Assassinos da Lua das Flores é um filme que tinha tudo para dar errado, mas que, nas mãos de um cineasta como Martin Scorsese, acabou virando mais uma de suas várias obras-primas. Baseado no livro homônimo que o autor David Grann publicou em 2017 a partir de uma história real (e o fato de sê-la a torna ainda mais aterrorizante), o roteiro de Eric Roth e do próprio Scorsese reconstitui uma série de eventos entre 1919 e 1937 que começaram sob uma máscara de normalidade, mas aos poucos se apresentaram como verdadeira tragédia: após descobrirem uma vastíssima quantia de petróleo sob suas terras, os nativos do povo Osage enriqueceram fartamente com isso e, assim, chamaram a atenção de um grupo de homens brancos que se aproximaram para estabelecer uma relação de amizade – a ponto de dois indivíduos de ambos os grupos se apaixonarem e casarem, confirmando de vez um laço familiar entre as comunidades. Porém, à medida que os anos passaram, diversas – e silenciosas – mortes de membros da nação Osage foram ocorrendo em sequência e de modo misterioso.
Pois estas mortes, é claro, foram resultantes não de “coincidências”, mas de um extenso massacre encabeçado pelo político William King Hale, que planejava eliminar todos os Osage de maneira que parecesse “casual” (para não deixar quaisquer suspeitas) a fim de apossar-se, portanto, de todas as terras e riquezas pertencentes ao grupo que assassinou. Sim, o plano pode não ter dado certo até as últimas circunstâncias, já que os tais algozes terminaram todos descobertos e presos, mas, ainda assim, o genocídio da comunidade Osage chegou a uma estimativa de centenas de homicídios. Como Martin Scorsese, um homem branco que jamais teria como sentir na pele a realidade de um povo que passou por um processo tão bárbaro de apagamento cultural/civilizatório, poderia falar sobre isso?
A resposta: tendo consciência suficiente para entender que, sendo quem é, não pode falar em nome dos oprimidos, mas nem por isso deixa de ter um papel a executar, já que a luta contra a opressão é dever de todos – seja você o protagonista desta história ou não.
E aí, entra a decisão de Scorsese que me fez dizer, no início, que Assassinos da Lua das Flores tinha tudo naufragar: a de narrar a história sob o ponto de vista de… um homem branco pertencente ao grupo que exterminou os Osage – no caso, o veterano de guerra Ernest Burkhart, sobrinho de William King Hale. Convenhamos que seria muito fácil, para um realizador menos cuidadoso, tropeçar ao contar a história de um massacre sob a ótica de um algoz e, com isso, acabar exagerando nos esforços de humanizá-lo a ponto de suavizar suas atrocidades (há raríssimos casos em que empatia demais pode ser um problema).
Mas Scorsese, sendo o cineasta que é, tem experiência o suficiente para lidar com narrativas que girem em torno de figuras repugnantes (mas fascinantes) sem compactuar com suas ações e visões de mundo – afinal, estamos falando sobre o artista por trás de Taxi Driver, Os Bons Companheiros, Cassino, Touro Indomável, O Rei da Comédia, O Lobo de Wall Street e muito mais). Assim, não é surpresa que, embora o protagonismo de Assassinos da Lua das Flores – ou seja: a perspectiva que guia o espectador ao longo da narrativa – seja incutido num homem branco (aqui interpretado por Leonardo DiCaprio), o filme em si não poderia ser mais veemente ao denunciar as barbaridades cometidas por este mesmo lado da história e, principalmente, mais respeitoso em seu modo de tratar os nativos americanos e sua cultura, intensificando, com isso, o choque da tragédia de seu extermínio.
Neste sentido, ainda que o protagonismo da trama pertença a um personagem do lado dos vilões, a narrativa construída por Scorsese é inteligente ao conduzir o público por um caminho mais condizente com a percepção dos Osage sobre tudo que acontece: em vez de definir escancaradamente (e desde o princípio) quais são os bandidos e os mocinhos desta história, o cineasta prefere explorar os tons de cinza daquela relação a fim de torná-la mais complexa, mais surpreendente e, por consequência, mais impactante. Com isso, toda a primeira hora (das quase três e meia) de Assassinos da Lua das Flores envolve o espectador numa atmosfera inesperadamente aconchegante, pautando-se no afeto (que realmente havia) entre o protagonista Ernest e a indígena Mollie e num respeito supostamente mútuo entre os homens brancos e os nativos americanos. Sim, há sempre uma desconfiança quanto às intenções por trás de cada gesto de apreço e/ou cortesia feito por William King Hale, mas isso não impede, por exemplo, que interpretemos (erroneamente) um resquício de sinceridade no momento em que o personagem se desculpa com uma das irmãs de Mollie reconhecendo “Nós lhe causamos muitos problemas” (e, logo em seguida, invocando a ela uma oração em sua língua). Não por coincidência, exatamente o oposto ocorre com os Osage, que exibem, entre si e para com os demais, uma afeição e um carinho tão fortes – e, sim, insuspeitos – que, em certo momento, eu me senti acolhido como se fosse parte de sua família.
