Festival Ecrã 2020

Festival Ecrã 2020 | Comentários

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Entre os últimos dias 20 e 30 de Agosto, ocorreu a quarta edição do Festival Ecrã – desta vez, com um diferencial importante: ao contrário das ocasiões passadas, esta foi realizada de forma totalmente online, com os responsáveis pelo evento disponibilizando, em sua plataforma, todos os filmes que integraram o festival (afinal, não havia como realizá-lo presencialmente em plena pandemia de COVID-19).

Assim, durante aqueles dez dias, pude conferir quinze curtas e dois longas, fazendo rápidos comentários em meu Letterboxd sobre todos eles (menos os longas – CavaloSertânia –, sobre os quais pretendo escrever com mais detalhes em breve). E olha… se comprometer a cobrir um festival como o Ecrã, dedicando um parte do dia a assistir aos filmes e a escrever sobre eles, é algo que, acreditem, faz muito bem à saúde de alguém que, como eu, está basicamente trancado em casa há seis meses.

Dito isso, decidi repostar aqui todos os comentários que fiz sobre os filmes que vi no Ecrã. São comentários rápidos, de fato, mas que sintetizam bem o que achei de cada um dos quinze curtas. Espero que vocês curtam o resultado da cobertura e que estejamos de volta para cobrir as próximas edições do Festival Ecrã (sejam estas virtuais ou presenciais – caso as condições do planeta estejam um pouco melhores até lá)! Confira:

***

1) Encontrado em iPhone (Found on iPhone, EUA, 2019) – 4 estrelas em 5

É curioso, mas também meio deprimente que o simples fato de várias imagens aleatórias registradas nos iPhones de uma loja da Apple acaba revelando tanto sobre os consumidores à sua volta, ao universo consumista no qual se inserem e sobre a cultura da futilidade que, em maior ou menor grau, resultou justamente desta mania de consumo. Compilando uma série de imagens tiradas de iPhones em exibição numa prateleira e das câmeras de segurança da AppleStore que os abrigava, Encontrado em iPhone tinha tudo para soar como uma colcha de retalhos montada de forma aleatória – e, na verdade, é justamente o fato de sê-lo (ao menos, a princípio) que o torna tão revelador; no mundo de hoje, bastam 10 minutinhos para que o acaso passe a refletir a sociedade consumista que o cerca.

Neste curtíssimo espaço de tempo, o diretor Josh Lee (cuja obra, confesso, eu não conhecia) consegue pintar um retrato do século 21 que funciona em função da casualidade – ou melhor: da espontaneidade. Assim, durante a ligeira projeção de Encontrado em iPhone, vemos (através das lentes dos smartphones-título) como o “dia a dia” de um mero celular pode espelhar a futilidade de seus consumidores; uma futilidade que começa numa menina dizendo que o aparelho “é muito parecido com um Android” (num tom de reclamação, talvez), escala para um rapaz brincando de youtuber (porque, afinal, o que ele consome na Internet o influencia a fazer isto) e culmina na total suavização de acontecimentos chocantes (como fazem os dois adolescentes que improvisam uma música engraçadinha sacaneando os contagiados e mortos no último surto de ebola).

Assim, é apenas natural – embora triste – que, em dado momento de Encontrado em iPhone, um caminhão surja pegando fogo no lado de fora da AppleStore e o máximo que vemos são os clientes da loja parando para filmar o incêndio com seus iPhones, num óbvio exemplo de espetacularização da tragédia. No século 21, nada tem peso de fato; tudo que é impactante serve apenas para que um ou outro internauta registre seu impacto e o envie para sei lá quais redes sociais, esquecendo-o depois de poucas horas. Neste sentido, é perfeito que a montagem de Lee exiba o tal incêndio de forma rápida, saltando (através de um corte seco) para uma imagem bem mais tranquila em seguida. Afinal, este é o mundo pós-Internet.

