Obs.: diferente da maioria das minhas críticas, ESTA CONTÉM SPOILERS!
Pouco tempo depois de ser impactada por uma tragédia inacreditável, Annie Graham resolve sair para tentar esfriar a cabeça – embora saiba, no fundo, que o peso em sua consciência não permitirá que isto aconteça. Enquanto dirige por aí, a mãe acaba encontrando uma conhecida que, na tentativa de iniciar uma conversa, insiste em relembrar o horror que Annie experimentou recententemente. Ao assistir a esta cena – presente em Hereditário, novo longa de terror produzido pela A24 –, me dei conta de algo inesperado: sim, eu estava verdadeiramente angustiado diante da situação, mas o que causou essa angústia não foram espíritos ou jump scares. O que me fez ficar apreensivo nesta cena foi o simples fato de que, na tela, havia uma mulher ferida e traumatizada que era continuamente impedida de pensar em qualquer coisa que não fosse… o trauma em si. Isto é algo apavorante.
Só esse detalhe diz muito sobre as proezas conquistadas por Ari Aster, que, já em seu primeiro filme, exibe uma sensibilidade que parece pertencer a um cineasta dos mais experientes. Neste sentido, o cineasta segue os passos de Jordan Peele (Corra!) e John Krasinski (Um Lugar Silencioso), outros dois nomes que despontaram ainda em seus longas de estreia. Roteirizado também por Aster, Hereditário se passa na casa da família Graham, que recentemente presenciou a morte da avó Ellen e, agora, consiste apenas em Annie, seu marido Steve, seu filho adolescente Peter e sua caçula Charlie. A partir daqui, é difícil falar mais sobre o que acontece na trama sem tocar em spoilers, portanto direi apenas que mais uma tragédia ocorre entre os Graham e coisas estranhas vão se desenvolvendo nesta família. O que são estas “coisas estranhas”: doenças psicológicas ou atividades sobrenaturais?
Adotando uma estrutura linear, mas que mesmo assim dificulta um pouco a identificação dos clássicos “três atos” (existe um início, um meio e um fim, mas saber onde um termina e o outro começa não é tão simples aqui), Hereditário surpreende ao passear entre dois gêneros distintos de maneira ousada: por um lado, o longa é um exemplar inquestionável do Terror; por outro, se desconsiderarmos os elementos que o caracterizam como tal, o longa funciona perfeitamente como um drama que discute pesadamente uma série de temas humanos. Não é à toa que, ainda no primeiro ato, me peguei surpreso diante de uma reação que o filme despertou em mim: a de comoção – e se fiquei incomodado ao ver o constrangimento pelo qual Charlie foi obrigada a passar, confesso que acompanhar a dor sentida por Annie logo após a tal tragédia que citei anteriormente foi uma das coisas mais impactantes que presenciei no Cinema em 2018.
Da mesma forma, Hereditário é igualmente bem-sucedido ao se encaixar no campo do terror: investindo numa atmosfera que lembra O Bebê de Rosemary, o diretor Ari Aster não se rende à tendência óbvia dos jump scares que passou a dominar o gênero de uns trinta anos para cá, criando mais um exemplar do que algumas pessoas vêm chamando de “pós-terror” – ou seja: filmes que estabelecem o horror a partir não de sustos, mas do clima angustiante que permeia a narrativa (pensem em A Bruxa, Ao Cair da Noite e A Ghost Story, todos produzidos pela mesma A24). (De minha parte, encaro esta definição de “pós-terror” como uma grande besteira, já que o Terror produz filmes calcados mais em atmosfera do que em sustos desde sempre – os clássicos do Expressionismo Alemão estão aí para provar –, mas… enfim.) Claro que, ao seguir este caminho, Aster certamente levará grande parte do público médio – acostumado aos sustinhos artificiais e fáceis de sempre – a estranhar o resultado final, chegando talvez a repudiá-lo porque “não dá medo”; mas a verdade é que… isso não interessa, pois a qualidade do material é o que realmente importa e, neste sentido, o cineasta merece todos os aplausos possíveis, já que conseguiu construir, em Hereditário, uma atmosfera perfeita que mantém o espectador constantemente inquieto mesmo sem saber ao certo o porquê desta inquietação. Essa ambientação incômoda, fúnebre e opressiva está presente do início ao fim da projeção, ocorrendo principalmente graças ao apego do público pelos personagens que fazem parte da obra (sem este drama, o terror não se concretizaria e o terceiro ato se resumiria à escatologia gratuita).
Por falar em terceiro ato, é curioso notar como Hereditário consegue saltar de um gênero a outro de maneira fluída e consistente, adicionando com cuidado, na metade da projeção, os conceitos sobrenaturais que levarão o drama ao horror – e ao chegar no ato final, Aster finalmente vê a oportunidade de se entregar à escatologia convencional do Terror sem culpa alguma (e o fato de usá-la de modo autoral talvez a impeça de ser tão convencional assim). Desta forma, quando a tela passa a ser dominada por rios de sangue, corpos apodrecidos, pessoas incendiadas e atividades paranormais que induzem certos personagens à autoflagelação, o espectador se choca ao presenciar tais coisas basicamente porque tudo aquilo foi guardado para o final (a carpintaria dramática que conduziu o filme àquele clímax foi progressiva). Além disso, se o design de som faz um excelente trabalho ao ressaltar o silêncio que é eventualmente quebrado por ruídos sutis (e que tendem a potencializar a tensão do que está sendo mostrado), a fotografia de Pawel Pogorzelski revela-se brilhante ao empregar sombras dentro de uma trama que envolve assombrações e prováveis ilusões de ótica (sabe quando você acha que viu uma silhueta no escuro e, ao acender a luz, descobriu que não havia nada ali? Isso está presente no filme.).
Mas no fim o que faz a diferença em Hereditário é… sua humanidade (e volto a avisar: NÃO siga lendo esta crítica se quiser evitar SPOILERS!). Sim, existem maldições, espíritos e pessoas possuídas no roteiro de Ari Aster, mas o que chama a atenção mesmo é a maneira como discute temas bem mais mundanos – e a morte talvez seja o primeiro deles, pois a narrativa já começa com o falecimento da avó Ellen e, mais tarde, a pequena Charlie torna-se vítima de um destino fatal. Aliás, é curioso constatar como ambas as mortes geram reações completamente diferentes nos Graham: se a perda da avó não parece impactar tanto assim a família, pois era de certa forma esperada (afinal, tratava-se de uma idosa que já não contava mais com uma saúde das melhores), a notícia de que uma menina foi decapitada em um acidente obviamente eclode de modo avassalador. Em Hereditário, vemos o luto acontecer a partir de duas óticas distintas: na primeira, ele nada mais é que um ponto final que chegou no momento previsto e, portanto, foi tratado como algo quase prosaico; na segunda, ele chega como um soco inesperado no estômago e, com isso, faz jus ao medo que a morte costuma gerar nos seres humanos.
Outro assunto-chave no roteiro de Aster é a loucura, que nada mais é que mais um dos horrores primordiais do ser humano – e Hereditário mostra muito bem o porquê de ser deste jeito, já que praticamente todos os personagens são forçados a lidar com a insanidade de maneiras variadas, seja carregando uma perturbação ou convivendo com alguém que o faça. Assim, os Graham são concebidos como uma família que apresenta distúrbios psicológicos como se estes fossem uma herança (daí vem o título do filme, como podem perceber), desde a demência de um até a esquizofrenia de outro. No meio disso tudo, surge um personagem curioso: Steve, o marido de Annie. Como veio de outra família, o sujeito é essencialmente isento destes desequilíbrios naturais dos Graham; o que se reflete em seu ceticismo – leia-se: a recusa de acreditar naquilo que Annie enxerga. Conforme a narrativa avança e as situações ao seu redor vão ficando cada vez mais estranhas, porém, Steve aos poucos perde a sanidade e se converte em mais um membro inquestionável da família Graham (e essa transição é conduzida com eficácia por Gabriel Byrne, que, do segundo para o terceiro ato, parte da impaciência amargurada e culmina o choro desesperado).