À medida que a história progride, porém, mais explícitas se tornam as reais intenções de King e seus homens – intenções estas movidas por um racismo que suas ações, como um todo, já evidenciariam ao fim da projeção, mas que também surge através de um ou outro comentário pontual que os capangas brancos deixam escapar (já King, por outro lado, investe numa abordagem bem mais sutil, ardilosa e que discutirei melhor depois). Assim, se no início a narrativa envolve o espectador num clima aparentemente afetuoso e dotado de calor sentimental, aos poucos Scorsese vai descortinando a barbaridade por trás daqueles gestos enquanto nos golpeia violentamente ao fazê-lo – e não é à toa que, além do choque por presenciar os crimes cometidos pela gangue de King ao longo de quase duas décadas, senti também culpa e vergonha por, lá atrás, ter cogitado alguma razoabilidade naqueles mesmos indivíduos (o que, contudo, se deve menos a um desvio de caráter meu e mais à maneira engenhosa com que Scorsese desenvolve a narrativa, mantendo-se vários passos à frente do público). Além disso, a denúncia feita pelo filme (sobre a injustiça histórica sofrida pelos nativos americanos) é tão eficaz que se lembra de detalhes que talvez passassem despercebidos, como o fato de que a condição de vida dos Osage era tão degradada pela estrutura social que se formou ao seu redor que, mesmo se eles se alimentassem tão bem quanto os homens de King, ainda assim desenvolveriam problemas de saúde (como diabetes) que eventualmente os levariam à morte.
Toda esta transição, por sinal, é refletida de modo soberbo pelos aspectos técnicos e estilísticos de Assassinos da Lua das Flores: se no início a fotografia de Rodrigo Prieto (que vem colaborando com Scorsese desde O Lobo de Wall Street) ajuda a exaltar a alegria dos Osage (como no plano em câmera lenta que os traz dançando e se banhando em petróleo, comemorando a descoberta do material em seus solos), o alcance de seu poder/influência (ao explorar, em tomadas aéreas grandiosas, a vastidão de suas terras) e a energia de seu mundo particular (através de uma paleta notadamente viva, que aproveita bem a intensidade de paisagens ensolaradas), aos poucos a narrativa passa a ser encoberta por cores cada vez menos vivas, por uma paleta cada vez mais dessaturada e por planos cada vez mais fechados (sejam em sequências externas ou internas) que terminam por construir uma atmosfera progressivamente sombria e, acima de tudo, sufocante.
Enquanto isso, a montagem de Thelma Schoonmaker (parceira de longuíssima data de Scorsese) começa investindo num dinamismo maior para, aos poucos, substituí-lo por um ritmo mais pausado, que permite que as cenas se prolonguem por mais tempo do que antes e, portanto, acentuem as dores, os lamentos e as introspecções do povo Osage. À medida que a narrativa avança, portanto, Assassinos da Lua das Flores vai se tornando mais cinzento, mais silencioso e mais… fúnebre, construindo uma atmosfera geral que, no fim das contas, soa praticamente como um réquiem. Da mesma forma, a trilha sonora de Robbie Robertson (que faleceu pouco antes do filme ser lançado) se mantém não só esteticamente bela, mas também respeitosa ao povo indígena ao trazer para sua composição cantos, instrumentos e percussões obviamente resgatados da cultura dos nativos – e, ao mesmo tempo, Robertson pontua várias cenas com batidas incessantes que ajudam a compor um clima de tensão e instabilidade, como se algo estivesse errado (ou prestes a explodir) sem que soubéssemos exatamente o que é.
Contando ainda com trabalhos irrepreensíveis da figurinista Jacqueline West e do diretor de arte Jack Fisk, que reconstituem com precisão o contexto histórico que situa a trama e – ainda mais importante – ilustram de modos sutis as diferenças e combinações dos estilos dos povos que se encontram, Assassinos da Lua das Flores não funcionaria, contudo, sem o brilhantismo do trio principal de seu elenco. Para começar, Leonardo DiCaprio compõe Ernest como um homem patético (seu jeito de falar, em especial, entrega todas as limitações intelectuais e culturais do sujeito, que, além de burro, não parece carregar um repertório dos mais profundos), mas, curiosamente, isso não anula suas contradições/complexidades emocionais: sim, ele é um ladrão ganancioso, apaixonado por dinheiro, mas, ao mesmo tempo, nutre real simpatia pelos Osage e, claro, amor por Mollie – o que, por outro lado, não significa que DiCaprio e Scorsese tentem aliviar a culpa do personagem, que é totalmente consciente dos esquemas dos quais participa e responsável pelos crimes que comete (e gosto particularmente da sutileza com que Ernest demonstra a perda de seu respeito por William Hale no terceiro ato, fazendo questão de chamá-lo apenas de “Bill” em vez de “King” – em tradução literal, “rei” – pela primeira vez). Quanto a Robert De Niro, creio que o maior atestado do sucesso de sua performance está no fato de levar o espectador (como já discuti) a acreditar nas palavras de apoio, cumplicidade e carinho que diz aos Osage no começo, soando (falsamente) sincero ao manifestar arrependimento pelos males que seu povo causou aos nativos – e, se depois suas ambições cruéis tornam-se indisfarçáveis, isso se dá menos por demonstrações explícitas de ódio e mais por gestos pequenos, silenciosos (como se ele soubesse que suas falas mansas e “amigáveis” já não enganam mais ninguém, mas insistisse em dizê-las por puro cinismo).
