A Marvel é mestre em lançar premissas muito promissoras, que prometem algo temática ou dramaticamente muito interessante, e nunca aproveitá-las por completo. O drama de Steve Rogers ser deslocado no tempo, as dualidades trágicas de Bruce Banner/Hulk, os impactos da batalha de Nova York no psicológico de Tony Stark, a revelação de que havia nazistas infiltrados na SHIELD, o fato de metade do universo ter sido dizimada entre um filme e outro, a exposição da identidade de Peter Parker para tia May e, depois, para o resto do mundo… ideias cheias de potencial, mas que terminam ou relegadas a lembranças casuais. O resultado disso é que, no fim da linha, esses dilemas mal resolvidos trazem uma sensação de… incompletude. Ideias boas que pouco ou nada rendem. Um sentimento de vazio que permeia praticamente todo o MCU (quando Steve passa o escudo para Bucky, ao fim de Vingadores: Ultimato, aquilo não ressoa muito em mim simplesmente porque… eu não senti a força incondicional dessa amizade nos filmes anteriores, a não ser num flashback aqui e outro ali).
Em Capitão América: Admirável Mundo Novo (subtítulo emprestado do livro de Aldous Huxley apenas para dar um leve verniz de intelectualidade ao subtítulo dessa produção), esse problema chega ao máximo. Os primeiros 20/30 minutos são o que o filme tem de melhor: a apresentação do agora presidente Ross, em especial, é bastante eficiente e linka bem com o que acompanhamos nos anteriores. É algo que tinha tudo para significar uma divisão de águas em um universo sem consequências: o arqui-inimigo do Hulk virou presidente! (E acho interessante que, em vez de tentar converter Ross em uma alusão a Trump ou Biden, ele é… uma persona autônoma. Eu acredito que o general Ross de O Incrível Hulk viraria aquilo ali se eleito chefe de Estado.) Harrison Ford está bem no papel, equilibrando a energia raivosa de Ross e a tentativa de contê-la a fim de cicatrizar velhas feridas (no caso, a relação mal resolvida com a filha, Betty). O próprio lance de ele querer ressuscitar os Vingadores serve não só para propor algo de novo ao personagem, mas também para sinalizar um possível do atual estado do MCU: as coisas deram tão errado sem os Vingadores que eles precisam recriá-los do zero…
… pena que isso não passe de uma sinalização, porque o filme em si não faz nada com essa premissa. Depois, o presidente Ross passa a servir só para dizer umas frases pré-prontas e ser manipulado por outras circunstâncias da trama, como um mero action figure. Se em teoria há uma série de dinâmicas políticas que poderiam ser feitas a partir do Ross presidente, na prática ele serve só para, no final, virar um bonequinho do Hulk Vermelho que será jogado contra o Capitão, terminando somente como mais um caso da semana. Nesse ínterim, todo o sentimento de urgência que o filme tenta criar (e como tenta!) é anulado: como podemos sentir que há algo realmente em jogo se nada parece ter peso ou consequência? É até meio constrangedor o esforço dessas produções (sim, no geral) em querer nos convencer de que há algum perigo envolvido ali; no fundo, eles sabem que nós sabemos que nada de fatal vai acontecer.
No início, eu vinha gostando muito desse “clima de thriller político” que o filme tentava articular. É uma repetição da fórmula de O Soldado Invernal? Óbvio, mas funcionou lá, então talvez funcionasse aqui. Mas conforme a trama vai avançando (e se complicando), vai ficando cada vez mais claro que essa “politicagem” não existe; é mera fachada para fazer Capitão América 4 parecer “diferentinho” (há uns 10 anos talvez trouxesse um frescor ao subgênero; hoje é só uma recauchutada na receita dos irmãos Russo). A história vai se embolando, vai envolvendo contrabandos e vilões com planos mirabolantes por trás, e qualquer aspecto um pouco mais político (comentário/reflexo/discussão sobre o que quer que seja) vai se perdendo para dar lugar às mesmas burocracias de sempre. Ele não tem saco nem coragem para ser politizado de verdade. Parece que o compromisso em ser só mais um produto da Marvel impede o filme de seguir explorando suas premissas até o fim.
Isso se reflete em toda a abordagem de “thriller político” do longa: se a princípio isso ajuda a criar uma atmosfera intensa e singular, aos poucos Admirável Mundo Novo recai nas mesmas lutinhas, piscadinhas e piadinhas fora de hora (há um diálogo bonito entre Sam e um personagem-surpresa que é arruinado no final pela necessidade de fazer brincadeirinha). Tudo vai perdendo o brilho aos poucos: a primeira cena de ação é bacaninha, mas as outras a seguir são confusas, super picotadas, escuras a ponto de serem impossíveis de acompanhar e com umas coreografias meio capengas. Há uma sequência, num corredor escuro (e num plano só), que claramente era para ser o momento da ação brilhar, mas acaba se revelando apenas… ruim. Por incrível que pareça, as cenas em maior escala e que parecem pré-programadas por uma IA (e que envolvem aviões e homenzinhos em CGI questionável se perseguindo pelos ares) são mais interessantes do que aquelas que trazem confrontos corpo a corpo – embora a luta entre o Capitão e o Hulk Vermelho pareça um epílogo encaixado à força só para agradar aos fanboys da Marvel, já que o clímax real ocorre uns 20 minutos antes.
E não adianta querer aspirar a uma atmosfera tensa e política se o diretor Julius Onah é um péssimo encenador (é dele o pavoroso The Cloverfield Paradox). Do início ao fim, Admirável Mundo Novo parece uma produção para a televisão: uns planos fechados, basicões, com uns fundos chapados que parecem não ter dimensão/profundidade. Às vezes ele ostenta um movimento de câmera ou outro que acredita imprimir personalidade ou dinamismo visual, mas que é só feio mesmo. Aliás, é impressionante como o roteiro (escrito por cinco pessoas!) se apoia em diálogos expositivos o tempo todo; não tem nada no filme que seja transmitido de qualquer outra forma que não seja diretamente em palavras – o que só reitera como Capitão América 4, mesmo assumindo essa pose de “adulto” e “politizado”, na verdade não poderia ser mais infantilizado. (E não ajuda muito que os diálogos sejam geralmente bem ruins: ou são frases de efeitos horríveis, ou são só exposição barata e artificial.)
E se Shira Haas pouco tem a fazer no papel de uma Viúva Negra genérica que vem do nada e vai a lugar nenhum, Danny Ramirez surge apenas irritante na pele do novo Falcão – e o roteiro tenta vender uma amizade dele com Sam (supostamente tão cara quanto a de Steve com Bucky) que não funciona justamente por ser desenvolvida de forma apressada (bem como a dinâmica entre Sam e o personagem de Carl Lumbly). Por outro lado, Anthony Mackie segura bem o posto de novo protagonista da série: além de conciliar carisma e um pouco de brutalidade ao novo Capitão, ele também explora com eficiência as inseguranças de Sam Wilson, que se sente uma versão inferior de Steve Rogers (num reflexo óbvio dos vários chiliques que nerdolas têm na Internet simplesmente por não aceitarem um Capitão América que seja negro).
Ao menos, Sam Wilson me parece ser um Capitão um pouco mais interessante que Steve Rogers. Ou pelo menos tem potencial para. Mas é sempre isso: potencial. Chegar lá, que é o que importa, nunca chega.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: