A esta altura, Pedro Almodóvar já refinou seu estilo por tanto tempo (décadas!) que só de começar a assistir a um de seus novos projetos, já identificamos suas marcas registradas na tela, percebemos que se trata de uma legítima obra num universo almodóvariano e, então, sentimos certo alívio por estarmos em um território acolhedor (por mais pesados e doloridos que sejam os dramas contidos em tais narrativas). O fato de isso ter acontecido comigo em O Quarto ao Lado, primeiro longa do cineasta dirigido nos Estados Unidos (ele já tinha comandado os curtas A Voz Humana e Estranha Forma de Vida), representa um alívio ainda maior, pois é um sinal de que nem mudando para o outro lado do oceano o espanhol abriu mão de seu estilo e sua sensibilidade particular.
Baseado no livro What Are You Going Through, escrito por Sigrid Nunez, o longa se concentra em Martha e Ingrid, duas mulheres que foram amigas na juventude (quando trabalharam na mesma revista), mas que se afastaram com o tempo por… coisas da vida. Agora, contudo, as duas escritoras voltam a se encontrar por um motivo melancólico e inusitado: Martha está com câncer terminal e, para assisti-la em seus dias finais, ela pede que Ingrid a acompanhe numa viagem a um resort até que chegue seu último suspiro. Enquanto isso, elas dividem diversas conversas acerca da finitude da vida, momentos de conforto assistindo a filmes de Buster Keaton e, não menos importante, reflexões sobre um certo ex-amante, Damien, que passou pelas vidas de ambas as mulheres.
O interessante em O Quarto ao Lado é que, embora refletindo as aspirações de um mundo cada dia mais sóbrio e depressivo (algo que o Damien de John Turturro não resiste a comentar em uma conversa casual, apontando a destruição ambiental e as mudanças climáticas enquanto menciona “a ascensão da nova extrema-direita”), Almodóvar não deixa de lado seus traços estilísticos/dramatúrgicos em prol de uma narrativa fria e/ou austera. Ao contrário: o modo do cineasta de manejar os aspectos melodramáticos que tanto lhe interessam segue bem ativo aqui, permitindo que as personagens exponham emoções e sentimentos enérgicos através de diálogos que não fingem ser mais secos do que precisam, ao passo que a trilha de Alberto Iglesias continua a ressaltar a tensão e o sofrimento de cada cena sem se obrigar a ser “discreta” ao fazê-lo e a direção de arte continua a ser pautada por uma paleta forte e variada que reforça a intensidade de cada tom.
Mas igualmente importante é a decisão de Almodóvar de pontuar a narrativa com pequenos toques de leveza e até humor aqui e ali, algo que ajuda a trazer humanidade e, principalmente, afeto a uma trama que poderia facilmente sucumbir à frieza pura. Não, o riso em O Quarto ao Lado não vem como um fim em si mesmo (como uma vontade aleatória de quebrar o drama do todo), mas, sim, como uma espécie de… alívio – não para nós, mas para as próprias personagens. Isso é exemplificado bem em um momento ao mesmo tempo trágico e engraçado em que Ingrid acorda e vê a casa vazia, acreditando que a hora de Martha chegou, para em seguida a amiga aparecer pelo fundo da cena, revelando ainda estar viva. Assim, Almodóvar brinca com nossas expectativas e provoca certa taquicardia – e, se isso ocorre, é graças ao entendimento que aquelas personagens têm sobre a vida: a compreensão da própria finitude (associado, é claro, ao jeitão meio imprevisível de Martha).
Aliás, até mesmo o fato de Martha escolher, para passar os últimos dias ao seu lado, uma pessoa de quem ela não era próxima há um bom tempo diz muito sobre a personagem, que, com a visão romântica (embora melancólica) que tem sobre a realidade que a cerca, vê no próprio epílogo a oportunidade de amarrar antigas relações deixadas pelo caminho e reconhecer a competência específica de alguém que há muito não contatava a fim de se despedir da vida sem deixar pontos sem nó. Martha, por sinal, é interpretada por uma performance soberba (como de costume) de Tilda Swinton, que encontra o equilíbrio perfeito – e que a atriz faz parecer fácil, mas é extremamente delicado de se alcançar – entre o drama da situação da protagonista e, ao mesmo tempo, uma certa graça por achar contornos poéticos no que vive em seu final. O mesmo vale para Juliane Moore, que encarna maravilhosamente bem a divisão entre o compromisso que firmou com a amiga, o sofrimento inevitável por vê-lo realizado aos poucos e o carinho proporcionado por compartilhar aqueles momentos derradeiros com ela.
Com isso, O Quarto ao Lado funciona por mostrar que, mesmo tão distante de sua terra natal, Almodóvar se recusa a deixar de ser Almodóvar.
Visto no Festival do Rio 2024.
Assista também ao vídeo que gravei sobre o filme: