De certa forma, Coringa: Delírio a Dois acaba sendo um reflexo perfeito do principal aspecto que mais me irritava em seu antecessor. Dirigido e co-escrito por Todd Phillips como um projeto que tentava ecoar Taxi Driver e O Rei da Comédia do primeiro ao último fotograma (mesmo que o cineasta em questão definitivamente não fosse Martin Scorsese), Coringa era um bom filme que se julgava genial e que buscava desesperadamente convencer o público de que era uma obra “autoral”, “de prestígio”, que merecia todos os prêmios em vez de terminar comparada a todas as outras adaptações megalomaníacas e pirotécnicas da DC e da Marvel. O problema é que, mesmo com este esforço todo, Phillips terminava vencido pelas várias concessões comercias às quais se submetia para tornar seu longa (supostamente tão “sofisticado”) o mais óbvio e mastigadinho possível para o público médio de qualquer outro filme de super-herói, desde menções ao universo do Batman movidas a puro fan service até passagens inteiras que serviam para explicar didaticamente qualquer elemento um pouco mais profundo da trama.
Nada poderia refletir melhor o aspecto comercial daquela obra (que, volto a repetir, tentava o tempo todo se vender como outsider da indústria dos super-heróis, como se fosse “elevada” demais para ser comparada a eles) do que… uma continuação caça-níqueis. Afinal, Coringa foi um fenômeno pop como poucos: arrecadou mais de US$ 1 bilhão mundo afora, foi o longa para maiores de 17 anos de maior bilheteria da História (até ser desbancado recentemente por Deadpool & Wolverine) e, claro, foi indicado a trocentos prêmios, ganhando, inclusive, os Oscars nas categorias de Trilha Sonora e Ator Principal. Como aquela história acabaria por ali? Taxi Driver 2 e O Rei da Comédia 2 até hoje não viram a luz do dia, mas em se tratando de uma marca conhecida como o arqui-inimigo do Batman, é claro que os executivos da Warner Bros. não tardariam em decidir que Coringa 2 era uma prioridade – e, ok, até poderia funcionar mesmo (afinal, pré-julgar um filme e descartá-lo em função de sua mera existência é um erro colossal).
O problema é que, na prática, o que esta continuação demonstra é que de fato todas as ideias que Todd Phillips teve acerca de Arthur Fleck e seu universo já se esgotaram no longa de 2019 – e a incapacidade do cineasta de encontrar algo que movimente criativamente Coringa: Delírio a Dois só escancara como a única motivação para a realização desta sequência é mesmo… a vontade de adicionar mais umas centenas de milhões de dólares aos cofres da Warner.
Novamente escrito por Phillips e por Scott Silver, o roteiro reencontra Arthur Fleck agora em uma cela do Asilo Arkham enquanto aguarda o julgamento pelos homicídios que cometeu no filme anterior. Assim, à medida que Delírio a Dois avança, vemos cada vez mais e mais cenas ambientadas num tribunal, com o promotor Harvey Dent (já ouvi este nome antes…?) tentando convencer o júri a condenar Arthur à cadeira elétrica enquanto a defesa… bem, faz o que pode para livrá-lo do corredor da morte. Ao mesmo tempo, uma outra paciente do Arkham – esta de uma ala mais moderada – cai na vida do protagonista e, claro, não demora até que os dois se apaixonem perdidamente em sua loucura conjunta. Na maior parte do tempo, porém, Coringa 2 se limita a remoer eventos do antecessor a ponto de soar basicamente como um imenso epílogo de 138 minutos; uma obra inteira que, na prática, soa quase como “apêndice” do que vimos em 2019 em vez de se estabelecer (e se desenvolver) por conta própria.
Basta perceber como – à exceção de um aspecto específico que discutirei mais à frente – esta continuação não leva adiante praticamente nada do que o original introduziu. Se Coringa propunha uma discussão sobre como uma sociedade corrompida e desigual, que trata seus membros mais necessitados como lixo, inevitavelmente dará à luz seus monstros (que, por sua vez, serão tratados como “heróis” pelos que sofrem tanto quanto eles), Delírio a Dois se resume a bater nas mesmíssimas teclas sem adicionar qualquer ideia, comentário ou camada nova ao que já havia sido dissertado. Não há um insight sobre a estrutura da sociedade, sobre o sofrimento de Arthur Fleck ou sobre a composição psicológica deste; tudo que este novo capítulo tem a dizer já fora discorrido e explicitado aos montes no anterior. Até mesmo as composições de certos planos buscam aludir a momentos similares do original, ora para criar “rimas” visuais (como no caso de Arlequina subindo as escadarias e entrando num elevador), ora para aquecer a memória do espectador (como nos flashes pontuais de cenas do antecessor que pipocam de vez em quando).
E o mais frustrante é que havia potencial para explorar caminhos novos aqui. Já nos primeiros minutos de projeção, Todd Phillips surpreende ao recapitular brevemente os eventos do filme passado de uma forma que funciona por ser inusitada e, ao mesmo tempo, compatível com a mentalidade cartunesca, fantasiosa e alucinada do protagonista (vou manter em sigilo a fim de não estragar a surpresa para vocês). Da mesma forma, o diretor estabelece bem o tédio da rotina de Arthur em meio àquele hospício, definindo cada passo do protagonista naquele espaço como um padrão já seguido no automático – e o fato de estabelecer o guarda interpretado por Brendan Gleeson aparentemente como o único indivíduo do Arkham a ter um mínimo de proximidade com Arthur torna ainda mais chocante um certo ato que ocorre na reta final (de novo: serei vago a fim de evitar spoilers).
