“Desculpe, garoto. Isso você nunca vai conseguir.”
É o que Mike Ehrmantraut responde a Jesse Pinkman ao ouvi-lo dizer que, após recomeçar sua vida do zero, tentará “fazer as coisas direito“. Este diálogo, presente logo na primeira cena de El Camino, já estabelece a ideia que definirá o filme inteiro: a de que o caminho no qual os personagens foram atirados é um caminho sem volta. O tráfico de metanfetamina, os momentos de tensão ininterrupta, os crimes que foi obrigado a cometer, as mortes de pessoas queridas (em especial, a da namorada Jane Margolis) e o cárcere pelas mãos de supremacistas brancos lançaram Jesse em uma situação tão comprometedora que, agora, a única opção que lhe sobrou é a de retornar à estaca zero. E é justamente isto o que qualquer um que tenha assistido a Breaking Bad poderia supôr para o destino de seus personagens, já que a trajetória percorrida por eles consistia em uma deterioração aparentemente irreversível.
Escrito e dirigido pelo próprio Vince Gilligan, o criador de Breaking Bad (e de Better Call Saul), este filme começa imediatamente após o desfecho da série original, quando Jesse Pinkman foi finalmente libertado pelo ex-sócio Walter White (este, por sua vez, já tinha completado a sua transformação em canalha insensível que só traria dor e sofrimento para os que estavam ao seu redor, buscando realizar uma última boa ação antes de morrer como um monstro). Antes de tocar o barco, no entanto, Jesse precisa resolver algumas pendências finais com o passado, reencontrando uns personagens que só complicarão ainda mais sua jornada e outros que talvez o ajudem em seu principal objetivo: deixar tudo para trás e iniciar uma nova vida.
Aliás, o contraste entre o passado e o presente não poderia ser ilustrado de forma mais apropriada: ainda nos primeiros minutos, quando vemos o protagonista diante de um rio enquanto pensa em “ajeitar tudo“, o montador Skip Macdonald faz questão de cortar bruscamente desta imagem para outra que, situada alguns meses depois, traz Jesse berrando de desespero enquanto foge num carro. Ao mesmo tempo, seus traumas são apresentados de maneira objetiva e econômica, sendo notável, por exemplo, o raccord que associa uma chuveirada tomada por Pinkman no presente a um jato de mangueira sendo disparado em sua direção no passado. As memórias de quando sofreu nas mãos dos sequestradores, portanto, seguem marcadas no imaginário do rapaz – e, ao dizer isto, não me refiro somente às cicatrizes em suas costas, mas também ao fato de sua personalidade ter se tornado bem mais contida (não há espaço para frases como “Yeah, science, bitch!“). Neste sentido, a composição de Aaron Paul merece aplausos por manter a discrição e a sutileza sem parecer no piloto-automático, retratando Jesse como um moleque que segue medroso e manipulável (como sempre foi), mas que ainda assim surpreende ao exibir uma postura firme e durona nos momentos mais urgentes (algo que, inclusive, um dos vilões faz questão de reconhecer).
Infelizmente, o roteiro de Vince Gilligan raramente consegue disfarçar o fato de ter sido concebido com um único propósito: matar a saudade que os fãs têm por Breaking Bad – mesmo sem ter nada de particularmente novo para mostrar. Assim, a impressão que fica é a de que El Camino está sempre em busca de uma história para contar, já que, na prática, não há muito que justifique um retorno orgânico ao universo criado por Gilligan. Neste sentido, a estrutura adotada pelo roteiro – que intercala a trama no presente e um monte de flashbacks inéditos – se revela problemática, pois soa como uma tentativa desesperada de esconder sua incapacidade de desenvolver uma narrativa nova ao longo de duas horas contínuas. Não é à toa, inclusive, que vários destes flashbacks surgem desinteressantes e descartáveis, chegando ao ponto de interromper a história no presente justo quando ela parecia prestes a engrenar (a tentativa de Jesse de buscar uma resolução com seus pais, por exemplo, traz um potencial dramático imenso, mas que acaba não sendo suficientemente explorado, já que o tempo todo o filme prefere dar mais espaço a estes flashbacks).
Mantendo a lógica estilística de Breaking Bad ao resgatar vários elementos visuais que sempre compuseram a linguagem e o universo daquela obra (como o plano-detalhe do chuveiro, os time lapses pontuais, um celular de flip que remete aos aparelhos dos anos 2000 e até mesmo um rack focus centrado em uma arma que me lembrou de um similar no piloto da série original), a direção de Vince Gilligan exibe uma disciplina notável ao construir tensão nos momentos-chave da narrativa, destacando-se três específicos: aquele em que Jesse passa sorrateiro por uma porta antes que o faxineiro o flagre; a longa sequência em que dois policiais (ou “policiais”) fazem uma vistoria num apartamento; e o duelo entre o protagonista e um dos principais vilões do filme (aqui, Gilligan demonstra ter aprendido bem as lições ensinadas pelos mestres do Faroeste). Por outro lado, os momentos bem humorados nem sempre funcionam da forma desejada – e aquele envolvendo Pinkman e uma ligação hipotética para a polícia, em especial, tropeça ao estender demais uma piadinha previsível por natureza.
Já o retorno de alguns personagens icônicos de Breaking Bad tem seus altos e baixos – e, a partir daqui, sugiro que só continue a leitura quem já tiver assistido ao filme. Sim, as participações de Badger e Skinny Pete encontram funções orgânicas dentro da narrativa e Gilligan demonstra um imenso cuidado ao ilustrar a volta de Ed Galbraith ao mantê-lo desfocado no início da cena, preparando seu reencontro com Jesse. No entanto, se Jane é deixada para aparecer somente nos segundos finais da projeção (o que é decepcionante), a esperada sequência que traz Walter White contracenando com o protagonista é conduzida de forma tão artificial que acaba parecendo mais uma cena de sonho do que um flashback, empregando uma iluminação que retrata “Heisenberg” quase como um anjo e trazendo diálogos frágeis de ambos os personagens.
E é frustrante que, no fim das contas, os últimos cinco minutos do filme sejam justamente aqueles que mais tinham potencial dramático, narrativo e criativo, fazendo o espectador perceber como as quase duas horas anteriores ficaram aquém do que poderiam ter sido. Isto, inclusive, quase me leva a torcer para que Gilligan volte mais uma vez a este universo e nos apresente a um El Camino 2 só para explorar o que ficou de fora aqui – e se digo “quase”, é porque ainda há um lado dentro de mim que acredita que só este filme já prolongou Breaking Bad mais do que o bastante.