“Pai, Filho e Casa Gucci”, diz a socialite Patrizia Reggiani (interpretada por Lady Gaga) em dado momento do filme que recapitula toda a história de amor, traição e crimes que teve com Maurizio Gucci (neto do fundador de uma das lojas de roupas mais famosas – e caras – do mundo). Uma frase tola e artificial dita por uma personagem que, da primeira cena à última, é obviamente retratada pelo longa como uma caricatura. Até aí, tudo bem: o fato de se tratar de uma composição caricatural não pode ser encarado como problema quando o propósito da obra é este – e cada vez mais venho evitando a tentação (bem comum em críticas) de usar expressões como “caricato”, “melodramático” ou mesmo “clichê” como adjetivos necessariamente pejorativos (quando o faço, sempre tento explicar por que acho que não funcionam dentro do contexto daquela obra específica). No entanto, quando a fala ridícula de Patrizia surge em Casa Gucci, o filme ao seu redor parece enxergá-la não como uma frase de efeito cartunesca, mas como um mantra a ser levado a sério, como um indício real do poder sagrado da família Gucci.
Em outras palavras: não, o problema de Casa Gucci não está no fato de seus personagens serem caricaturas completas; está no fato de seu diretor, Ridley Scott, tentar enfocá-los sob uma ótica solene demais, como se o tom do filme jamais comportasse os indivíduos que o protagonizam.
Segundo trabalho de Scott em menos de dois meses (o anterior foi O Último Duelo, sendo impressionante a produtividade do cineasta aos 83 – quase 84 – anos de idade), Casa Gucci conta a história real do envolvimento de Patrizia Reggiani (Gaga) com a família italiana dos Gucci, cujo avô, Guccio, fundou em 1921 a loja que carrega seu sobrenome. Em 1970, a socialite conheceu Mauritzio (Driver) e iniciou um namoro com ele – o que, apesar da antipatia do pai Rodolfo Gucci (Irons), não impediu os dois de permanecerem juntos, se casarem e constituírem família. Assim, ao longo de mais de 20 anos, Patrizia foi parte da “Casa Gucci” e esperava que, com a morte de Rodolfo, a função de presidir seu império caberia naturalmente a Mauritzio. No entanto, quando o patriarca falece e chega a hora de decidir quem tomará conta da empresa, a tarefa é incumbida Aldo (Pacino), irmão de Rodolfo e pai de Paolo (Leto) – o que leva Patrizia a bolar e executar um plano para colocar Mauritzio contra o tio e o primo e, com isso, apropriar-se da presidência da Gucci. O fim que isso leva é algo que prefiro manter em sigilo (mesmo acreditando que não existe spoiler de uma história real); basta dizer que a situação foi escalonando tanto ao longo das décadas que culminou em um assassinato.
Povoado por personagens de caráter duvidoso e descomprometidos com a ética (como a própria Patrizia reconhece), Casa Gucci é bem-sucedido ao estabelecer o mundo dos Gucci (e dos ricaços em geral) como uma realidade paralela e distante que há muito foi totalmente corrompida pela ganância (mais riquezas; mais fama; mais ostentações) e na qual as interações humanas se resumem basicamente a dinheiro, poder de compra e utilidade imediata, transformando até a mais inocente das relações em uma disputa de poder e não deixando espaço para que nenhum sentimento genuíno que um manifeste pelo outro dure por muito tempo – não sendo à toa que a fotografia de Dariusz Wolski (colaborador habitual de Ridley Scott) adote a velha estratégia de constantemente encobrir metade dos rostos dos atores em sombras a fim de ilustrar a ambiguidade de suas índoles. Com isso, os trabalhos do designer de produção Arthur Max e da figurinista Janty Yates deixam de soar como exposições do catálogo da Gucci (ou de qualquer outra empresa) e assumem a clara função de retratar o quão descolados os personagens estão da realidade, vivendo em prol da extravagância de seus itens e do tanto de dinheiro que neles gastaram.
Infelizmente, embora a beleza plástica de Casa Gucci reflita bem a superficialidade dos personagens, o filme em si obviamente tenta ser um pouco mais profundo e humano do que estes – e é aí que nascem os problemas do longa, já que nem Ridley Scott nem os roteiristas Becky Johnston e Roberto Bentivegna conseguem fazer jus às discussões e às ambições narrativas que propõem. A começar pelo fato de que, ao longo de 157 minutos de projeção, os realizadores salpicam uma série de pequenos assuntos (a longevidade da influência da Gucci; a necessidade que parte da sociedade sente em ostentar um produto de marca sem ter o dinheiro para adquiri-lo; o sucesso das falsificações de camelôs que nascem como consequência disso; a falta de importância que os homens da empresa dão à voz de uma mulher que resolve falar; etc) apenas para abandoná-los logo em seguida, resumindo todos os temas que tenta abarcar a uma ou outra frase rápida e partindo em direção ao próximo tópico (que, claro, é tratado com a mesma superficialidade). Neste sentido, é impressionante que um filme com mais de duas horas e meia de duração não consiga desenvolver nada do que ele mesmo propõe, soando vazio apesar da quantidade enorme de coisas que tenta abranger.
Mas não é só do ponto de vista temático que Casa Gucci soa superficial e inconclusivo: quando passamos a nos concentrar nos arcos dos personagens (que atravessa quase três décadas de história, afinal), a situação torna-se ainda mais frustrante. Jamais construindo a trajetória da derrocada da família Gucci de forma minimamente coesa, crescente e/ou compreensível, este é um daqueles filmes que, na ânsia de se articularem rápido, acabam deixando uma série de lacunas em sua narrativa, fracassando, por exemplo, em situar com clareza as “viradas de chave” (e as motivações destas) dos personagens: aqui, Patrizia é uma aproveitadora; ali, se torna uma injustiçada; num instante, resolve telefonar para uma vidente na tevê; pouco depois, não só conheceu pessoalmente como já virou amiga íntima daquela vidente; num instante, Mauritzio valoriza mais a família que qualquer outra coisa e enxerga Paolo, Aldo e toda a Gucci com desinteresse; algumas cenas depois, se assume como líder inescrupuloso capaz de dispensar Patrizia sem remorsos; o que a motiva a tomar uma decisão, digamos, drástica o bastante para merecer no mínimo uma construção mais sólida.
Ora, mas o que aconteceu entre um ponto e outro que desse respaldo a estas mudanças? Não se trata (apenas) de lógica, mas de construção dramática; se não entendemos o que provocou uma mudança brusca nos sentimentos de um personagem (como, por exemplo, deixar de amar o outro para subitamente cortejar sua morte), torna-se difícil acreditar que o sentimento em si seja genuíno – e, já que estamos falando sobre pontas mal amarradas e dramas mal desenvolvidos, nem comento o desastrado epílogo que tenta resumir apressadamente toda a conclusão daquela história. (Aliás, quando os tradicionais letreiros que resumem o destino dos biografados surgiram no fim da projeção, li que Aldo Gucci morreu em 1990 e constatei, surpreso, que a história contada nas duas horas e meia anteriores acabara em 1995 – ou seja: Patrizia, Mauritzio e o próprio filme não deram nem um pio sobre a morte de um personagem aparentemente tão importante para a narrativa?) Como se não bastasse, os vazios do longa se tornam ainda mais incômodos graças à montagem de Claire Simpson, que ajuda a eliminar de vez o pouco de coesão que restava à narrativa ao saltar de um núcleo a outro, de uma época a outra e de um país a outro quase que ao acaso, sem um encadeamento lógico, como se muito material entre uma cena e outra tivesse sido cortado de última hora e de qualquer jeito (e várias vezes tive a impressão de que certas sequências terminavam abruptamente antes do tempo pretendido).
Em compensação, se Casa Gucci ainda entretém moderadamente, isto se deve aos seus personagens absurdos – mesmo que o filme que os cerca nunca pareça reconhecê-los como tais. Em seu segundo papel de protagonista no Cinema (o primeiro foi na última versão de Nasce uma Estrela), Lady Gaga se diverte ao entender que Patrizia Reggiani é, em essência, uma caricatura, abraçando isso ao levar seus traços de personalidade (a cadência da voz; o sotaque típico; os tiques e maneirismos chamativos; etc) ao máximo do exagero – e com razão, pois este é o propósito do papel. E se Adam Driver encarna bem tanto o comportamento certinho de Mauritzio quanto a postura rígida que adota no terceiro ato (ainda que a transição entre ambas seja mal construída, como já falei), Jeremy Irons posiciona Rodolfo Gucci talvez como o menos cartunesco dos Gucci, mas também – e justamente em função disso – como o mais inescrupuloso deles, ao passo que Al Pacino tem a oportunidade de co-estrelar um dos momentos mais hilários do ano (aquele no qual descobre a burrada final de seu filho e, aos berros, ilustra maravilhosamente tanto a raiva pelo que aconteceu quanto a falta de surpresa diante da estupidez crônica de Paolo). Para completar, Jared Leto vive um personagem que, no início, me pareceu pavorosamente irritante, mas que aos poucos me conquistou em função do quão (me perdoem a palavra) escroto ele é: Paolo, um adulto mimado e patético que, por se achar intocável, parece viver num teatrinho constante – o que mais que justifica a atuação exageradíssima de Leto, sendo também um mérito do ator o fato de, ainda assim, nos fazer sentir pena de Paolo.
Pena também é o que sinto do filme como um todo. Sim, Ridley Scott entendeu que os personagens de Casa Gucci são cartunescos, mas a maneira sóbria e reverente com que os filma é tão incompatível com a persona destes que os faz soar deslocados num longa que, afinal, deveria ser sobre eles. Se embarcasse e refletisse a patetice escrachada dos Gucci em vez de enfocá-los sob uma ótica excessivamente austera, talvez o cineasta alcançasse um resultado tão divertido quanto os personagens que aborda.
É oficial: Ridley Scott agora tem a sua própria versão de Trapaça.
(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)