Durante a primeira metade de Retrato de uma Jovem em Chamas, demorei a entender exatamente quais eram as intenções da cineasta Céline Sciamma, já que a narrativa em si era conduzida com um claro distanciamento e as ideias discutidas por cada cena nem sempre me pareciam muito objetivas. Mas aí, uma mudança na dinâmica entre as protagonistas levou a história para um caminho novo e surpreendentemente tocante – o que me fez concluir, portanto, que toda a frieza presente na primeira metade do longa fazia parte de uma construção cuidadosamente planejada por Sciamma, refletindo o estado de espírito das personagens e mostrando como o envolvimento e a paixão são fatores determinantes no trabalho de um artista. E perceber isto não só me fez apreciar mais a primeira metade da narrativa em retrospecto como também me deixou simplesmente encantado por toda a construção dramática do filme como um todo.
Dirigido e escrito por Céline Sciamma, Retrato de uma Jovem em Chamas se passa na França em pleno século 18 e nos apresenta a Marianne, uma jovem pintora que, após ser convocada por uma condessa para retratar sua filha Héloïse em um quadro que será enviado para possíveis pretendentes em Milão, se hospeda na ilha na qual elas moram. Enquanto acompanha o dia a dia de Héloïse, tentando capturar sua essência antes de pintar o tal quadro, Marianne percebe que a tarefa será mais complicada do que imaginava, pois a jovem prestes a ser retratada é bem mais distante e fechada do que poderia supor. No entanto, à medida que o tempo vai passando, a condessa viaja e deixa Marianne e Héloïsse sozinhas na ilha – o que, aliado ao fato de elas já estarem começando a se dar bem, torna propícia uma aproximação maior entre as duas.
Investindo em uma abordagem contemplativa, carregada em silêncio e que mergulha o espectador no dia a dia distante e pausado de ambas as personagens, Céline Sciamma constrói com cuidado a transição da primeira metade da projeção para a segunda, abandonando aos poucos a frieza e a objetividade que marcaram os 60 minutos iniciais e se revelando cada vez mais afetuoso do meio para o fim. Neste sentido, a fotografia de Claire Mathon desempenha um papel fundamental ao complementar a abordagem de Sciamma, evocando uma beleza estética que, além de atraente por natureza, também serve para indicar de onde vem a inspiração para o talento de Marianne – o mesmo se aplica aos figurinos de Dorothée Guiraud, que, obviamente guiados pelo padrão luxuoso do século 18, se contrastam na medida certa e criam uma harmonia visual que se reflete nas pinturas da protagonista.
O papel de Marianne, por sinal, não poderia ter encontrado uma intérprete mais apropriada do que Noémie Merlant: dona de dois olhos grandes e incrivelmente expressivos, a atriz consegue, a partir disso, denotar o fascínio da pintora diante de tudo que a cerca, como se isto (a potência de seu olhar) absorvesse o mundo ao seu redor e se convertesse em inspiração para suas obras – e gosto particularmente de como a composição de Merlant é sutil, dispensando muletas de atuação óbvias e transmitindo curiosidade, frustração, raiva ou afeto através de um detalhe minimalista aqui e outro, ali. Enquanto isso, Adèle Haenel faz um trabalho igualmente soberbo ao encarnar Héloïsse, uma jovem que, a princípio, demonstra uma aversão tremenda a qualquer possibilidade de contato com outro ser humano justamente por temer o que o mundo exterior tem a lhe oferecer – algo que a performance de Haenel faz questão de ilustrar através de seu semblante quase sempre fechado e reservado, sendo particularmente notável como, mesmo depois de se afeiçoar a Marianne e começar a manifestar mais emoções, Héloïsse ainda carregue um pouco de impassibilidade em seu olhar.
Aliás, o simples fato de Retrato de uma Jovem em Chamas girar em torno de duas mulheres que se envolvem em pleno século 18 é louvável por si só – afinal, se hoje a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo dividirem uma relação amorosa já é vista com preconceito e discriminação, imaginem há 300 anos. Da mesma forma, é fascinante perceber o interesse de Céline Sciamma em quebrar a condição submissa da mulher daquela época, o que é comprovado não só pela total ausência de homens na trama, mas também pela irrelevância deste detalhe; as mulheres aqui discutem suas naturezas de igual para igual e avançam seus arcos dramáticos sem dependerem de intervenções masculinas (e, por mais que ambas eventualmente venham a se casar com alguém do sexo oposto no futuro, a memória mais marcante e romântica de suas sempre será – como atestam os cinco minutos finais da projeção – a delas mesmas).
Mas o fator que mais propicia a relação entre Marianne e Héloïsse – e que mais me encantou no filme como um todo – é… o amor à Arte. Em suas primeiras tentativas, a pintora falha em capturar a essência da jovem retratada no quadro por um simples motivo: como a relação entre as duas era pautada pela mais pura frieza, a artista acabou não tendo afeto, valor ou envolvimento algum com o conteúdo da obra na hora de produzi-la. Não é à toa, portanto, que as tentativas de Marianne melhorem consideravelmente depois que sua dinâmica com Héloïsse ganha contornos mais afetuosos; quando um(a) artista dedica seu coração à Arte, o resultado se torna especial.
Neste sentido, Retrato de uma Jovem em Chamas me lembrou um pouco o lindíssimo Guerra Fria, de Paweł Pawlikowski: ambos são filmes excepcionais que giram em torno de casais que se formam justamente por se dedicarem às obras que tanto amam criar. Se tem algo que tanto Marianne e Héloïsse quanto Zula e Wiktor são capazes de comprovar é que a Arte aproxima pessoas.
Esta crítica foi escrita como parte da cobertura do Festival do Rio 2019.