O que nos traz a Toni Collette… Bom, se seu trabalho não for reconhecido em nenhuma premiação no fim do ano, é porque não há mais justiça no mundo. Encarnando Annie numa figura mal resolvida com praticamente tudo e que há muito abriga a depressão – e isto é notável –, Collette se aprofunda com precisão em cada uma das várias nuances da personagem: no começo, fica claro que o falecimento de sua mãe não parece tê-la atingido tanto, pois a relação que manteve com Ellen no passado definitivamente não foi das melhores; o que vai de encontro com o impacto que a morte de Charlie gerou em Annie, já que o evento fez ela expor, pela primeira vez no filme, um sentimento mais explosivo e menos contido. Isto torna-se ainda mais evidente na sequência ambientada num jantar, onde Collette exemplifica com maestria a dor e a frustração que Annie carrega consigo e que, em certos instantes, a leva a dizer coisas horrorosas para o filho. Para completar, o contato com o sobrenatural acaba trazendo a esperança de que tudo vai se resolver – e, mais tarde, essa esperança sentida por Annie é transformada no mais puro pavor.
Por sua vez, Alex Wolff vive Peter como um jovem que, no primeiro ato, encara situações com as quais qualquer um que passa ou já passou pela adolescência poderá se identificar (ele se interessa por uma colega de turma e vai a festas a fim de beber com os amigos, por exemplo). O que é interessante, no entanto, é observar como essa personalidade jovial de Peter se mostra presente quando coisas nem um pouco comuns começam a acontecer em sua vida – e não é de se estranhar que o rapaz se entregue a gritos aterrorizados e nunca compreenda de fato o que está ocorrendo ao seu redor. Mas não só: além de carregar o peso de ter presenciado a morte de Charlie, o adolescente ainda se enxerga como uma espécie de “filho preterido”, já que a menina era a neta mais apegada à avó Ellen e – o mais determinante – Annie afirma, com todas as letras, que não pretendia ter dado à luz a Peter (e se arrepende em seguida).
Já que falamos em Charlie, esta é um dos elementos mais importantes da obra: interpretada com sutileza e intensidade por Milly Shapiro (que certamente tem uma carreira promissora pela frente), a menina desde o princípio exibe claras dificuldades de se comunicar; algo que se reflete não só nos desenhos que rabisca em seu caderno, mas na incômoda sequência onde a garota vai a uma festa e se isola do início ao fim (só de pensar no desfecho dessa cena sinto pena da pobre menina). Em qualquer outro filme menos inspirado, Charlie se resumiria ao típico rótulo da “criança bizarra que apavora os adultos e o público” (como acontece em O Grito e O Chamado) – e ao lembrar do rosto de Milly Shapiro em Hereditário, não sinto medo, mas uma leve vontade de chorar. Acho que isso é o suficiente para provar o sucesso tanto de Aster quanto de Shapiro (que, vale apontar, constrói a atmosfera sombria que gira entorno de Charlie através de maneirismos precisos e objetivos, vide seu olhar profundo, sua performance corporal sempre rígida e, claro, o estalar que faz com a boca).
Por fim, há uma questão interessante no roteiro de Ari Aster: afinal, quem é o protagonista de Hereditário? (Pela terceira vez: os SPOILERS estão liberados!) Bom, Charlie surge em cena apenas no primeiro ato e serve mais para mover os arcos dos demais personagens, então… não é ela – nem Steve, embora este seja o que mais próximo que o filme tem a oferecer de um avatar do espectador. Resta somente Annie e Peter: a primeira é a que conta com o maior tempo de tela e, dos dez momentos mais importantes da narrativa, uns oito pertencem a ela; em compensação, Peter é dono do que talvez seja o arco dramático mais bem definido da trama, pois é o único que, no final, ganha uma recompensa (depois de ser o “preterido” da família”, o rapaz descobre ser ninguém menos que o líder para quem os Graham deverão se curvar). O rosto presente no plano que encerra a projeção é o de Peter, mas não também não devemos descartar o fato de que a maior parte do filme se focou em Annie. Eu ainda apostaria mais nela.
Funcionando também como um retrato de como uma família torna-se disfuncional quando sucumbe aos seus maiores horrores (seja a morte ou a perda da sanidade), Hereditário não é só um dos melhores filmes de terror produzidos nos últimos anos; é, também, um dos melhores filmes de 2018. Seja o gênero que for.