 

2) Duas Imagens de Guerra (Idem, Brasil, 2020) – 3 estrelas em 5

Novo curta do brasileiro João Pedro Faro (Só Aqui e O Imortal), este Duas Imagens de Guerra é uma obra cuja construção rígida permite tudo quanto é tipo de interpretação possível. Em apenas três minutos, o diretor somente contrapõe duas imagens de autores desconhecidos sobre uma guerra: a primeira mostrando o horror de uma menina diante de uma figura assustadora e a segunda, exibindo uma soldada sorridente em meio a uma ação – porém, ao enfocar estas imagens, Faro se concentra em detalhes pequenos contidos nos cantos, como um pedacinho do mar, das roupas das personagens, etc.

Ao mesmo que é simples na forma de apresentar suas ideias (contidas nas imagens), Duas Imagens de Guerra é também abrangente nas interpretações que busca despertar – e estou certo de que, caso atingisse um público maior, um monte de detratores surgiriam para acusar Faro de catar, montar e entregar “qualquer porra” em troca de aplausos fáceis, como se as pessoas fossem aplaudir o que apenas aparecesse na sua frente (uma acusação limitada por natureza, mas ok). No entanto, a simples justaposição de imagens aparentemente simples é mais que o suficiente para que Faro leve o espectador a perceber como um acontecimento em comum – a guerra – traz consigo nuances tão díspares.

Para uma menininha, a simples presença de uma figura de autoridade é motivo de pânico, inquietação e choro; para uma soldada em pleno combate, a guerra nada mais é que uma oportunidade para entrar em ação. De minha parte, estou mais de acordo com a visão da menininha; não existe sinal maior da pequenez humana do que duas ou mais superpotências declararem guerra umas às outras. Mas que é curioso que um mesmo fenômeno (a guerra) gere reações tão diferentes dependendo do contexto de cada uma, é.

 

3) Freeze Frame (Idem, Bélgica, 2019) – 4 estrelas em 5

Ao assistir a Freeze Frame, curta-metragem em stop-motion dirigido pela belga Soetkin Verstegen, pensei constantemente no artigo Ontologia da Imagem Cinematográfica, que, escrito pelo mestre André Bazin e compilado no obrigatório livro O Que é Cinema?, propõe uma leitura psicanalítica das artes plásticas que enxerga a prática do embalsamamento como possível antecedente daquelas: se os antigos egípcios mumificavam cadáveres porque acreditavam que preservar seus corpos os salvaria contra o tempo (numa tentativa de defender-se do que Bazin chama de “correnteza da duração”), as pinturas, as esculturas e as fotografias logo passaram a atuar também como uma tentativa de fixar a imagem dos indivíduos que retratavam a fim de que salvá-los, através do registro, para a eternidade.

Neste sentido, Freeze Frame me remeteu muito à ideia de Bazin. Claro que o título busca fazer um trocadilho com a conhecidíssima técnica audiovisual do “congelamento de imagem”, que consiste em literalmente pausar um fotograma a fim de reforçá-lo para o espectador – um trocadilho que se reflete, obviamente, no conteúdo do curta: um grupo de pessoas idênticas e anônimas vive picando, repassando e/ou preservando cubos de gelo que, em seus interiores, trazem seres vivos estáticos (insetos, rãs, coelhos, mariposas, etc). Estáticos apenas em teoria, porque na prática eles surgem sempre se mexendo de lá para cá dentro do limitadíssimo espaço do gelo que os aprisiona – afinal, se suas formas estão imobilizadas para os demais personagens, as suas vivências continuam vivas, ativas e conservadas através da imobilização.

Enquanto isso, os pobres picadores de gelo genéricos e anônimos, embora vivos e soltos, se veem permanentemente condenados a uma rotina contínua, entediante e sem previsão de melhora, passando dia e noite apenas picando, repassando e/ou preservando os cubos de gelo. Assim, é compreensível que um deles termine o curta mergulhando no frio e se submetendo ao congelamento: o que ele está fazendo não é entregar-se à morte, mas procurar pela sobrevivência de sua imagem e de sua vivência.

 

4) Homenagem ao Vento (Homage to Airway, Dinamarca, 2019) – 3 estrelas em 5

Em 12 minutos, a artista dinamarquesa Sophia Ioannou Gjerding se debruça sobre um conceito que eu, como leigo em videogames, não conhecia: o de respawn. Pelo que entendi, o termo designa o simples ato de regressar a um jogo no exato ponto em que antes havia saído. (É isso mesmo?) Pelo tanto de dúvidas e indagações que apresentei até aqui, não é surpresa que Homenagem ao Vento tenha me trazido algumas dificuldades na hora de parar e pensar sobre ele.

Em compensação, a forma como Gjerding lida com o respawn acabe se transformando em um comentário sobre… a evolução – seja do mundo real, seja de nós como indivíduos e seja da própria técnica de animação ao longo das décadas. Ao longo dos 12 minutos de Homenagem ao Vento, o que vemos é basicamente uma cabeça digital (no meio de um cenário de videogame tridimensional) discursar a respeito do universo ao seu redor, de conceitos como o tal do respawn e da natureza passiva e cíclica do jogo em si, ao passo que é entrecortada por imagens de um urso bidimensional. É no contraponto das duas animações (da cabeça tridimensional e do urso bidimensional) que reside a potência do curta: se as duas não se permitirem uma união e continuarem para sempre em suas respectivas formas, como poderão chegar a uma evolução?

Pois a partir do momento em que nos deixamos travar num mesmo ponto do mapa (ou checkpoint), os padrões que criamos nos impedem de atingir um estágio novo – e, se no início a cabeça falante perguntava se “Fazer a mesma coisa todos os dias nos impossibilita de fazer coisas novas?”, no final ela volta a repetir a mesma frase em tom de afirmação, já que um fenômeno que ela experimentou junto ao urso a fez chegar a uma conclusão. Só é uma pena, porém, que esta conclusão soe tão dúbia, não sabendo definir se, afinal, Gjerding enxerga a evolução (como um todo) com bons ou com maus olhos.

 

5) Espectros da Terra (Idem, Inglaterra, 2019) – 4 estrelas em 5

Rodado em Super-8 e dirigido por Clara Pais e Daniel Fawcett, Espectros da Terra é um curioso exercício de atmosfera que consegue, em seus breves quatro minutos de duração, atirar o espectador em um universo assustador, mas cujo motivo de sê-lo nunca é explicitado de forma direta ou didática. É daqueles filmes que terror que conseguem provocar inquietação a partir da sensação de que alguma coisa está errada, de que algo estranho está presente no ambiente (ou na imagem) mesmo quando não enxergamos – e, portanto, não compreendemos – o que é esta coisa.

Aliás, de todos os trabalhos aos quais assisti nesta edição do Festival Ecrã, este é provavelmente o que melhor consegue articular uma relação de seus personagens com a locação ao redor destes – o que se deve, em grande parte, ao fato de esta soar muito mais viva e ativa do que aqueles: nem o idoso que surge caminhando ao fundo (durante os primeiros dois minutos da projeção) soa tão “tangível” quanto tudo que o cerca (a água que escorre pela cachoeira, as folhas que secam nas árvores, o verde contido na grama, etc). Não à toa, os únicos personagens a atuarem de forma mais intensa na história são… um casal de fantasmas, que correm, que matam, que transam, que comem bichos mortos, etc.

Em outras palavras: qualquer possibilidade de uma vida humana ocupar aquele território não passa de uma ilusão; o abandono da Natureza e dos espaços foi o que lhes condenou à decadência. E isto é algo que, embora excessivamente dependentes da trilha sonora ao criarem a atmosfera de horror, Pais e Fawcett conseguem retratar muito bem em Espectros da Terra. Que ainda consigam levar o espectador a um sentimento de pura tensão mesmo filmando a história de dia, sob a luz do Sol, é também uma proeza e tanto, mostrando como nem sempre claridade (na forma como enxergamos os espaços) é sinônimo de clareza (na forma como os entendemos).

 

6) E um Gato de Porcelana (Y un gato de porcelana, Irlanda, 2020) – 2 estrelas em 5

Infelizmente, o máximo que a artista visual Juana Robles consegue criar, neste E um Gato de Porcelana, é retrato genérico, protocolar e mecânico das ruínas de Belchite e Corbera d’Ebre (cidades devastadas durante a Guerra Civil Espanhola). Sim, o fato de ter sido rodado em preto e branco e em celuloides de 35mm ajuda a imprimir uma atmosfera de horror puro; o problema é que Robles não consegue ir além disso, limitando-se a apenas mostrar as cidades devastadas e a empregar uma trilha sonora pesada (no caso, a música “Piece II”, de Bo Anders Persson) na tentativa de reforçar, de forma didática e artificial, o tal horror que está sendo mostrado. Trata-se, portanto, de uma visão distante, genérica, que não articula nada sobre a situação retratada – apenas a retrata no piloto automático, criando uma atmosfera calculadinha e, mais uma vez, didática.

 

7) Potência Bruta (Raw Power, França, 2020) – 3 estrelas em 5

Que eu me lembre, nunca tive problemas de epilepsia. E também nunca lutei boxe. No entanto, ao assistir a Potência Bruta, confesso que pela primeira vez senti um incômodo que me pareceu ter a ver das duas coisas: basicamente enfocando uma luta de boxe em câmera lenta e através de incontáveis flashes (mais de um por segundo), o novo curta do francês Pierre-Luc Vaillancourt (responsável pelo experimental O Cavaleiro das Ruínas) é uma experiência que faz jus ao seu título, buscando refletir toda a adrenalina, a brutalidade e a intensidade de seus dois personagens – e de qualquer ser humano que participe de uma luta feroz – em sua montagem.

Neste sentido, Potência Bruta é bem-sucedido: é provavelmente o curta do Festival Ecrã que mais cobrou de minhas energias e que mais foi difícil de assistir (quando completei o primeiro minuto do curta, percebi que seria uma tarefa considerável passar por outros quatro). Não se trata de uma experiência bacana ou agradável – muito pelo contrário, na verdade: eu, pelo menos, senti como se meus olhos recebessem um monte de porradas ao longo de cinco minutos ininterruptos. Porém, me parece que o objetivo de Vaillancourt foi mesmo este: o de fazer o espectador sentir-se no meio de um conflito brutal. Missão cumprida, portanto.

 

8) Rio Submerso (Idem, Brasil, 2019) – 3 estrelas em 5

Poucas imagens ilustram mais o Rio de Janeiro (e o Brasil como um todo, por que não?) do que a de uma praia carioca cheia em pleno domingo ensolarado: ali vemos de tudo, das paisagens que atraem os turistas através de cartões-postais até os trabalhadores pobres que são obrigados a se desdobrar em prol do conforto de uma das elites mais mesquinhas do mundo, passando pelo charme dos que estão ali por puro prazer, pela sujeira que muitos destes despejam nas areias e nas águas e pelo sofrimento dos que são forçados a colher esta sujeira em troca de salários miseráveis.

É nesta imensidão de sutilezas, nestas tensões socioeconômicas sempre à espreita no quadro que descrevi acima, que reside Rio Submerso: dirigido por Beatriz Leonardo, Ivan Ignacio, Lucas Bártolo e Luís Fellipe, o curta se desenrola a partir da simples justaposição de várias fotos que mostram como as mesmas situações – uma praia de domingo ou um pé d’água que bateu no Rio – podem representar coisas completamente diferentes dependendo de seus contextos. Assim, se a praia de domingo é motivo de lazer para a burguesia carioca, para os pobres e miseráveis é frequentemente motivo de trabalho sofrido; e se o temporal que caiu sobre a cidade pode significar uma chuvinha para refrescar os mais ricos, para muitos outros é o prenúncio da perda de suas casas.

