A diferença entre representação e exploração da violência é importante, mas, em alguns casos, sutil demais para gerar um veredito definitivo a respeito de determinadas obras – e, por isso, há filmes que, embora debatidos efusivamente, sempre podem ser lidos de maneira tanto louvável quanto condenável: uns acusam Tropa de Elite de glorificar a violência policial, outros o defendem dizendo se tratar de um espelho levantado diante da sociedade brasileira e de sua realidade brutal; uns dizem que Roma retrata o cotidiano doloroso de uma empregada doméstica, outros afirmam que o diretor Alfonso Cuarón romantizou o sofrimento da personagem; muitos apontam Cidade de Deus como uma denúncia da barbárie cometida no mundo do narcotráfico brasileiro, já a acadêmica Ivana Bentes usou justamente o longa de Fernando Meirelles como base de sua tese sobre a “Cosmética da Fome”; etc.
Por que estou dizendo isso? Porque confesso que pensei constantemente nesta questão enquanto assistia a Os Miseráveis. Escrito e dirigido pelo maliano Ladj Ly, o filme se passa no bairro pobre de Gavroche, em Paris, e se concentra em núcleos de personagens distintos, alternando entre os meninos (e filhos de imigrantes) que vivem brincando na rua e três policiais que passam a maior parte do tempo desempenhando sua função de maneira abusiva – a única “exceção” (até certo ponto) fica por conta de Laurent, um novato que ainda não se acostumou à rotina de seus colegas, o monstruoso Chris e irresponsável Gwada. Depois que os três causam um ferimento sério em uma criança (após persegui-la por ter roubado um filhote de leão) e descobrem que a ação foi registrada pelo drone de um menino que rondava a região, eles imediatamente passam a correr de lá para cá para impedir que o vídeo seja publicado e arruíne suas vidas.
Naturalmente, Ladj Ly tem autoridade para discutir/denunciar a perseguição sofrida pelos imigrantes em solo europeu – afinal, ele é um imigrante que vive na França e que, portanto, já sentiu na pele a discriminação que ocorre por lá. Dito isso, se o objetivo de Ly fosse apenas mostrar como o abuso de autoridade não só é movido pela intolerância como também a estimula, o resultado seria bem-sucedido: ao longo da projeção, o cineasta faz questão de ilustrar como a violência policial é sistemática e tem um direcionamento claro contra segmentos específicos da população (negros, imigrantes, pobres), acertando também ao enfatizar as brigas entre grupos representantes destes segmentos justamente por terem sido inflamados pelos agentes que propagaram o medo e o ódio.
O problema, porém, é que Ladj Ly só mostra isso de vez em quando, relegando os pontos de vista dos imigrantes a pequenos momentos que surgem aqui e ali – e dedicando a maior parte do tempo a acompanhar de perto as ações bárbaras das autoridades. Em outras palavras: o filme não dá voz alguma aos estrangeiros vítimas de discriminação, sendo particularmente notável que os meninos perseguidos pelos policiais mal falem durante a projeção e mal contem com um arco minimamente discernível – ao contrário dos policiais, que ganham a oportunidade de aparecer o tempo todo (aliás, o protagonismo da história pertence inquestionavelmente a Laurent, o mais equilibrado dos três). Não que Ly tente aliviar a barra dos agentes; eles são retratados como algozes mesmo, o que está certo. Suas vítimas, por outro lado, é que mereciam um espaço maior do que receberam.
Ainda assim, o que mais incomoda em Os Miseráveis é a abordagem sensacionalista de Ladj Ly: criando uma série de momentos que parecem muito mais interessado em chocar do que em mostrar uma realidade conturbada, o diretor constantemente retrata a violência praticada pelos policiais (ou por outros adultos ao redor das crianças), mas nunca se aprofunda no problema social representado por esta. Do início ao fim, Ly se mostra obsecado em fazer o choque parecer calculadinho, o que se reflete na maior parte de suas escolhas estéticas: os zooms abruptos colocados em quatro a cada cinco planos, por exemplo, chegam a se tornar irritantes de tão óbvios, consistindo em uma tentativa besta de imprimir tensão às cenas.
Mas aí, chega o terceiro ato e Ladj Ly comprova de uma vez por todas seu interesse em chocar apenas por chocar, sem se preocupar muito com o desenvolvimento ou o pano de fundo por trás deste choque. Basta dizer – sem spoilers – que Ly percebe o desejo do espectador em ver a justiça ser feita e apela para uma catarse que, embora simbólica se olhada de forma isolada, soa oportunista quando contraposta aos 90 minutos que a antecederam, já que os protagonistas daquela ação revolucionária não haviam ganhado voz alguma ao longo do filme inteiro. É a catarse pela catarse, portanto.
Aliás, desde que dividiu o Prêmio do Júri com Bacurau na última edição do Festival de Cannes, Os Miseráveis vem sendo comparado ao filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles justamente por enfocar uma libertação dos oprimidos contra os opressores. A diferença é que, naquele longa, os oprimidos tinham uma voz dentro de sua própria história.
Esta crítica foi escrita como parte da cobertura do Festival do Rio 2019.