A Arte é capaz de resumir o que se passa na cabeça do artista com uma sensatez que pode não ser conquistada através de simples palavras, ditas da boca para fora. Se declaramos uma obra a um amor pelo qual nos apaixonamos perdidamente, é possível que o resultado seja especial; se dedicarmos um trabalho a uma memória particular, este certamente exibirá um grau de intimidade notável; se produzirmos algo sob encomenda, apenas para cumprir com uma obrigação, sua natureza fria e industrial será facilmente constatada por outras pessoas; etc. E se estivermos em uma daquelas fases complicadas onde a vida parece disposta a nos massacrar, isto inevitavelmente se estenderá ao conteúdo que produzimos – aliás, confesso que já senti isso algumas vezes em meu trabalho: quando minhas condições emocionais, psicológicas e até físicas estão comprometidas (como estavam há algumas semanas), o bloqueio criativo vem à tona, as palavras saem com maior dificuldade e meus textos e vídeos acabam soando… mecanizados, como se tivessem sido feitos sem amor.
Poucas coisas dizem tanto sobre um indivíduo quanto sua Arte – e a melancolia, em especial, é uma das sensações que mais podem fazer a diferença em uma obra, pois escancara um caráter naturalmente íntimo e pessoal que, por mais que o artista tente escondê-lo, nunca ficará de fora do resultado final. Guerra Fria, o novo longa do polonês Paweł Pawlikowski (de Ida), demonstra entender este fato de maneira franca e precisa, criando uma história que desenvolve suas próprias condições emocionais ao retratar um contexto histórico específico, uma paixão estilhaçada com o passar dos anos e como ambos se refletem – para o bem ou para o mal – na Arte produzida pelos personagens.
Escrito pelo próprio Pawlikowski ao lado de Janusz Głowacki e Piotr Borkowski, o roteiro começa mostrando o contexto da Polônia no fim dos anos 1940, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e direciona suas atenções para um conservatório que está buscando cantoras e dançarinas que possam trabalhar para a propaganda comunista. É lá que somos apresentados a Zula, uma jovem que conta com uma voz exuberante e que acaba sendo selecionada para fazer parte do coral – o que, por consequência, chama a atenção do diretor do músico Wiktor, que comanda o conservatório. A partir daí, a narrativa se desenrola ao longo de quinze anos e acompanha o romance que surge entre Zula e Wiktor, as idas e vindas que tendem a problematizar a relação entre os dois e um pouco da tensão crescente que marcou a Guerra Fria e que serve como pano de fundo para a trama.
Hábil ao fazer o espectador se sentir parte de um universo frequentemente triste e doloroso, Pawlikowski demonstra inteligência e cuidado ao construir a atmosfera que envolve a história e os personagens: iniciando a projeção com uma câmera subjetiva que enfoca um pequeno grupo de artistas de rua cantando e tocando acordeões (e olhado diretamente para o público, numa quebra de quarta parede que, de certa forma, convida o espectador a entrar naquela realidade), o cineasta prefere usar os primeiros dez minutos do filme para estabelecer a frieza daquele contexto histórico, demorando a apresentar o casal que protagonizará a narrativa – e esta decisão se revela surpreendentemente bem-sucedida, já que, antes de conhecermos Zula e Wiktor, passamos a entender o cenário ao redor deles. Assim, não deixa de ser curioso que o filme comece de maneira crua e vá se tornando cada vez mais charmoso, porém não menos melancólico – algo que se reflete consideravelmente nas músicas cantadas por Zula, que, embora belíssimas em sua sonoridade, contam com um grau particular de sobriedade e distanciamento que simbolizam apropriadamente o clima impresso pela direção de Pawlikowski e o estado de espírito da própria personagem.
Fortalecido também pelo excelente trabalho da designer de produção Ola Staszko, que se mantém fiel ao período da Guerra Fria ao fazer jus à grandiosidade da propaganda stalinista (com seus imensos e intimidadores cartazes) e ao recriar tanto a textura desgastada de certas locações arruinadas (como o conservatório que dá início à trama) quanto o glamour das grandes capitais europeias (como Berlim ou Paris), o longa é alçado a um status ainda mais espetacular graças à fotografia de Łukasz Żal, que complementa a visão melancólica de Pawlikowski ao investir em planos gerais que aproveitam cada detalhe das paisagens frias e distantes que tomam conta da maior parte da narrativa, ajudando a construir, através destas imagens, uma atmosfera ainda mais opressora. Além disso, Żal e Pawlikowski repetem uma decisão que se mostrou acertada em Ida e que volta a funcionar aqui: desrespeitar a regra dos terços e enquadrar as cabeças dos atores no canto inferior da tela, como se os personagens fossem constantemente espremidos pelos cenários – e gosto particularmente de como o distanciamento entre os protagonistas é retratado em algumas sequências, com Wiktor em primeiro plano e Zula, ao fundo desfocado. Para completar, tanto Żal quanto Pawlikowski revelam-se ambiciosos ao rodarem um plano que começa estático e aos poucos se transforma em um travelling, o que culmina em momentos que impressionam na composição e na técnica, mas que não precisam chamar a atenção para si (ao contrário do que aconteceu em Roma, onde certas panorâmicas acabavam soando como meras distrações em vez de enriquecerem a lógica visual da obra).