Porém, é mesmo Lily Gladstone quem rouba Assassinos da Lua das Flores para si – e, se a atriz já vinha em franca ascensão ultimamente, agora chegou a hora de ela virar uma estrela absoluta. Não que o papel em questão seja particularmente simples; na verdade, é tão desafiador que torna-se fácil de ser subestimado ou – pior – confundido com mera “inexpressividade”, já que, em vez de se entregar a modos expansivos, reações chamativas e/ou tons de voz elevados, Mollie é uma mulher essencialmente introspectiva, que assume uma posição de espectadora (ou seja: totalmente passiva) diante dos eventos que lhe cercam, refletindo precisamente o estado contido – e em lenta deterioração, sem ter o que fazer para combatê-la – da personagem. Imprimindo simpatia através de gestos pequenos no início, indignação através de sua expressão cerrada mais à frente e pesar por perceber-se impotente com relação ao caos testemunhado ao final, Gladstone permeia cada uma destas “etapas” com uma melancolia (subjacente ou explícita) que espelha a própria condição dos nativos americanos perante o avanço dos colonizadores brancos. Além disso, a atriz traz uma imensidão de sentimentos conflitantes/complementares a Mollie através de um sutil movimento de canto de boca aqui e um minúsculo aperto nos olhos ali – e as proezas que Gladstone alcança só com o olhar são impressionantes, saindo da intensidade que complementa seu sorriso no começo (numa combinação que ajuda a tornar a personagem ainda mais adorável) até chegar num semblante mais fechado que demarca bem a separação entre sua dor e seu ódio (que ela assume sentir, mesmo tentando “fechar o coração e manter o que há de bom”).
(A partir daqui, o texto trará detalhes importantes sobre os minutos finais do filme. Se você quiser evitar spoilers, sugiro que interrompa a leitura por aqui e a retome depois de assistir ao longa.)
E, assim, mais uma vez uma obra de Martin Scorsese termina com um protagonista que amargura a culpa dos crimes que há muito tem cometido e que trouxeram consequências graves – e irreversíveis – para pessoas que ama(va). De certa maneira, não deixa de ser curioso que o desfecho de Assassinos da Lua das Flores estabeleça uma conexão com o de O Irlandês, trabalho anterior do cineasta (e que terminava com o protagonista Frank Sheeran solitário, num quarto de hospital, sob o peso de uma vida inteira de truculências): se a filmografia de Scorsese constantemente acompanha sujeitos repugnantes, capazes dos piores atos de desumanidade imagináveis, o diretor não teme condená-los ao único destino que suas ações lhes poderiam trazer: o da derrota completa, sem espaço para glamour nem nada do tipo.
Faz todo o sentido, portanto, que Assassinos da Lua das Flores termine como uma farsa true crime que, no entanto, expõe todas as problemáticas do tal gênero: não, não há nada de “divertido” em relembrar tragédias reais – e, se estas foram espetacularizadas por uma indústria inteira (a ponto de o caso da mulher da casa abandonada, por exemplo, virar entretenimento para milhões de internautas), é porque falhamos no processo de preservar a memória de tais crimes sem diluir o choque destes. Para Scorsese, o conceito de “denúncia” não se deve confundir com o de “exploração”, separado por uma linha tênue; é preciso ter cuidado ao abordar um caso como o dos Osage, que, por mais bárbaro que tenha sido, até hoje permanece relativamente pouco conhecido e torna necessário que, quase um século depois, um dos maiores cineastas vivos da contemporaneidade faça um filme para apontar um holofote sobre a questão.
Que o diretor assuma uma postura explícita a ponto de ele próprio surgir em cena nos minutos finais de Assassinos da Lua das Flores para ler a notícia da morte de Mollie (num dos melhores e mais emocionantes desfechos que já filmou) é um atestado não só de sua genialidade como artista, mas de seu compromisso moral e histórico ao encenar um “crime real” e, então, clamar por justiça.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: