Não vou fingir ser capaz de identificar todas as maneiras como Bela Vingança reflete a mulher na sociedade, as problemáticas que compõem seu dia a dia (em função da estrutura sexista do mundo que a cerca) ou mesmo a forma como o Cinema, seus gêneros e subgêneros tendem a retratá-la. Já falei sobre isso em outras ocasiões: eu, como o homem que sei que sou, não tenho como compreender a realidade feminina na pele, já que nunca terei como sentir exatamente o que é ser diminuído em prol de quaisquer atributos físicos ou retribuir uma cantada escrota e inconveniente por medo de que esta, ao ser rejeitada, possa escalonar até virar uma violência física ou mesmo uma morte – e é justamente isso que torna um filme como Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, por exemplo, tão revelador para mim, me permitindo enxergar uma visão de mundo diferente da minha e aspectos de nossa estrutura social que acabavam me escapando.
Neste sentido, Bela Vingança não poderia ser mais eficiente – mesmo se confundindo às vezes – ao literalmente esfregar na cara dos vilões (homens) da narrativa tudo aquilo que cometem na vida real, sendo apenas apropriado que, ao ouvir de um deles a pergunta “Você sabia que ser acusado de algo que não cometeu é o maior medo de um homem?”, sua resposta seja um curto e objetivo “E você sabe qual é o maior medo de uma mulher?”.
Estreia da britânica Emerald Fennell na direção de longas, Bela Vingança gira em torno de Cassie Thomas, uma mulher de 30 anos que, graças a um trauma motivado por um colega de faculdade que usou sua posição de privilégio para fazer os demais alunos e a reitora da faculdade duvidarem de sua palavra, decidiu largar os estudos e os sonhos que tinha para a vida, continuando a morar com os pais e dedicando-se a um emprego monótono numa cafeteria. Em contrapartida, Cassie é também uma moça esperta, que sabe elaborar planos e situações complexas – e, com isso, seu passatempo favorito torna-se frequentar casas noturnas e fingir-se de bêbada para atrair a atenção de homens que queiram estuprá-la, pegando-os de surpresa ao revelar-se sóbria, consciente e pronta para revidar qualquer ataque. Porém, com a volta de um antigo colega de faculdade, Cassie acaba descobrindo o nome do indivíduo responsável por seu trauma e pela tragédia ao redor deste, articulando, portanto, uma longa estratégia para punir o cara e, de quebra, responsabilizar todas as pessoas que aliviaram sua barra no passado.
(A propósito: Bela Vingança é uma tradução bem infeliz do original Promising Young Woman – que seria Jovem Promissora –, já que implica num julgamento moral acerca das ações da protagonista e falha em perceber que estas são motivas por um desejo não de vingança, mas de justiça.)
Demonstrando segurança e controle impressionantes logo em seu projeto de estreia, Emerald Fennell toma, em Bela Vingança, uma série de decisões (narrativas, estéticas e temáticas) que tinham tudo para dar errado, mas que acabam funcionando surpreendentemente bem em função da clareza com que a cineasta enxerga seus objetivos. Não que o filme em si não tropece ao buscar uma forma de conciliar todas as suas ideias – e talvez seja por isso que, durante boa parte do primeiro ato, a narrativa soe um pouco dispersa, como se apenas saltasse de situação em situação e demorasse a encontrar uma história na qual se concentrar.
Ainda assim, Bela Vingança é um longa que desde o início faz jus à mentalidade da própria protagonista, mantendo-se sempre alguns passos à frente do espectador a fim de impedi-lo de antever o que Cassie fará a seguir ou o que o restante da cena que acompanhamos nos reservará. Não, o comportamento nojento e imoral dos homens não chega a nos surpreender em função do que já nos habituamos a esperar deles no mundo real, mas as atitudes (que não deixam de ser reações) da protagonista diante de cada uma das pessoas que a destruíram no passado, sim, nos pegam desprevenidos justamente por proporem uma correção prática do problema, esfregando-o na cara de todos aqueles que nele se envolveram – e, além disso, estas cenas que mostram a execução de cada uma das etapas no plano de Cassie servem também para colocar o público em dúvida sobre o caráter da (anti-)heroína, nos fazendo indagar se a “vingança” era de fato o melhor caminho e nos aliviando ao esclarecer, no decorrer da cena, que na verdade se tratava mesmo era de (alguma) justiça.
A direção de Emerald Fennell, inclusive, é ousada ao investir em uma atmosfera que beira a irreverência e em uma identidade visual cujas cores beiram a leveza – duas decisões que poderiam facilmente comprometer a gravidade dos temas abordados pelo filme, mas que acabam fortalecendo-os em parte ao refletir o ponto de vista da própria Cassie, com suas referências pessoais, diante do mundo e de suas próprias atitudes. Pois o fato é que, ao contrário de obras como Green Book e Jojo Rabbit, que se propunham a discutir (ou “satirizar”) temas urgentes e delicados como racismo e nazismo, mas os esvaziavam por completo ao submetê-los a uma abordagem fofinha de feel good movie, o longa de Fennell emprega as cores a estilização pop como forma de aconchegar o espectador e deixá-lo despreparado para o choque que virá a seguir, tornando este ainda mais impactante – e, sempre que o filme parece prestes a sucumbir a uma auto-paródia espertinha, algo aparece para nos devolver brutalmente à realidade (como aquilo que acontece na virada do segundo para o terceiro ato). Neste sentido, a utilização da icônica “Toxic”, de Britney Spears, em uma versão sombria, alongada e desafinada não poderia refletir melhor as ambições estilísticas do projeto, transformando um hino pop em uma composição macabra e inquietante.
Bela Vingança, aliás, é mais um daqueles filmes que farão boa parte do público masculino reclamar “Ora, mas todos os homens da trama se comportam como completos imbecis e fazem/falam coisas absurdas demais para serem reais”, falhando em perceber que, afinal, tudo aquilo que está na tela – por mais clichê que possa parecer (os operários do outro lado da rua que assoviam, perguntam a Cassie “quanto (o sexo com ela) custa?” e pedem que ela “mande um sorrisinho”; o almofadinha que, depois de levar um fora de Cassie, retorna ao seu local de trabalho no dia seguinte para se provar capaz de conquistá-la; os babacas na balada que a avistam de longe e a tratam como “carne nova no pedaço”; etc) – apenas reflete a realidade como ela é. E o mais interessante é perceber como o filme não se concentra necessariamente nos tipos mais óbvios de machistas: há também os mais patéticos; os que se julgam desconstruídos e, por isso, merecem ser recompensados com sexo (como é o caso daquele vivido por Christopher “McLovin” Mintz-Plasse, que se define como “nice guy” mesmo estando prestes a estuprar Cassie); os que se acham no direito de se vitimizar por levarem um toco; os que se eximem da responsabilidade por um estupro alegando “só estarem filmando”; os que aparecem para defender o amigo estuprador dizendo que “Não é sua culpa”; e por aí vai. Da mesma forma, o longa encontra espaço para mostrar como as mulheres também podem reproduzir atitudes opressoras e/ou serem cúmplices de uma barbaridade: a mãe de Cassie, por exemplo, vive tachando-a de “fracassada” em vez de ajudá-la a superar um trauma – que, por sua vez, partiu de um crime acobertado (entre várias outras pessoas) por uma amiga da protagonista e pela reitora de sua faculdade.
Aliás, é justamente por se mostrar tão cuidadoso e consciente na maior parte do tempo que Bela Vingança acaba desapontando um pouco ao chegar no personagem de Alfred Molina, que aqui vive o advogado que, no passado, livrou a cara do homem que – só prossiga com a leitura quem já tiver assistido ao filme – estuprou Nina (a melhor amiga de Cassie) ao levar para o tribunal um monte de informações (fotos, posts, mensagens) que fizessem o juiz acreditar que a vítima era “vagabunda”, “que, pelas roupas que usava, estava ‘pedindo’ para ser abusada”. Ora, estamos falando de uma das figuras centrais por trás da violência toda; afinal, foi o indivíduo que olhou para uma vítima óbvia e tratou de humilhá-la e transformá-la em culpada a fim de limpar a barra de um criminoso – e, talvez pelo caso similar da influenciadora Mari Ferrer ainda estar tão recente na memória, confesso que a ideia de ser justo este personagem o único a, no filme, ganhar uma redenção e a anistia de Carrie, chegando ao ponto de voltar para ajudá-la a concluir seu plano no terceiro ato, me deixou um gosto amargo na boca.
O que nos traz ao desfecho da narrativa (de novo: spoilers à frente): por um lado, o absurdo da situação (que obviamente exigiu uma série de conveniências para acontecer) não poderia ser mais condizente com a personalidade que a protagonista vinha exibindo desde o começo (sim, isto é um elogio), surpreendendo o espectador com uma artimanha que, de tão implausível, só poderia ter sido planejada por uma heroína como Cassie; por outro, não deixa de ser estranho que um filme que dedicou quase duas horas a lembrar como o sistema judicial dos Estados Unidos é falho e estruturado para proteger abusadores (como fez com Al, o estuprador de Nina) de repente vire a chave e se encerre com a polícia prendendo o cara, deixando subentendido, com isso, que a justiça foi feita – e ignorado o fato de Al ser homem, branco, rico, já ter se livrado da Justiça outra vez e, principalmente, ter recursos para se livrar de novo.
Em outras palavras: ao contrário do que o filme faz parecer, Cassie não saiu vencendo. Pelo contrário: foram precisas as mortes de duas mulheres para que um estuprador fosse preso – e, ainda assim, com a garantia de que fosse absolvido mais uma vez.
Assim, o desejo de terminar a narrativa numa catarse acaba criando uma contradição entre algumas das questões que Bela Vingança levantou durante todo o seu decorrer. O que não significa, porém, que tenha eliminado os muitos méritos deste belo filme ou mesmo que não me tenha feito admirar mais uma vez a perspicácia e a noção estratégica de Cassie, a justiceira.