Belfast é o que acontece quando criamos uma cultura de idolatria a premiações que supostamente se propõem a celebrar os méritos (artísticos e técnicos) das melhores obras concebidas nos 12 meses anteriores, mas que, sob sua fachada glamorosa e exuberante de “festa do Cinema”, nada mais é do que uma máquina multimilionária de informes publicitários – algo que tem ficado mais claro com o passar dos últimos anos e, principalmente, após Bob e Harvey Weinstein reinventarem o modelo de campanhas para o Oscar com a Miramax nos anos 1990. O resultado disso não poderia ser diferente: todos os anos, são despejadas de forma massiva nos cinemas uma penca de filmes milimetricamente planejados para parecerem “íntimos”, “autorais” e “sensíveis” de alguma forma, mas que na prática são enlatados industriais criados sob demanda para abocanharem indicações ao Oscar e renderem dinheiro e visibilidade aos engenheiros que as arquitetaram.
Escrito e dirigido pelo britânico Kenneth Branagh, Belfast se passa na cidade que dá título ao filme e que é capital da Irlanda do Norte. Ambientado em Agosto de 1969 durante os conflitos entre católicos e protestantes, o longa se concentra na família do pequeno Buddy, um menino de nove anos que obviamente serve como avatar do próprio Branagh e observa todo aquele derramamento de sangue com os olhos ingênuos de uma criança, sem entender absolutamente nada do que está ocorrendo – e, com isso, o olhar de Buddy passa a ser o do filme, estendendo a ingenuidade do garoto a toda a maneira com que Branagh encara e revisita aqueles eventos históricos (parte dos problemas do longa já começam aí, mas discutirei isso adiante). Assim, a narrativa passa a acompanhar não só fragmentos da infância de Buddy (leia-se: Branagh), como também a escalada da tensão em Belfast e a decisão cada vez mais inevitável daquela família de… abandonar a cidade.
Aliás, para um filme que teoricamente se apresenta como uma recordação íntima, nostálgica e emocional das memórias do próprio autor por trás da obra, Belfast se revela surpreendentemente frio e impessoal – o que diz muito sobre toda a natureza do projeto e sobre as ambições gerais de Kenneth Branagh: durante 97 minutos de projeção, há cerca de duas ou três sequências nos quais o longa consegue despertar alguma emoção que soe remotamente real (todos girando em torno de Judi Dench ou Ciarán Hinds, com este último estrelando aquele que é de longe o meu momento favorito do filme, num hospital). Fora isso, não há uma única passagem em Belfast que não pareça dramaticamente vazia e distante, que não provoquem no espectador a absoluta apatia – e mesmo nos instantes em que Branagh tenta arrancar o riso ou o choro, a condução é tão friamente calculada que torna-se impossível envolver-se emocionalmente com o que vemos, como se o diretor seguisse à risca uma lista de “coisas obrigatórias para criar uma cena emocionante” sem perceber que o aspecto emocional de uma cena é impossível de ser alcançado quando o realizador segue um passo a passo com a frieza de um robô.
Pois tudo no longa opera assim, como se cada passo de Branagh tivesse como objetivo criar uma ponte para levá-lo ao Oscar – o que automaticamente confere a Belfast um rótulo do qual muitos tentam fugir, mas que aqui é inevitável: o de “Oscar bait” (ou, em tradução livre, “caça-Oscars”). De que adianta compor uma narrativa que revisita a infância de seu autor se, no fim das contas, o resultado soará menos como um relato nostálgico e mais como a simulação de um relato nostálgico (saudosismo in vitro)? Até a decisão de Branagh e do diretor de fotografia Haris Zambarloukos de rodar o longa em preto-e-branco parece tomada de acordo com uma cartilha (afinal, a Academia gosta de obras em preto-e-branco) – e, por mais que eu admire algumas escolhas de Zambarloukos (gosto de como a movimentação de câmera busca um dinamismo que foge à obviedade de acompanhar as cenas mais pacatas com lentidão e passividade absolutas), tudo em Belfast se limita a um exibicionismo barato e previsível, como atestam as cenas passadas em teatros/cinemas e que demarcam as obras apresentadas nestes como representações coloridas (ou seja: o mundo real é preto-e-branco, mas as peças e os filmes são coloridos).
Naqueles momentos, quase consigo enxergar Kenneth Branagh piscando para o público e dizendo: “Entenderam? É porque a Arte é fundamental na vida daqueles personagens e influente para Buddy. Por isso, ela é colorida enquanto o mundo real ao redor é todo preto-e-branco!” – uma obviedade que talvez me incomodasse menos se o assunto em si (como a Arte é transformadora para o protagonista) não parecesse tão deslocado dentro do filme. O que me traz a um dos grandes problemas de Belfast – e um dos principais responsáveis por tornarem-no tão inócuo e superficial: a completa confusão que cria com relação aos temas que pretende abordar e aos propósitos que motivam sua existência. Dividindo-se entre o contexto político do momento (a tensão entre católicos e protestantes) e cenas da infância alegre de Buddy/Branagh, o filme se obriga a dividir atenção entre um núcleo e outro, não conseguindo trazer foco ou profundidade a nenhum dos dois e enfraquecendo o impacto emocional/temático de ambos – afinal, temos pouco espaço para mergulhar no panorama histórico retratado e pouco tempo para nos afeiçoarmos emocionalmente aos dilemas de Buddy e sua família (até a relação do garoto com Cinema é construída de forma passageira demais, saindo-se um pouco melhor nas ocasiões mais sutis, como ao mostrá-lo em dado momento lendo despretensiosamente uma revista do Thor (sobre o qual Branagh viria a dirigir um longa 50 anos depois) na beira de uma calçada).
Ora, por mais que muitos critiquem (com certa razão?) a moralidade do mexicano Alfonso Cuarón ao relembrar tangencialmente o massacre de Corpus Christi em certo momento de Roma apenas para mover a história (convertendo um fato histórico brutal em mero recurso narrativo), ao menos lá havia a desculpa de que a maneira com que aquela situação se encaixava na trama ainda prezava por uma coesão estrutural, não soando deslocado do todo. Em Belfast, contudo, não só a moralidade de Branagh ao inserir os conflitos entre católicos e protestantes na história é facilmente contestável, como ainda parece enfiada à força no meio da narrativa, roubando a atenção dos outros assuntos que o cineasta busca discutir. E mais: a decisão de refletir a inocência do olhar de Buddy em praticamente todos os outros personagens (adultos) do longa e na própria forma com que Branagh aborda (e encena) o cenário sociopolítico daquele período mostra-se problemática, esvaziando completamente o peso de uma situação brutal (será que todo ano teremos um novo Jojo Rabbit?).
Esbanjando sua natureza “caça-Oscars” em cada canto das imagens que projeta, Belfast ao menos é favorecido pela presença do pequeno e fofo Jude Hill, uma revelação que transparece não só a inquietação e a inocência de Buddy, mas também a intensidade do medo de perder aquilo que mais ama em seu pequeno universo de nove anos de idade: a cidade na qual cresceu e pela qual é apaixonado.
Pena que o filme ao seu redor lhe conceda tão pouco espaço para brilhar.
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(Lembre-se: a pandemia não acabou. Se for sair de casa e ir ao cinema, siga todos os cuidados sugeridos pelas organizações sérias de Saúde: use máscara, mantenha uma distância segura dos demais espectadores, evite se aglomerar e – o mais importante – vá ao posto tomar sua vacina. Se já tomou a primeira dose, tome a segunda. Se já tomou a segunda e já chegou a vez de tomar a terceira, tome a terceira – se ainda não chegou, espere e vá assim que ela estiver disponível. É triste ter que escrever isto, mas… não escute o atual presidente da República (ou mesmo seu ministro da Saúde): vacine-se e proteja-se. Só assim conseguiremos construir um caminho para finalmente vencermos a COVID-19 e sairmos desta crise que ninguém aguenta mais. #ForaBolsonaro)