Quando escrevi sobre Zona de Interesse, em fevereiro de 2024, comentei que um erro comum ao se analisar uma obra é o de achar que um ritmo “lento” é necessariamente um problema, como se isso fosse o mesmo que ser “chato”. Ora, existem infinitos casos de filmes que, por conta dos personagens que acompanham, dos temas que discutem ou das propostas que apresentam, necessitam de um andamento mais pausado, de uma monotonia que às vezes pode ser incômoda, mas não deixa de ser importante para a obra funcionar. É o caso de Depois da Caçada, novo longa de Luca Guadagnino (Me Chame pelo Seu Nome) que, em termos de ritmo e conceito, não poderia estar mais longe do frenesi de alguns de seus trabalhos anteriores, como o remake de Suspiria e, principalmente, Rivais.
Escrito pela estreante Nora Garrett, o roteiro gira em torno de Alma Imhoff, uma renomada professora de Filosofia da Universidade de Yale que orienta o doutorado da aluna Maggie, é casada com o psiquiatra Frederik e é amiga do também professor Hank Gibson. Tudo vira de cabeça para baixo, no entanto, quando Maggie acusa Hank de tê-la assediado sexualmente, confiando em Alma a tarefa de defendê-la – e, quando a orientadora prefere puxar o freio e averiguar a situação antes de atirar o sujeito na fogueira, a orientanda decide abrir o bico e, com isso, provocar a demissão do suposto agressor. A partir daí, novos conflitos surgem entre Alma e Maggie, deixando o clima entre as duas – e no próprio campus universitário – cada vez mais tenso.
Aliás, uma coisa que me chama a atenção, em Depois da Caçada, é como a maioria dos personagens fala e fala e fala, citando dezenas de obras/autores que leram (algo que a turma na Internet costuma chamar de name-dropping), sem que o filme em si pareça realmente interessado pelo que dizem. Não, as menções a filósofos e sociólogos que surgem ao longo da narrativa não aparecem com o intuito de costurar tematicamente a obra, de fornecer estofo intelectual ao que Garrett e Guadagnino constroem, mas sim… escancarar o fato de que todos aqueles indivíduos são convictos da própria genialidade (com as referências que têm) e apaixonados por si mesmos. Em suma: o filme encara todas as citações, teses e nomes de autores cuspidos pelos personagens como uma ladainha total, como uma briga de egos na qual um quer provar que sabe mais do que outro (o que não é exatamente incomum no meio acadêmico, né?).
Uma briga de egos que, por sinal, diz muito sobre os personagens, que são, em bom português, uns escrotos – e o ritmo imposto pela montagem de Marco Costa não poderia ser mais apropriado, desglamourizando totalmente o universo daqueles professores. Aliás, um dos melhores aspectos sobre Depois da Caçada é que o filme admite girar em torno de indivíduos desprezíveis sem cair na tentação de suavizar um/outro ou assumir uma posição claramente contra ou a favor deste/daquele sujeito (para facilitar a identificação da “moral” da obra). Neste sentido, Alma Imhoff permite a Julia Roberts criar uma das melhores performances de sua carreira, já que a atriz assume a difícil tarefa de retratar a protagonista como uma mulher, sim, vaidosa e soberba, mas que no fundo vê sua bússola moral levá-la a uma abordagem minimamente caridosa/empática – e ela colhe as consequências disso).
Enquanto isso, Ayo Edebiri compõe Maggie como uma jovem ardilosa cuja ardileza surpreende a nós mesmos, levando o público a acreditar, em primeira instância, na inocência e na fragilidade da garota só para, mais tarde, aos poucos perceber nela uma esperteza mais maliciosa do que se imaginava. E se Michael Stuhlbarg materializa a babaquice e a toxicidade que permeia vários destes espaços, Andrew Garfield converte Hank numa figura tão abjeta que, quando chega a hora do espectador lhe dar o benefício da dúvida, a tarefa se torna bem mais desafiadora do que poderíamos supôr, nos colocando na complexa posição de cogitar a absolvição de uma figura que detestamos.
Aliás, a estratégia visual que Guadagnino e o diretor de fotografia Malik Hassan Sayeed adotam, na sequência em que Maggie conta a Alma da agressão que supostamente sofreu, é inteligente ao reforçar a ocultação das reais intenções da jovem e a autenticidade das reações da professora, com o rosto da primeira encoberto pelas sombras do local e o da segunda, iluminado por uma das poucas frestas de luz que surgem por ali. E se a escolha de registrar algumas das discussões através de planos em primeira pessoa (quando Maggie fala, assumimos o ponto de vista de Alma e, como a garota está olhando para a professora, no caso está olhando para a câmera – e para nós) é meio óbvia, também não deixa de ser eficaz – e o mesmo se aplica à cena em que Maggie detalha, na cozinha de Alma, o abuso que diz ter sofrido e a câmera alterna suavemente entre o rosto de Ayo Edebiri e o detalhe de suas mãos, num gesto que denota uma ansiedade incompatível com a confiança que tenta transmitir com a voz.
O problema é que chega um momento em que o filme parece se confundir em relação ao discurso que tenta articular, levantando tantas nuances, contradições e “viradas de lado” que, na tentativa de mostrar como a situação em si é complexa, acaba não concluindo de fato uma ideia sólida sobre ela. Sim, está claro que o linchamento virtual e a tal “cultura do cancelamento” (termo que sinto que já vem perdendo força) são um método perigoso por se tratarem 1) de uma alternativa à margem da Lei (“não adianta denunciar? Então, vamos destruir a reputação desta pessoa.”) e 2) de uma medida que condena a priori um indivíduo que pode facilmente ser inocente. Porém, os meios que Depois da Caçada encontra para elaborar isso muitas vezes recaem em resoluções ora confusas, ora simplistas a ponto de soarem perigosamente reacionárias (notem como o único personagem não-binário da trama é um estereótipo total).
Com uma cena final embaraçosa que quase elimina a força do que veio antes e que só existe para explicar direitinho tudo que aconteceu (num didatismo decepcionante em um filme que, até então, mantinha um alto nível), Depois da Caçada ainda assim prendeu meu interesse do início ao fim – mesmo atrapalhando-se em um discurso que às vezes não parece saber ao certo qual é.



