de Patrick Stewart, o Professor X é um sujeito experiente, sábio e cujas motivações possuem embasamento, resultando numa interpretação verossímil do personagem – e seu sonho de ver humanos e mutantes convivendo em paz soa verdadeiro, já que o bom-caráter de Xavier é ilustrado com maestria por Stewart. Enquanto isso, Magneto torna-se um antagonista absolutamente fantástico por conta de sua ideologia complexa e de suas motivações tratadas com maturidade pelo ótimo roteiro: contando com a performance imponente do grande Ian McKellen, o Magneto deste filme não pode ser descrito exatamente como vilão, já que suas motivações estão entre as mais densas que já apresentadas por um filme de super-heróis – e a sequência inicial, que mostra parte de sua terrível infância, ajuda a colocar o espectador do lado do antagonista. A interação entre Xavier e Magneto, por sinal, funciona em função do fato de os dois jamais se verem como inimigos, mas como colegas de ideologias opostas, mas que ainda assim se respeitam.
Ainda assim, X-Men é imperfeito – e se a formação da equipe mostra-se interessante, é uma pena que os membros da Irmandade de Mutantes (fora Magneto, obviamente) soem vazios e unidimensionais (o Groxo, em especial, é ridículo). E, se a trilha sonora de Michael Kamen surge apática e genérica, desperdiçando até mesmo o icônico tema da animação dos anos 1990, o roteiro também peca ao enfraquecer o personagem de Ciclope, um líder que, aqui, não demonstra liderança alguma (um erro que nem os esforços de James Marsden conseguem corrigir).
Mas estes são defeitinhos pontuais que jamais tiram o brilho de X-Men, um longa respeitável e que torna-se ainda mais louvável por se sobressair com relação à maioria das produções hollywoodianas, dando prioridade à concepção de uma trama elaborada e de personagens multidimensionais. Por isso, a produção merece aplausos e segue importante na História dos filmes de super-heróis.