Dito isso, Rio Submerso desempenha relativamente bem sua função ao longo de seus rápidos seis minutos, nos lembrando de como a relação da “Cidade Maravilhosa” com a água (seja na praia ou sob a chuva) tende a defini-la não só pelos cartões-postais, mas também pela maneira como reflete o principal problema do Brasil (e o que, a meu ver, precisa ser resolvido com mais urgência): sua disparidade socioeconômica.

 

9) Papai Se Foi (Dad Is Gone, Espanha, 2020) – 3 estrelas e 5

Pere Ginard me parece ter algum problema muito sério com seu pai. Basicamente tratando o “papai” do título menos como um pai e mais como um assombro que está sempre à espreita (já entenderam para onde estou indo, não é?), o cineasta espanhol cria, neste Papai Se Foi, uma sequência de imagens disformes, ocasionalmente grotescas e que assumidamente remetem às projeções dos Lumière. De um ponto de vista experimental, Ginard não oferece muito mais do que os próprios Lumière já haviam oferecido lá atrás, adicionando, porém, um toque particular de sadismo que, a julgar pelo título do curta, tenta propor uma perspectiva sobre a paternidade (e que funciona, pelo menos, ao tentar provocar o choque). O problema é que a visão de Ginard é limitada tanto estilística quanto simbolicamente, fechando-se nela mesma sempre que parece prestes a chegar a um lugar interessante.

 

10) Onde Eu Não Te Encontre (Where I Don’t Meet You, Canadá, 2019) – 3 estrelas em 5

Em quatro minutos, Onde Eu Não Te Encontre consegue transformar em imagem o sentimento de querer acabar com tudo, de querer jogar tudo pela janela. E não precisa de muito: basta mostrar algumas laranjas inteiras, depois cortadas, depois um par de mãos com anel de noivado, um textinho no canto da tela e, pronto, já sentimos a ruptura proposta por Charlotte Clermont (não precisamos nem saber o que a motivou, apenas senti-la). Neste sentido, gosto da disciplina do curta ao conseguir alcançar uma sensação através de sua forma; por outro lado, é também o excesso de disciplina que acaba prejudicando um pouco o resultado final, fazendo-o soar calculadinho demais (e mesmo os textos que mencionei tornam-se expositivos demais, contrariando a sutileza do restante da abordagem de Clermont).

 

11) A Morte Branca do Feiticeiro Negro (Idem, Brasil, 2020) – 4 estrelas em 5

A Morte Branca do Feiticeiro Negro é uma das coisas mais assustadoras que já vi em toda a minha vida. Mesmo, sem exagero. E o principal detalhe que o torna tão assustador é justamente o fato de girar em torno não de algo surreal, mas do mais real dos horrores já presenciados em solo brasileiro – a escravidão –, empregando apenas fotos e vídeos autênticos na hora de mostrá-lo. Se o objetivo do diretor Rodrigo Ribeiro era fazer o espectador sentir na pele o sofrimento e o silenciamento do povo negro durante e após os mais de três séculos de genocídio… bom, eu não sei dizer se ele conseguiu, já que eu, como branco, nunca terei dimensão do que foi aquela brutalidade. O que posso dizer com toda certeza, no entanto, é que os 10 minutos deste curta me levaram a um incômodo que jamais quero voltar a sentir.

Mergulhando o espectador (como falei) em fotos e vídeos reais que mostram os escravos (crianças e adultos) nos campos nos quais eram forçados a trabalhar, A Morte Branca do Feiticeiro Negro reconstitui a carta de suicídio de Timóteo, na qual falava sobre a vida que levava e seu desejo de não mais existir. As palavras que levaram o escravo à morte e, a partir destas, os crimes que levaram os negros a serem sufocados e silenciados ao longo de todo o período que veio depois. Palavras estas que, por sinal, surgem literalmente escritas na tela; não há narração em off nem sequer uma sílaba que seja, de fato, dita nos 10 minutos do curta – o que há é apenas… o silêncio. Não o silêncio intencional, mas aquele induzido à força, como uma mão que se fechasse sobre a boca até que o ar mal pudesse entrar por esta e o indivíduo em si fosse levado a uma asfixia excruciante. É a violência do silenciamento, portanto.

O mais importante, porém, é compreender como o genocídio da escravidão determinou os caminhos de toda uma população para as décadas (mais de um século, até aqui) que vieram em seguida, sendo fundamental, por parte de Ribeiro apresentar trechos de vídeos situados no presente e que contam com a participação de pessoas negras de hoje. O processo que calou o povo negro também ajudou a torná-los invisíveis – e, para reverter isto, só voltando a olhar de perto e com atenção todos os atos hediondos cometidos lá atrás. Que é o que Rodrigo Ribeiro propõe – e alcança – em A Morte Branca do Feiticeiro Negro.

 

12) Cavalo (Idem, Brasil, 2019) – 4 estrelas em 5

A crítica completa pode ser lida aqui.

 

13) Temporal (Idem, Brasil, 2020) – 2 estrelas em 5

A princípio, Temporal tinha tudo para ser um interessante olhar sobre os espaços e sobre a História que o tempo inevitavelmente incute a estes (neste sentido, os planos que contemplam as gotas de chuva escorrendo lentamente pelo vidro de uma janela ou a dimensão de salas e corredores vazios cumprem bem sua função); na prática, porém, este trabalho de Maíra Campos e Michel Ramos acaba forçando uma tentativa de poesia, através da narração em off, que não apenas se mostra artificial e melosa, como também compromete o potencial interpretativo daquelas imagens, jogando um véu de objetividade nestas e impedindo que o espectador faça o dever de senti-las por conta própria. O pior curta que vi no festival, sem dúvida.

 

14) Céu na Terra (Idem, Brasil, 2020) – 4 estrelas em 5

Assistir a Céu na Terra, curta de estreia da carioca Raquel Monteiro, em pleno período de quarentena é uma experiência ao mesmo tempo melancólica e curiosa: por um lado, é melancólica porque nos faz lembrar de uma época (hoje tão distante) na qual podíamos sentir o ar livre, o calor das aglomerações e a energia do Carnaval sem quaisquer riscos de contaminação (e, como carioca, identifiquei no curta um monte de locações que já foram cenários dos blocos que eu mesmo costumava frequentar); por outro, é curiosa porque gira em torno de uma personagem, Paula, que parece resistir a este espírito de folia, isolando-se em seu quarto e em seus fones de ouvido enquanto joga Life is Strange e sonha em voltar à movimentada Times Square, em Nova York.

Neste sentido, Monteiro toma uma decisão particularmente fabulosa ao fazer do game um reflexo do livre arbítrio que Paula acha que tem na vida real, reforçando, a partir de uma escolha que o jogo obriga a fazer (salvar o mundo ou a namorada?), o peso que as escolhas da jovem terão em sua própria vida (ir embora para Nova York ou tentar se resolver com a ex-namorada, Patrícia, aqui?). Claro que o conflito de Paula e sua resistência ao Carnaval carioca são fruto de um viralatismo óbvio – e, para questioná-lo, existe a figura de Patrícia, que desde o princípio se reconhece como parte da folia ao seu redor e que se torna o centro emocional da história do meio para o fim. Se Paula sonha em deixar o Brasil e os blocos de rua, Patrícia não hesita em abraçá-los e em torná-los parte de quem ela é.

Não que Céu na Terra seja perfeito: por melhor construídas que sejam as personagens, há momentos em que as atuações por trás de ambas deixam a desejar, soando um pouco mecânicas e automáticas na forma como recitam suas falas (o mesmo se aplica, em parte, à forma como Monteiro encena algumas situações). Em compensação, não há como negar o domínio de Raquel Monteiro acerca de seus próprios temas e objetivos, sendo notável que, em vez de enfocar a resolução do conflito de Paula, ela prefira terminar o filme com Patrícia coberta por luzes de neon, no meio de uma festa. Afinal, abraçar e curtir as raízes de seu próprio país é muito mais importante do que trancar-se no quarto e sonhar em pegar um avião e ir prestigiar o dos outros.

 

15) Bookanima: Andy Warhol (Idem, Coreia do Sul, 2020) – 4 estrelas em 5

Confesso que não conhecia o trabalho do sul-coreano Shon Kim: propondo-se a criar uma fusão entre as linguagens literária e audiovisual, o artista consegue, neste Bookanima: Andy Warhol, fazer jus ao título do projeto, “animando” uma série de fotos, informações e pop-arts do icônico cineasta e pintor norte-americano. Em breves cinco minutos, Kim leva o espectador não apenas a relembrar o estilo marcante das obras de Warhol (das menos às mais conhecidas), mas também a apreciar um certo “arco dramático” criado em torno deste – e, quando chegamos ao final do curta e escutamos uma frase positiva por parte de Warhol (contrapondo-se às repetidas negações que ouvimos nos quatro minutos anteriores), sentimos que um ciclo se fechou ali, como se a trajetória do artista fosse pontuada por uma estranha “incompletude” que se resolve nos 45 do segundo tempo. E, se o ritmo frenético da montagem acaba traindo um pouco a proposta “informativa” do projeto, ao menos se mantém fiel à intensidade do próprio Andy Warhol.

 

16) A Quarta Era (Fourth Era, EUA, 2018) – 3 estrelas em 5

Quando jogamos um videogame, nos acostumamos a enxergar os cenários e os NPCs (personagens “não jogáveis”) como construções ocas, como meras programações que existem basicamente para ajudar o jogador a atingir um objetivo. Assim, quando matamos centenas de vilões num game, o fazemos de forma corriqueira, impessoal e sem culpa alguma – afinal, estamos eliminando não vidas, mas soldadinhos genéricos criados através de códigos digitais (algo que o recente – e brilhante – The Last of Us: Parte II questionou de forma enfática, complexa e corajosa). E é por isso que um projeto como A Quarta Era se torna tão curioso: ambientado no universo de Skyrim (que pouco joguei), o curta leva o espectador a prestar atenção em nuances do game que talvez lhe faltassem até então.

Assim, em vez de se concentrar naquilo que já estamos habituados a ver no jogo (o protagonista ceifando adversários, caçando tesouros e explorando o “mapa”), o diretor Aaron Berry prefere apenas apresentar, nos 24 minutos de A Quarta Era, 15 planos estáticos (cada um durando 90 segundos) que enfocam somente as paisagens do game, seus NPCs caminhando, as águas de seus rios escorrendo e seu dia virando noite. Sim, trata-se de uma decisão simples, mas que é mais do que suficiente para levar o espectador a compreender o óbvio: há uma lógica de “dia a dia” em Skyrim que nós, por controlarmos o protagonista e por termos objetivos a cumprir, nunca observamos com atenção – e o fato de Berry propor esta experiência nos faz entender o universo do jogo como algo… vivo, com personalidade própria.

Não que A Quarta Era não exagere um pouco em sua duração, soando autoindulgente e até meio monótono ao apenas mostrar aquelas paisagens binárias de forma tão distante, ilustrativa e impessoal. De todo modo, não deixa de representar um exercício curioso e que leva o espectador a uma reflexão inusitada sobre o universo dos games e sua relação com a “mística” destes.

 

17) Sertânia (Idem, Brasil, 2020) – 5 estrelas em 5

A crítica completa pode ser lida aqui.

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Ah, e para quem gosta de rankings:

Sertânia > A Morte Branca do Feiticeiro Negro > Encontrado em iPhone > Freeze Frame > Cavalo > Espectros da Terra > Bookanima: Andy Warhol > Céu na Terra > Rio Submerso > Duas Imagens de Guerra > A Quarta Era > Potência Bruta > Onde Eu Não Te Encontre > Homenagem ao Vento > Papai Se Foi > E um Gato de Porcelana > Temporal

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