Como se não bastasse, as escolhas estéticas que Pawlikowski toma fazem jus ao seu ótimo roteiro, que estabelece a estrutura da narrativa e dos arcos dramáticos com uma elegância simplesmente encantadora: observem, por exemplo, como o desfecho da história serve para amarrar algumas pontas que o primeiro ato havia deixado soltas (e que nem pareciam ter ficado soltas), chegando ao ponto de criar rimas visuais que contribuem para que o final soe ainda mais coeso. A mesma inteligência se aplica à dinâmica que é construída entre os protagonistas: a meia hora inicial, em particular, cumpre bem sua função de introduzir e consolidar as personalidades de Zula e Wiktor; a partir daí, a narrativa começa a saltar de uma época à outra com uma frequência cada vez maior, reforçando, com isso, a impressão de que há uma tensão crescendo entre o casal. Neste sentido, tanto o roteiro quanto a montagem de Jaroslaw Kaminski revelam-se brilhantes ao associarem estes saltos temporais ao sentimento de urgência que foi se tornando mais intenso à medida que a Guerra Fria prosseguia.
E nada poderia descrever o romance entre Zula e Wiktor melhor do que isto. Sim, Pawlikowski exibe um carinho notável ao lidar com uma história que, diga-se de passagem, é inspirada na relação real entre seu pai e sua mãe (aliás, é curioso que dois dos principais indicados ao Oscar deste ano – Roma, e este Guerra Fria – representem o afeto que seus cineastas têm pelas memórias de seus entes queridos), mas o que realmente pontua a narrativa e o caminho dos personagens é mesmo a tal melancolia que já citei várias vezes ao longo deste texto. Trata-se, portanto, de um amor impossível, pois uma artista que se recusa a sorrir enquanto desvirtua os princípios de sua obra dificilmente ficaria com um maestro já estabelecido e entregue a um sistema que se aproveita da Arte em benefício próprio – e o que mais dói não são as brigas, mas os pequenos momentos que não causariam tanto sofrimento se a relação, em si, não tivesse se prolongado por tantos anos (reencontrar Zula depois que esta “seguiu sua vida”, por exemplo, é algo que obviamente pesa na consciência de Wiktor).
Mas o que os uniu, afinal? A Arte, com sua capacidade natural de unir as pessoas. Evidenciando uma amargura que se torna patente desde o princípio, já que sua obra acabou utilizada como forma de promover o stalinismo (com o qual não concorda), Wiktor é encarnado por Tomasz Kot como um homem de expressão sempre rígida, mas que carrega, dentro de si, uma série de sentimentos conflitantes em relação a Zula e uma paixão incontida pela Música como forma de expressão. Sua companheira, no entanto, é retratada com uma complexidade ainda maior: vivida por Joanna Kulig como uma mulher triste, atormentada e que sente o drama de quem teve que trair seus princípios para sobreviver, reduzindo suas produções a meros produtos políticos (“Ela é sombria demais para o folclore da Polônia stalinista“, diz um militar durante uma apresentação), Zula se vê disposta, ainda no primeiro ato, a denunciar Wiktor com o objetivo de preservar sua carreira. Ao chegar no palco, porém, a cantora imediatamente percebe que, apesar de plasticamente encantadora, sua obra não é mais encantadora como na época em que ainda contava com uma “alma”.
Não tinha como o romance entre Zula e Wiktor dar certo para nenhum dos dois, por mais que a paixão os conectasse de maneira intensa e, sim, verdadeira. E, por isso, o desfecho da história soa doloroso, mas também inevitável e até apropriado, já que ambos preferiram aceitar o amor em vez de tentar rejeitá-lo e sofrer por causa disso. Quem lê sem saber como o filme termina, de fato, deve estar pensando que é tudo lindo e maravilhoso, mas há um tom inegavelmente melancólico na forma como a relação se encerra, após quinze anos. Ao menos, Zula e Wiktor fizeram questão de escolher o melhor lugar para contemplar o pôr do sol.