À medida que vai avançando, porém, Coringa 2 se revela cada vez mais redundante: todos os conflitos que inicia (ou melhor: que parece iniciar) já haviam sido resolvidos ao fim do anterior e, como não tem estofo nem articulação criativa para desenvolvê-los, logo vai se convertendo em uma sucessão de repetições que, acumuladas, criam a sensação de que a narrativa em si nunca progride – mesmo que tente desesperadamente nos convencer de que está construindo uma linha de raciocínio (não está) que logo chegará a uma conclusão (não chega). Não é à toa que, com este acúmulo de redundâncias, não demora até que Coringa 2 se francamente… tedioso, monótono, já que todos os conflitos/comentários do roteiro avançam sem jamais saírem do ponto inicial – e, quando a projeção chegou ao fim, fiquei surpreso ao constatar que a duração do filme é de apenas 138 minutos, já que a impressão que tive era de ter permanecido no cinema por umas três horas. E se o primeiro Coringa, por mais irregular que fosse, trazia alguns momentos que se tornaram instantaneamente icônicos (a dança na escadaria, a entrevista final no talk show, a arma caindo no hospital infantil, etc), não há uma sequência em Delírio a Dois que eu seja capaz de garantir que seguirá em minha memória daqui a alguns anos.
Aliás, o maior exemplo de “ideias requentados” reside justamente na figura da Arlequina. Não que Lady Gaga se saia mal ao interpretar a personagem: além de seus já conhecidos talentos para o canto (que são fundamentais aqui), ela é hábil ao emprestar intensidade a uma moça que poderia facilmente virar uma caricatura e encarnar bem a obsessão de Harleen Quinzel pelo Coringa e as frustrações que sente em dado momento, se distanciando bastante da versão que Margot Robbie criou. Dito isso, toda a participação de Arlequina se resume à repetição de uma ideia que já ficara bem clara ao fim do primeiro filme: a de que a loucura do Coringa inevitavelmente inspirará outras pessoas a se espelharem nele a ponto de tratá-lo como um ídolo (se antes tínhamos a rebelião dos malucos com máscaras de palhaços se reunindo em torno do protagonista para celebrá-lo, agora temos uma mulher que dedica 24 horas de seu dia a venerá-lo). Da mesma maneira, se ocasionalmente o longa parece disposto a introduzir um comentário sobre a toxicidade (óbvia!) do relacionamento entre Coringa e Arlequina, na prática este interesse desaparece já na cena seguinte.
Por falar em Gaga, o único elemento que talvez possa ser considerado uma novidade em Coringa 2 é a vontade de Todd Phillips de flertar com o musical, se lançando em várias sequências em que o protagonista, Arlequina e/ou ambos dançam e cantam enquanto se imaginam em cenários exuberantes e românticos. A princípio, uma ideia instigante, já que estes números refletem o grau de delírio que se passa na mente doentia dos dois personagens – pena que, na prática, Phillips não exiba um traço de imaginação ou dinamismo ao retratar estes momentos. Sim, a direção de arte e as performances de Lady Gaga e Joaquin Phoenix indicam certa vitalidade, mas a forma com que o diretor encena estes números é surpreendentemente engessada, limitando-se a registrar os dois atores parados, de forma burocrática e em planos que pouco se movimentam. Para um filme intitulado Delírio a Dois, é espantoso como Phillips é rígido a ponto de nunca fazer jus à vivacidade insana do casal principal, sendo decepcionante, também, perceber como as sequências musicais se integram à trama de maneira frouxa, soando mais como inserts que vêm de tempos em tempos (e de modo quase aleatório) somente para dizer que estão lá – como se o longa quisesse ser reconhecido como “musical”, mas não lembrasse de se esforçar para ser um bom musical.
Dito isso, Delírio a Dois tem seus pontos fortes – mesmo que estes (de novo) já fossem presentes no original. Sim, Joaquin Phoenix mais uma vez impressiona em sua composição, já exibindo uma entrega física logo quando surge pela primeira vez, com um corpo magro a ponto de deixar seu esqueleto bem visível por baixo da pele. Além disso, Phoenix demarca bem as diferenças entre Arthur Fleck e Coringa a partir de um olhar mais monótono aqui e mais intenso ali, ou de um tom de voz que ora é sussurrante, ora é mais histriônico/extravagante. Isso culmina em uma sequência brilhante em que o protagonista interroga um certo personagem já conhecido (vocês o descobrirão) e adota postura, expressão e composição vocal que remetem às de um advogado clichê de filmes de tribunal, com uma voz que até me lembrou um pouco a de Tom Hanks em seus momentos mais divertidos.
É um trabalho tão eficaz que resiste até mesmo à confusão temática que Todd Phillips cria em relação ao próprio personagem. Aparentemente motivado a responder às acusações que muitos fizeram (injustamente, como defendi na época) de que Coringa era um filme que “romantizava o comportamento dos incels” e que “pregava a violência como solução para os problemas da sociedade”, desta vez o cineasta opta não só por criar um discurso apaziguador, mas também por reavaliar a versão do Coringa que ele mesmo criou a fim de definir como Arthur Fleck e o palhaço são sujeitos distintos e, portanto, destrutivos um para o outro. Em outras palavras: se antes Phillips tentava explorar as complexidades de um problema, agora decide desfazer a tese que montou antes a fim de berrar para o espectador “Hey, foi mal! Eu me expressei errado! Deixem-me consertar!”.
O que só reitera mais uma vez como esta franquia, que desde 2019 vem tentando se vender como “uma adaptação de quadrinhos diferenciada, às margens da indústria megalomaníaca dos filmes de super-heróis”, jamais consegue escapar da sombra da indústria que tanto renega.
Que venha Coringa 3.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: