Bela Vingança (4)

Título Original

Promising Young Woman

Lançamento

13 de maio de 2021

Direção

Emerald Fennell

Roteiro

Emerald Fennell

Elenco

Carey Mulligan, Bo Burnham, Alison Brie, Clancy Brown, Jennifer Coolidge, Laverne Cox, Chris Lowell, Alfred Molina, Connie Britton, Adam Brody, Max Greenfield, Christopher Mintz-Plasse, Sam Richardson, Molly Shannon, Steve Monroe, Angela Zhou, Francisca Estevez, Austin Talynn Carpenter e Emerald Fennell

Duração

113 minutos

Gênero

Nacionalidade

EUA

Produção

Emerald Fennell, Margot Robbie, Josey McNamara, Tom Ackerley, Ben Browning e Ashley Fox

Distribuidor

Universal Pictures

Sinopse

Todos diziam que Cassie era uma jovem promissora, até que um evento misterioso destruiu abruptamente seu futuro. Mas, nada na vida de Cassie é o que parece ser: ela é perversamente inteligente, tentadoramente astuta e vive uma vida dupla secreta à noite. Agora, um encontro inesperado está prestes a dar a Cassie a chance de corrigir os erros do passado nesta história emocionante e extremamente divertida.

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Bela Vingança | Crítica

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Não vou fingir ser capaz de identificar todas as maneiras como Bela Vingança reflete a mulher na sociedade, as problemáticas que compõem seu dia a dia (em função da estrutura sexista do mundo que a cerca) ou mesmo a forma como o Cinema, seus gêneros e subgêneros tendem a retratá-la. Já falei sobre isso em outras ocasiões: eu, como o homem que sei que sou, não tenho como compreender a realidade feminina na pele, já que nunca terei como sentir exatamente o que é ser diminuído em prol de quaisquer atributos físicos ou retribuir uma cantada escrota e inconveniente por medo de que esta, ao ser rejeitada, possa escalonar até virar uma violência física ou mesmo uma morte – e é justamente isso que torna um filme como Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre, por exemplo, tão revelador para mim, me permitindo enxergar uma visão de mundo diferente da minha e aspectos de nossa estrutura social que acabavam me escapando.

Neste sentido, Bela Vingança não poderia ser mais eficiente – mesmo se confundindo às vezes – ao literalmente esfregar na cara dos vilões (homens) da narrativa tudo aquilo que cometem na vida real, sendo apenas apropriado que, ao ouvir de um deles a pergunta “Você sabia que ser acusado de algo que não cometeu é o maior medo de um homem?”, sua resposta seja um curto e objetivo “E você sabe qual é o maior medo de uma mulher?”.

Estreia da britânica Emerald Fennell na direção de longas, Bela Vingança gira em torno de Cassie Thomas, uma mulher de 30 anos que, graças a um trauma motivado por um colega de faculdade que usou sua posição de privilégio para fazer os demais alunos e a reitora da faculdade duvidarem de sua palavra, decidiu largar os estudos e os sonhos que tinha para a vida, continuando a morar com os pais e dedicando-se a um emprego monótono numa cafeteria. Em contrapartida, Cassie é também uma moça esperta, que sabe elaborar planos e situações complexas – e, com isso, seu passatempo favorito torna-se frequentar casas noturnas e fingir-se de bêbada para atrair a atenção de homens que queiram estuprá-la, pegando-os de surpresa ao revelar-se sóbria, consciente e pronta para revidar qualquer ataque. Porém, com a volta de um antigo colega de faculdade, Cassie acaba descobrindo o nome do indivíduo responsável por seu trauma e pela tragédia ao redor deste, articulando, portanto, uma longa estratégia para punir o cara e, de quebra, responsabilizar todas as pessoas que aliviaram sua barra no passado.

(A propósito: Bela Vingança é uma tradução bem infeliz do original Promising Young Woman – que seria Jovem Promissora –, já que implica num julgamento moral acerca das ações da protagonista e falha em perceber que estas são motivas por um desejo não de vingança, mas de justiça.)

Demonstrando segurança e controle impressionantes logo em seu projeto de estreia, Emerald Fennell toma, em Bela Vingança, uma série de decisões (narrativas, estéticas e temáticas) que tinham tudo para dar errado, mas que acabam funcionando surpreendentemente bem em função da clareza com que a cineasta enxerga seus objetivos. Não que o filme em si não tropece ao buscar uma forma de conciliar todas as suas ideias – e talvez seja por isso que, durante boa parte do primeiro ato, a narrativa soe um pouco dispersa, como se apenas saltasse de situação em situação e demorasse a encontrar uma história na qual se concentrar.

Ainda assim, Bela Vingança é um longa que desde o início faz jus à mentalidade da própria protagonista, mantendo-se sempre alguns passos à frente do espectador a fim de impedi-lo de antever o que Cassie fará a seguir ou o que o restante da cena que acompanhamos nos reservará. Não, o comportamento nojento e imoral dos homens não chega a nos surpreender em função do que já nos habituamos a esperar deles no mundo real, mas as atitudes (que não deixam de ser reações) da protagonista diante de cada uma das pessoas que a destruíram no passado, sim, nos pegam desprevenidos justamente por proporem uma correção prática do problema, esfregando-o na cara de todos aqueles que nele se envolveram – e, além disso, estas cenas que mostram a execução de cada uma das etapas no plano de Cassie servem também para colocar o público em dúvida sobre o caráter da (anti-)heroína, nos fazendo indagar se a “vingança” era de fato o melhor caminho e nos aliviando ao esclarecer, no decorrer da cena, que na verdade se tratava mesmo era de (alguma) justiça.

A direção de Emerald Fennell, inclusive, é ousada ao investir em uma atmosfera que beira a irreverência e em uma identidade visual cujas cores beiram a leveza – duas decisões que poderiam facilmente comprometer a gravidade dos temas abordados pelo filme, mas que acabam fortalecendo-os em parte ao refletir o ponto de vista da própria Cassie, com suas referências pessoais, diante do mundo e de suas próprias atitudes. Pois o fato é que, ao contrário de obras como Green Book e Jojo Rabbit, que se propunham a discutir (ou “satirizar”) temas urgentes e delicados como racismo e nazismo, mas os esvaziavam por completo ao submetê-los a uma abordagem fofinha de feel good movie, o longa de Fennell emprega as cores a estilização pop como forma de aconchegar o espectador e deixá-lo despreparado para o choque que virá a seguir, tornando este ainda mais impactante – e, sempre que o filme parece prestes a sucumbir a uma auto-paródia espertinha, algo aparece para nos devolver brutalmente à realidade (como aquilo que acontece na virada do segundo para o terceiro ato). Neste sentido, a utilização da icônica “Toxic”, de Britney Spears, em uma versão sombria, alongada e desafinada não poderia refletir melhor as ambições estilísticas do projeto, transformando um hino pop em uma composição macabra e inquietante.

Bela Vingança, aliás, é mais um daqueles filmes que farão boa parte do público masculino reclamar “Ora, mas todos os homens da trama se comportam como completos imbecis e fazem/falam coisas absurdas demais para serem reais”, falhando em perceber que, afinal, tudo aquilo que está na tela – por mais clichê que possa parecer (os operários do outro lado da rua que assoviam, perguntam a Cassie “quanto (o sexo com ela) custa?” e pedem que ela “mande um sorrisinho”; o almofadinha que, depois de levar um fora de Cassie, retorna ao seu local de trabalho no dia seguinte para se provar capaz de conquistá-la; os babacas na balada que a avistam de longe e a tratam como “carne nova no pedaço”; etc) – apenas reflete a realidade como ela é. E o mais interessante é perceber como o filme não se concentra necessariamente nos tipos mais óbvios de machistas: há também os mais patéticos; os que se julgam desconstruídos e, por isso, merecem ser recompensados com sexo (como é o caso daquele vivido por Christopher “McLovin” Mintz-Plasse, que se define como “nice guy” mesmo estando prestes a estuprar Cassie); os que se acham no direito de se vitimizar por levarem um toco; os que se eximem da responsabilidade por um estupro alegando “só estarem filmando”; os que aparecem para defender o amigo estuprador dizendo que “Não é sua culpa”; e por aí vai. Da mesma forma, o longa encontra espaço para mostrar como as mulheres também podem reproduzir atitudes opressoras e/ou serem cúmplices de uma barbaridade: a mãe de Cassie, por exemplo, vive tachando-a de “fracassada” em vez de ajudá-la a superar um trauma – que, por sua vez, partiu de um crime acobertado (entre várias outras pessoas) por uma amiga da protagonista e pela reitora de sua faculdade.

Aliás, é justamente por se mostrar tão cuidadoso e consciente na maior parte do tempo que Bela Vingança acaba desapontando um pouco ao chegar no personagem de Alfred Molina, que aqui vive o advogado que, no passado, livrou a cara do homem que – só prossiga com a leitura quem já tiver assistido ao filme – estuprou Nina (a melhor amiga de Cassie) ao levar para o tribunal um monte de informações (fotos, posts, mensagens) que fizessem o juiz acreditar que a vítima era “vagabunda”, “que, pelas roupas que usava, estava ‘pedindo’ para ser abusada”. Ora, estamos falando de uma das figuras centrais por trás da violência toda; afinal, foi o indivíduo que olhou para uma vítima óbvia e tratou de humilhá-la e transformá-la em culpada a fim de limpar a barra de um criminoso – e, talvez pelo caso similar da influenciadora Mari Ferrer ainda estar tão recente na memória, confesso que a ideia de ser justo este personagem o único a, no filme, ganhar uma redenção e a anistia de Carrie, chegando ao ponto de voltar para ajudá-la a concluir seu plano no terceiro ato, me deixou um gosto amargo na boca.

O que nos traz ao desfecho da narrativa (de novo: spoilers à frente): por um lado, o absurdo da situação (que obviamente exigiu uma série de conveniências para acontecer) não poderia ser mais condizente com a personalidade que a protagonista vinha exibindo desde o começo (sim, isto é um elogio), surpreendendo o espectador com uma artimanha que, de tão implausível, só poderia ter sido planejada por uma heroína como Cassie; por outro, não deixa de ser estranho que um filme que dedicou quase duas horas a lembrar como o sistema judicial dos Estados Unidos é falho e estruturado para proteger abusadores (como fez com Al, o estuprador de Nina) de repente vire a chave e se encerre com a polícia prendendo o cara, deixando subentendido, com isso, que a justiça foi feita – e ignorado o fato de Al ser homem, branco, rico, já ter se livrado da Justiça outra vez e, principalmente, ter recursos para se livrar de novo.

Em outras palavras: ao contrário do que o filme faz parecer, Cassie não saiu vencendo. Pelo contrário: foram precisas as mortes de duas mulheres para que um estuprador fosse preso – e, ainda assim, com a garantia de que fosse absolvido mais uma vez.

Assim, o desejo de terminar a narrativa numa catarse acaba criando uma contradição entre algumas das questões que Bela Vingança levantou durante todo o seu decorrer. O que não significa, porém, que tenha eliminado os muitos méritos deste belo filme ou mesmo que não me tenha feito admirar mais uma vez a perspicácia e a noção estratégica de Cassie, a justiceira.

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